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Artigo

A alquimia cênica em Marilena Ansaldi

24.4.2021  |  por Laís Marques

Foto de capa: Frame de vídeo por Fabio Audi

“Monólogo dançado”, “show-depoimento”, “dança teatral”, “balé-teatro”, enfim, são múltiplas as leituras. Para abordar a trajetória de Maria Helena Ansaldi, em arte Marilena Ansaldi, é preciso ter em mente as diversas tentativas de classificação que a sua obra sofreu desde meados da década de 1970 até 9 de fevereiro de 2021, quando ela morreu aos 86 anos. Se tais termos dão conta de nomear o trabalho em sua totalidade, ou não, de todo modo conjugam alguns dos principais elementos recorrentes na lida dessa artista paulista: normalmente, trata-se de um trabalho solo, com características de depoimento pessoal, realizado em parceria com as linguagens do teatro e da dança. Além disso, eminentemente autoral. Feito sem concessões e, muitas vezes, a despeito do total descaso com que as políticas culturais frequentemente são tratadas no país.

Este artigo mescla sentimentos pela perda da artista e memórias vivazes do curto, mas produtivo convívio intelectual e a experiência desta espectadora convergidos na iniciação científica Marilena Ansaldi: Singulariade e teatro-dança, realizada na graduação em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Univerisdade de São Paulo, em 2006, sob orientação do professor Luiz Fernando Ramos, com apoio da Fapesp.

Bailarina, atriz, coreógrafa, produtora, roteirista, fundadora de grupos de dança e vencedora de muitos prêmios da crítica de teatro e de dança, Marilena foi a primeira bailarina do Theatro Municipal de São Paulo; dançou no Ballet Bolshoi russo, como convidada; fundou o Balé de Câmara do Estado de São Paulo (1966) e o Grupo de Dança Viva (1972), no mesmo estado; e lançou a autobiografia Marilena Ansaldi – ATOS – Movimento na vida e no palco (Editora Maltese, 1994), para citar alguns dos seus feitos.

Essa síntese do itinerário de Marilena se deu a partir da eleição dos pilares que configuram seu processo criativo e que foram identificados através do material coletado ao longo da pesquisa compartilhada nestas linhas. São eles: a utilização do próprio depoimento na construção do projeto artístico; a intensa utilização do corpo enquanto via expressiva; o trabalho sobre a improvisação; uma dramaturgia inscrita na cena; a troca com parceiros-criadores; e finalmente a influência musical sobre a criação

Era filha de um grande cantor de ópera, Paulo Ansaldi, que atuava no mesmo espaço em que a mãe, Maria Nazareth da Silva, fazia parte do coral. Barítono e corista se conheceram em navio durante turnê. Quando a mãe morreu, tomou um avião, prestou homenagens no enterro e retornou a tempo de apresentar o espetáculo daquela noite, um reflexo da dimensão com a qual entendia o ofício.

Além de “ser-se” em cena, viver autora e criatura com Clarice Lispector (Um sopro de vida, 1979, e A paixão segundo G.H., 1989), tornar-se uma  verdadeira amante de Picasso (Picasso e eu, 1982) e encarnar Hamletmachine (1987, peça do alemão Heiner Müller) em sua maior potência, entre inúmeras figuras-chave que deram vida à sua persona cênica, ela também produziu fracassos. Para tanto, soube rir de si mesma e, ainda assim, continuar a caminhada.

Pois a singularidade da obra de Marilena Ansaldi constituiu eixo norteador do estudo que empreendi 14 anos atrás. Analisei toda a sua trajetória, até então, bem como mapeei os principais elementos presentes   ao longo de seu percurso, com o intuito de identificá-la enquanto uma das precursoras  da linguagem do teatro-dança no país. Além disso, a abordagem histórico/conceitual dessa linguagem hibrida conferiu à segunda parte da pesquisa a possibilidade de contextualizar  o trabalho da artista numa perspectiva de revelar as principais experiências dentro dessa esfera, a partir da década de 1970, no Brasil.

As duas linhas do estudo – a trajetória propriamente dita de Ansaldi e a linguagem do teatro-dança – podem ser vistas de forma complementar, mas, preferencialmente, devem ser entendidas em seus propósitos individuais. Ou seja, a linguagem em questão e, principalmente, o trabalho da criadora, não mantêm vínculos de correspondência absoluta que pudessem denotar uma  dependência entre ambas, descaracterizando-as em suas especificidades. Tais vertentes relacionam-se em muitos aspectos, porém, no que concerne à obra da artista, optei pelo exame de seu trabalho sob uma ótica “interna” que, embora em determinadas circunstâncias aponte aspectos coincidentes com os elementos do teatro-dança, não se pauta exclusivamente em suas prerrogativas estéticas para  sua elaboração.

Frame de vídeo por Fabio Audi A atriz e bailarina paulista Marilena Ansaldi (1934-2021) durante participação no espetáculo ‘Depois’, em 10 de dezembro de 2019; ela morreu em 9 de fevereiro passado, aos 86 anos, sendo considerada uma das pessoas pioneiras na linguagem da dança-teatro a partir da peça autobiográfica ‘Isso ou aquilo?’, de 1975, dirigida por Iacov Hillel

Essa síntese do itinerário de Marilena se deu a partir da eleição dos pilares que configuram seu processo criativo e que foram identificados através do material coletado ao longo da investigação. São eles: a utilização do próprio depoimento na construção do projeto artístico; a intensa utilização do corpo enquanto via expressiva; o trabalho sobre a improvisação; uma dramaturgia inscrita na cena; a troca com parceiros-criadores; e finalmente a influência musical sobre a criação.

Ainda que nenhum estudo anterior tenha sido feito sobre a relação de tais elementos em suas  peças, eles são facilmente identificáveis em praticamente todos os 13 espetáculos em que atuara até a metade dos anos 2000. A opção que apresentei, no entanto, mais do que apontar uma  metodologia rígida que pudesse amarrar tais elementos em pressupostos fixos (até porque Marilena saberia abrir mão de qualquer um deles, caso isso fosse necessário), buscou trazê-los enquanto faces que representassem o seu “metabolismo criativo”, a saber, o conjunto de mecanismos – estes sim, interdependentes e necessários para a formação, o desenvolvimento e a produção de suas peças.

Para além de procurar reconstituir historicamente seus espetáculos, do ponto de vista de sua recepção e, mais ainda, tentar reproduzir os efeitos que os trabalhos produziram, escolhi manter a atenção no momento anterior à sua apresentação. Se foi uma escolha propriamente ou a condição imposta, já que de início não havia qualquer registro gravado dessas criações em que se pudesse apoiar para tanto, o fato é que isso liberou a pesquisa de qualquer compromisso em dizer alguma coisa que estivesse fora de seu alcance e disposição.

Apesar da forte intuição implícita em seus procedimentos, ou na escolha dos mesmos, constatei que a produção de Marilena Ansaldi mantém uma certa coerência que não se perde com o tempo e, ao contrário, se aprimora e se amplia, num movimento caleidoscópico, ao longo das décadas em que produziu.

De modo que a perspectiva da criadora em se colocar em primeira pessoa, enquanto performer autora da cena, em maior ou menor grau, pode ser constatada desde sua estréia, em 1975, até suas realizações mais recentes. Isto não a impediu, no entanto, de, constantemente, pôr-se à prova em empreitadas feitas a partir do radicalismo e experimentalismo que sempre foram a principal marca de suas peças.

Aliás, o que mais chama a atenção, dentro das informações coletadas, é a alquimia pessoal – não sem razão, palavra empregada constantemente ao longo do estudo – com que processou os diversos temas e procedimentos. Pois desde o princípio Marilena pretendia a incursão através de uma linha que implicasse em uma identidade própria ou, antes, que revelasse sua identidade até então não explorada deliberadamente.

Mesmo lidando com diversos diretores – eram sete àquela altura da iniciação científica, de perfis os mais diversos e dos quais entrevistei cinco: Iacov Hillel (1949-2020), José Possi Neto, Marcio Aurelio, Cibele Forjaz e Antônio Araújo –, enfrentando adversidades econômicas, por vezes graves, assim como momentos históricos em que a liberdade plena era inviável (a exemplo do regime de exceção em que a censura reinava), apesar desses percalços todos a criadora seguiu uma linha que remete aos seus termos originários. Em tempo: Celso Nunes e Luiz Roberto Galizia (1951-1985) também a dirigiram.

Viés intelectual

Um outro dado se sobressai em seu processo de criadora cênica, ligado à inversão do circuito no qual normalmente o trabalho convencional de uma atriz está inserido. Se, em cena, ela se mantém inegavelmente enquanto intérprete, fora desse lugar a criadora também agrega outras funções. Ela responde pela idealização artístico-intelectual dos projetos. É também quem elabora o roteiro original em que culminará o espetáculo, além de pensar a concepção do roteiro musical, figurinos e espaço cenográfico. Cabe aos diretores a tarefa maior de elaborar a encenação, que sempre contará com as suas sugestões e expectativas. De todo modo, esta prática lhe confere uma criação ímpar, que extrapola os parâmetros estabelecidos e as hierarquias convencionais inerentes ao universo teatral.

Nesse sentido, Marilena pôde conhecer os dois lados da moeda artística: ganhando diversos prêmios que souberam reconhecer seu talento, mas se debatendo com as terríveis condições que, enquanto produtora de si mesma, haveria de sofrer a cada nova empreitada. Sempre começava do zero, por assim dizer (inclusive, um segundo espetáculo deveria saldar as dívidas do primeiro). Dizia que era preciso bater de porta em porta, “com o currículo debaixo dos braços”, explicando quem era e o que desejava fazer com o dinheiro, seja diante de órgãos públicos ou privados. Experiência essa que, muito provavelmente, levaram-na à grande paralisia enfrentada por cerca de 12 anos, tempo em que problemas de ordem emocional – depressão, síndrome do pânico – acabaram por se manifestar.

A matemática que pode explicar tal crise é simples, sempre lembrando que examinei o marco temporal de 2006 para trás: em 16 anos, apresentou 11 novos  espetáculos (atuando, produzindo, escrevendo, criando figurinos, cenários, etc.), numa média de 1,45 espetáculo/ano. Isso, diga-se de passagem, dos 40 aos quase 60 anos de idade! De fato, Marilena não tinha a menor vocação, como muitas senhoras dessa idade naturalmente têm, de se tornar uma vovozinha tranquila ou apaziguada com os dissabores da vida. E mesmo uma mulher tão determinada quanto ela sofreu os abalos que, infelizmente, acometem artistas brasileiros quando optam por não trabalhar na perspectiva meramente comercial. Obviamente, o fato de não ter se dedicado a uma carreira televisiva – “Para mim, uma outra enfermaria”, dizia – contribuiu para que se tornasse uma atriz (embora com um grande público cativo) sem muito apelo popular.

Sempre numa via de resistência, pôde ser dignamente reconhecida, ainda em vida, ao ser convidada, por exemplo, para apresentar um novo espetáculo quando cruzou os 30 anos de estrada.

Pela perspectiva que a sua obra engendra, descartei a tentativa de enquadrá-la numa linguagem exclusiva. E talvez este tenha sido o maior desafio ao longo de toda a pesquisa: encarar a análise de sua obra a partir das prerrogativas verificáveis dentro dela mesma. Ainda que traçando paralelos com as mais variadas modalidades artísticas, principalmente com o teatro e o trabalho do ator, com a prática da dança, da composição coreográfica e mesmo da performance, a pesquisa considerou sempre a perspectiva da singularidade “ansaldiana” incorporar tais áreas. Vide o improviso, procedimento dos mais comuns no teatro, que em sua ótica toma proporções específicas.

Talvez a linguagem da performance seja uma das modalidades que mais se aproxima dos princípios que Marilena Ansaldi lança mão. A relação arte/vida, a ênfase na atuação em detrimento da representação, o trabalho a partir de suas habilidades psicofísicas e o desenvolvimento de um vocabulário próprio, além de um espetáculo de forte sentido “ritualístico”, poderiam transformá-la numa performer “fazedora” de performances… O dado complexo é que, apesar da verificação desses procedimentos, a criadora não deixa de apresentar-se em temporadas, com textos decorados e uma série de outros fatores que implicam outras leituras de seu trabalho que  não apenas se ligam à performance. Ainda porque ela mesma só pronuncia o termo, referindo-se ao próprio trabalho, após os anos 1990, ou seja, quase duas décadas depois de seu início.

Sobre o teatro-dança, originalmente a linguagem que sustentaria todo o arcabouço conceitual de sua produção, sofre de um dilema semelhante. A expressão que tem na coreógrafa e pedagoga alemã Pina Baush (1940-2009) sua maior representante traz, ao trabalho da brasileira, contribuições essenciais, principalmente no quesito do resultado cênico que ela mais explora, a elaboração visual, imagética. Como não bastasse isso, há um dado primordial que é, justamente, o fato de ela não ter abandonado a dança quando partiu  para a vereda autoral, se tornando, assim, uma atriz-bailarina nos moldes da definição proposta   pelo estudioso francês Patrice Pavis: “O ator-dançarino se caracteriza por suas sensações cinestésicas, sua consciência do eixo  e do peso do corpo, do esquema corporal, do lugar de seus parceiros no espaço-tempo” (A análise dos espetáculos: teatro, mímica, dança, teatro-dança, cinema, Perspectiva, 2002). Não se pôde negar mais esta característica à sua linguagem, acrescida, contudo, da disposição em cantar e trabalhar sob o ponto de vista de uma personagem de ficção.

Frame de vídeo por Fabio Audi A partir da metade da década de 1970, a artista originária da dança fez incursões pela linguagem do teatro em espetáculos dirigidos por nomes como Iacov Hillel, Celso Nunes, José Possi Neto, Luiz Roberto Galizia, Marcio Aurelio, Cibele Forjaz e Antônio Araújo

José Possi Neto, que a dirigiu em trabalhos como Um sopro de vida (1979) e Picasso e eu (1982), lembra, acertadamente, que Marilena nunca teve um compromisso estreito em pertencer a uma determinada linguagem, mas, sim, um compromisso com o desejo imenso de expressar-se em sua totalidade, o que a levou, consequentemente, a traçar parcerias com variados artistas e, igualmente, com diferentes linguagens da cena. Apoiando-se num viés mais filosófico, o diretor sugere que a busca artística da intérprete pode ser considerada enquanto uma espécie de “ritual” de sobrevivência. Semelhante à filosofia precursora do dinamrquês Sören Kierkegaard (1813-1855), segundo a qual a única verdade do homem é saber que um dia irá morrer e, assim, para dar um rumo à própria vida – e esquecer, ainda que momentaneamente, sua mortalidade. Nesse sentido de inventar a arte e a história, Marilena se atira em um “mergulho no escuro”, no dizer de Possi Neto:

“A Marilena, quando vai para o palco, ela está fazendo esse salto para a morte, para dar um sentido à sua existência (…). Toda vez que ela vai para o palco, ela se propõe a um salto no escuro. E ela tem que sair dali renovada, ressuscitada, uma fênix. Então, cada projeto dela é isso. Dos mais bem-sucedidos aos mais terrivelmente sucedidos, porque ela sofre muito quando está no palco; o palco para ela é êxtase e agonia”.

Sem fronteiras

Com base nessas averiguações, optei por situar o trabalho de Marilena Ansaldi na perspectiva contemporânea, no que tange ao caráter híbrido e interdisciplinar tão característicos da arte nos dias de hoje. Ela é uma artista que “borra” as fronteiras entre a dança, o teatro, a performance e a música. E a partir daí, promove uma nova configuração das possibilidades cênicas decorrentes dessa incessante contaminação, tal como Pavis afirma: “A prática cênica de hoje  passa facilmente de um [gênero] a outro, toma empréstimo de todos, propõe um arco-íris das artes do corpo no qual se vai imperceptivelmente de uma cor à seguinte num percurso transversal que se ria das velhas compartimentações”.

Nas entrelinhas desse estudo, procurei ressaltar ainda o significado que um projeto eminentemente teórico pode ter em relação à construção da memória, no caso artística, de um passado ainda recente. Há sempre o risco de ele ser esquecido, caso não seja revisitado e registrado. Por isso, o trabalho analítico, histórico e conceitual apresentado aqui procurou “prolongar” o exercício efêmero, próprio da linguagem cênica, numa via de concretização formal e acadêmica, em  que se busca relacionar acontecimentos do palco com sua realidade mais ampla: das dificuldades econômicas, das injustiças, mas também das realizações e reverberações que tais experiências podem trazer para a vida de outras pessoas. Assim, a história singular de Marilena Ansaldi (bem como dos demais criadores presentes nesta narrativa ou correlaconados à homenageada) pode revelar um campo mais amplo: o do coletivo. Esta contribuição artística, do mesmo modo, desvenda um contexto social, cultural e, ainda, político.

É necessário lembrar que desde o  início de sua empreitada autoral, em 1975, uma longa experiência anterior de Marilena com a dança permitiu que experimentasse alguma intimidade com o palco e com as possibilidades expressivas  da artista. Só a partir da necessidade de ampliar seu desejo de “ser ou não ser” que ajeitou seu foco de ação. Aliás, para o diretor Marcio Aurelio, Marilena não fez do  cogito shakespeareano uma tese de incompatibilidades: “Ao invés da crise, assumindo ou não personagens, a Marilena propunha um avanço, como performer, diante da ideia hamletiana entre ser ou não ser”, afirmou o diretor em entrevista para a pesquisa à época.

Longe de tornar-se, contudo, uma performer umbilical, voltada exclusivamente aos intuitos artísticos que sua personalidade oferecia, Marilena fez de sua empreitada um encontro com o “outro”, que, nesse caso, significou objetivamente desenvolver projetos com os mais criativos e promissores encenadores que nos anos 1970, 1980, 1990 e 2000 trouxeram, em termos de invenção, experimentalismo e radicalidade aos palcos brasileiros. É, portanto, no mínimo de valor histórico que a intérprete tenha desenvolvido parcerias com artistas tão diferentes entre si, mas que tinham, em comum, a mesma paixão pela potência teatral.

A sua capacidade dramatúrgica é um ponto que, embora não sendo o foco da investigação, mereceu uma atenção especial. Na maioria dos seus espetáculos, ela foi a autora do roteiro encenado. Ao deparar-se com temas ou livros que lhe despertavam verdadeira paixão, a artista trabalhava a fundo o que seria a espinha dorsal. No roteiro elaborado, já estava contida a adaptação do texto original, imagens, esboços do espaço, figurinos, além das possíveis referências sonoras que, durante todo o processo, alimentariam seus intuitos. Um trabalho que, em larga medida, ampliava as funções características de uma atriz.

Essa alquimia pessoal fez com que Marilena fosse simultaneamente a autora e a matéria de sua própria obra. Exigiu, artisticamente, uma envergadura complexa da criadora. Um conhecimento que produzisse uma certa prática e procedimentos que determinassem uma metodologia própria. Ainda que tenha sempre refutado a noção de uma arte “intelectualizada”, “racionalizada”, uma análise mais aprofundada de seu trabalho revela, sim, um conjunto de técnicas  e processos utilizados que ultrapassam a capacidade empírica de sua autora, revelando a existência de um sistema criativo-estético-autoral. Um sistema que, no entanto, não é esquematizado ou rígido, nem fechado em si mesmo, mas que funciona enquanto soma de princípios norteadores, dando segurança para a artista sempre começar uma nova aventura. Nesse sentido, seu trabalho oferece margem para a discussão de certos paradigmas da linguagem cênica e amplia as possibilidades que ela costuma oferecer.

Ao ir de encontro ao “silêncio dos arquivos”, como diz a crítia de dança Helena Katz, a pesquisa teórica tem a chance de “des-cobrir” tesouros perdidos, assim como dar-lhes novas roupagens e significados. Em se tratando de Brasil, onde a memória artística ainda é, infelizmente, tão pouco cultivada, os registros, as análises e os estudos críticos têm o poder de, ainda por cima, preencher esta lacuna referente ao passado.

Um passado que, no entanto, precisa ser compreendido a partir das lentes da atualidade. Assim é que a linguagem do teatro-dança e a trajetória de Marilena Ansaldi podem servir como dois exemplos de uma arte eminentemente contemporânea, que caminha empenhada em transpor fronteiras já enrijecidas.

Se, no campo geográfico atual, algumas regiões do mundo ainda são marcadas por graves conflitos provocados pela incompatibilidade de convivência pacífica entre culturas distintas, num mesmo território, no universo das artes, por outro lado, a troca entre os diversos territórios tem se mostrado muito flexível e frutífera. Deste modo, o universo aqui tratado convida a uma reflexão ainda mais ampla sobre a construção de identidade e de memória, a desterritorialização das artes, a especificidade da investigação teórica, entre outros temas.

Para esta pesquisadora, excepcionalmente gratificante seria se nosso trabalho, em que  pesem suas limitações, conseguisse ao menos sinalizar isso: a elaboração artística de Marilena Ansaldi, por sua ousadia esmerada, reivindica ampliar e divulgar as suas reais dimensões e os seus desdobramentos que se fazem tão atuais.

Palco-página-em-branco

Somente após um ano de conclusão do referido estudo eu tive a oportunidade de assistir a Desassossego. Era o ano de 2005 e o Centro Cultural Banco do Brasil, através da ação curatorial da crítica de dança Ana Francisca Ponzio, convidara Marilena para um espetáculo que celebrava os seus 70 anos de vida e tantos outros de carreira. Essa produção foi significativa porque oferecia, materialmente falando, as condições dignas para que uma artista da sua índole pudesse desenvolver o seu trabalho.

Junto ao encenador Marcio Aurelio, eles então criaram um rito de intensidades de uma forte carga poética, contundente e de uma sensibilidade realmente singular. Cada linha, cada traçado daquele palco-página-em-branco parecia desenhado com nanquim através do seu corpo e da sua gestualidade única. Era a sua presença encarnada nas linhas de Fernando Pessoa (1888-1935).

Desde então, não pude mais vê-la em cena por muitos anos. Mesmo assim, eu sempre gostava de imaginá-la. Hábito que carrego comigo até hoje por ter acompanhado presencialmente apenas dois dos seus tantos espetáculos, por isso busco sonhar cada uma de suas obras. Cada um dos seus temas, cada um dos seus projetos realizados ao longo de sua trajetória.

Frame de vídeo por Fabio Audi Mesmo uma mulher tão determinada quanto ela sofreu os abalos que, infelizmente, acometem artistas brasileiros quando optam por não trabalhar na perspectiva meramente comercial

Além de sonhar esses projetos eu também gosto de colecionar pistas-depoimentos trazidos pelos meus colegas, artistas criadores que conviveram com Marilena. Porque sempre que eu toco no assunto “Marilena”, principalmente a geração anterior à minha, eles abrem um imenso baú afetivo e partilham memórias muito preciosas e que dão também uma referência do seu temperamento. Não só da artista no palco, mas também da mulher, da cidadã, da mestra.

Sei, por exemplo, que ela foi professora de dança na antiga Escola Municipal de Bailado [atual Escola de Dança de São Paulo], onde também me formei anos depois. E soube que lá ministrava aulas para atores, não bailarinos, músicos e artistas da cena em geral. Mesmo essas pessoas não sendo bailarinas profissionais, pude ouvir delas comentários fortíssimos sobre o rigor com que a criadora, com viés de pedagoga, tratava os alunos, bem como o seu compromisso extremo com o ensino e com a transmissão do conhecimento. A maneira como ela trabalhava o corpo desses estudantes refletia o alto nível de exigência.

Também tive a oportunidade de, indiretamente, conversar com Marilena em 2019, quando ousei convidar Marcio Aurelio para me dirigir em Heather, do dramaturgo inglês Thomas Eccleshare, o primeiro projeto idealizado por mim de cabo a rabo (contracenei com Paulo Marcello, da Cia. Razões Inversas). Eu quis trabalhar com o Marcio para também me sentir mais perto da Marilena. E isso foi recente, há menos de dois anos, quando fomos premiados no Cultura Inglesa Festival e depois fizemos uma linda temporada no Sesc Pinheiros.

Queria muito passar pela vivência de ser dirigida pelo Marcio com toda essa bagagem que eu trazia da Marilena. E aí lembro que nos momentos mais difíceis do processo de criação eu fincava o pé no chão do palco e tentava me sintonizar com a Marilena. Eu me perguntava: “Como ela faria isso?”. E todas as vezes em que perguntei de verdade, pude me deparar com ótimas soluções. Algumas, inclusive, bastante inusitadas porque sei também que ela nunca teve medo de ser uma palhaça, apesar de muito intensa. Uma fênix que precisava morrer para renascer a cada sessão, no palco.

Mas eu gosto de imaginar também a figura dela como essa palhaça que não tem medo do ridículo e tampouco de propor ideias e ações que fogem da caixinha, da cena bonitinha e tal. Isso eu sinto que herdei, ou melhor, eu posso dizer que tenho a felicidade de me sintonizar com essa coisa que eu gosto muito, e que cultivo ferozmente, de um certo delírio que tenho sobre a Marilena.

Então, além de sonhar e colecionar essas pistas preciosas eu busco tatuá-la no meu próprio corpo de atriz-bailarina, na minha própria vivência artística. Sei que ela me confiou um tesouro. Porque certo dia, eu, uma menina de 22 anos, bati em sua porta dizendo que amava o teatro e a amava. E então falamos quase que sem parar por cerca de cinco horas seguidas. E nesse mesmo dia ela me confiou uma caixa de papelão florida, com todos os seus arquivos profissionais: fotos, programas, gravações dos espetáculos em CD, etc. Material oferecido para eu poder copiar e usá-lo no estudo de que tratei um pouco nestas linhas.

A partir daí entendi que sou uma das suas guardiãs e que, assim como muitos outros artistas que foram diretamente atravessados por ela, possibilitamos que essa roda siga girando. Porque é uma memória que não é só de um passado romantizado, mas que também diz respeito, absolutamente, ao momento presente. Ainda mais neste tempo cruel em que vivemos.

Diria que é um ato extremamente político tudo o que ela ensinou: a lutar pela nossa própria liberdade artística, a buscar a nossa própria expressão. É essa a sina autoral de uma intérprete criadora que não está passivamente na cena, mas que tem uma inteligência em si, uma sensibilidade para também se inscrever através dela, a cena.

Uma atriz-autora que contribui diretamente para as relações que o corpo cria com os figurinos, adereços, objetos e o espaço cênico como um todo. E de uma forma muito sofisticada, integrada à condição de buscadora, nesse faro intuitivo, obsessivo e muito dinâmico. Ela não economizou revolta, transgressão, crítica, inclusive diante das próprias regras do teatro e da dança. Soube conjugar, de maneira ímpar, essa relação sutil entre o seu “eu” e o nosso “nós”.

Sempre se apresentou em primeira pessoa, mas buscando uma relação direta, íntegra, com a dimensão social e principalmente com a figura da mulher. Ela também assumiu um ponto de vista peculiar a cada imersão em nossa literatura. Infelizmente, poucos conhecem a sua obra. A minha geração, por exemplo, quase não ouviu falar dela.

No dia 10 de dezembro de 2019, testemunhei sua despedida artística no auditório do Museu de Arte de São Paulo, o Masp, através do espetáculo Depois, com direção do William Pereira e junto ao Studio3 Cia. de Dança. Ela fez uma curta, porém inesquecível participação. Foram cerca de 15 minutos. Todos sabíamos, mas não queríamos acreditar, que aquela seria a sua última dança.

Depois é um espetáculo sobre a passagem do tempo e as marcas dele em nosso corpo. Enquanto ela se agigantava em cena, víamos tudo se esfumaçar. E era como se ali mesmo já estivesse ritualizando sua passagem para uma outra dimensão. Pude acompanhá-la por alguns minutos no camarim e isso me fez compreender o tamanho de minha responsabilidade. Não só minha, evidente, mas de todos nós, artistas, num país e numa realidade que nos exige muito mais do que o sucesso oco ou o aplauso vazio de sentidos.

Adeus pela internet

No que ecoaram plenamente as vozes amigas e parceiras presentes no encontro virtual em homenagem a Marilena Ansaldi, em 13 de fevereiro, articulado pelo Portal MUD e EPID – Encontro Produção e Imprensa Dança SP, disponível no YouTube.

O diretor José Possi Neto reforça a inquietude da atriz-bailarina, o “comprometimento pelo ato físico de se queimar em cena”, citando o que o diretor polonês Jerzy Grotowski (1933-1999) dizia acerca da função do ator, de maneira que o ímpeto narcisista daria lugar ao sacrifício quando sobre as tábuas ou o linóleo. “A Marilena talvez tenha sido a atriz mais grotowskiana que tivemos. O mais gostoso é que na vida ela não era tão lírica e trágica quanto no palco. Era uma grande palhaça. Eu me diverti muito com ela”, diz.

A dançarina, coreógrafa e diretora Célia Gouvêa pontua a personalidade cênica da colega, a intensidade “incendiária”, a paixão e a entrega, características com as quais foi afirmando essa linguagem, “mais teatro e dança do que dança e teatro”, com ênfase na dramaturgia, embora não houvesse narrativa linear. “O volume do corpo dela, das mãos, dos braços… Parecia que ela era enorme. Como artista, tinha esse elo com o público, a comunicação muito grande, aquele vigor. Não espanta que também tenha interpretado tragédia, porque ela tinha essa marca dos grandes trágicos: uma energia, um impulso vital que está contido também no sofrimento”, afirma Célia.

Frame de vídeo por Fabio Audi A relação arte/vida, a ênfase na atuação em detrimento da representação, o trabalho a partir de suas habilidades psicofísicas e o desenvolvimento de um vocabulário próprio, além de um espetáculo de forte sentido “ritualístico”, poderiam transformá-la numa performer “fazedora” de performances

Bailarina cofundadora do Ballet Stagium, Marika Gidali declara que ela e Marilena se conheceram nos respectivos ofícios em 1953. “Foi uma luta eterna. A Marilena era muito forte, muito determinada e ao mesmo tempo muito gozada, ríamos o tempo inteiro das nossas desgraças, o que nos ajudou a levar a coisa para frente”, diz. Também houve relatos de Ana Terra, Anselmo Zolla, Antônio Carlos Cardoso, Esmeralda Penha Gazal, Evelyn Baruque, Inês Bogéa, Luis Arrieta, Simone Alcântara, Sônia Mota e Tuna Dwek, entre outras pessoas.

Documentário

A vida e a obra de Marilena Ansaldi movem a diretora e roteirista Sandra Delgado e a produtora Tatiana Martinelli a criar o documentário de longa-metragem EXISTI, centrado na mulher pioneira na linguagem da dança-teatro, ou do teatro-dança no Brasil, nos anos 1970. “Uma mulher à frente do seu tempo, que aos 86 anos reconta sua trajetória sem nenhuma censura e se despede da vida em meio ao caos da pandemia do coronavírus e do retrocesso político brasileiro”, conforme o material de divulgação.

Áudios trocados entre Marilena e a diretora serão o fio condutor do filme – estimado em 100 minutos de duração e em fase de pré-produção –, percorrendo um labirinto pessoal de memórias e seu testemunho dos eventos no mundo hoje. “Ela reflete sobre sua existência, fala dos trabalhos, dos anos de ditadura civil-militar, da sua liberdade artística, da luta contra a síndrome do pânico, da escolha em não ter filhos.”

Como identidade visual, EXISTI será composto por um mosaico de imagens de arquivo de várias décadas. Do primeiro espetáculo autoral, Isso ou aquilo (1975), à derradeira apresentação pública no solo Depois de tudo (agosto de 2019), no mesmo Masp.

Sandra e Tatiana intentam dar visibilidade à Marilena como força feminina: libertária, transgressora e revolucionária. Para boa parte do público de teatro, de dança e de artes em geral – que já a tem como uma artista de referência –, esse projeto objetiva ser um registro amplo e profundo sobre a sua obra, preservando o legado enquanto artista. Para espectadores que ainda não a conhece, as idealizadoras acreditam que serão inevitavelmente mobilizados por sua resiliência e seu corpo poético e político. Ambas esperam viabilizar o documentário em 2022, através de leis de incentivo.

Por falar em audiovisual, o canal do coreógrafo Anselmo Zolla no YouTube ouviu Marilena Ansaldi no segundo episódio da série De dentro pra fora, dedicada a imaginar outros futuros possíveis na arte e na sociedade. Transcrevemos um trecho dessa pensata tão contundente como esperançada:

“Estamos completamente perdidos, infectados na UTI do universo com relação à arte, cultura e educação aqui no Brasil… Sob divisão de classe, miséria, cada um cuida de seu quadradinho, em vez de cuidar de um todo de cada vez para que as coisas possam crescer.

Todos os artistas deste país são grandes heróis.

Sem utopia não dá para viver.

Ainda tenho uma chama de não ser alienada, de prestar atenção em tudo, tudo me interessa, porque tudo afeta a minha vida e a de todos.

Com relação à arte e à cultura…. Não se sabe o que virá depois dessa doença, desse horror, como é que as pessoas voltarão.

Será um novo mundo, um novo olhar? Não sei se será melhor ou pior.

Com 85 anos de vida, eu esperava que hoje eu pudesse falar um pouco melhor do que as coisas estão, mas infelizmente não posso dizer isso.

Antigamente era dificílimo também, e cada vez é mais difícil. O Brasil, então, o que eu tenho assistido, infelizmente, é sempre um retrocesso, um avancinho, dois passinhos para frente e 30 para trás. O Brasil fraturado por um presidente fascista. Ainda nesta idade eu teria que ver isso, outra vez passar esse filme? Que horror, que horror gente, não é possível que as pessoas não cresçam.

Coragem, companheiros. Cada idade, cada vivência de vocês, tenham isso dentro da alma, mantenham isso vivo, pois só isso vale a pena.

Um grande e profundo abraço neste país, que ele cresça.

Marilena Ansaldi.”

Com colaboração de Valmir Santos.

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Fabio Audi A artista e pesquisadora Laís Marques no camarim com Marilena Ansaldi após a sessão de ‘Depois’ no auditório do Masp, em dezembro de 2019

Laís Marques é artista, pesquisadora, produtora e professora de teatro em São Paulo. Mestre em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da USP. No âmbito artístico participou de residência junto à Quarto Physical Theater (Suécia), dançou no espetáculo MabeMa, dirigido pelo mestre japonês Tadashi Endo e ao longo da 29ª Bienal de São Paulo apresentou performances sob direção-geral de José Celso Martinez Corrêa. Dentre os últimos espetáculos em que trabalhou como atriz, destaque para Insetos (texto de Jô Bilac com a Cia. dos Atores/RJ), Heather (do inglês Thomas Eccleshare e direção de Marcio Aurelio junto à Cia. Razões Inversas) e Sala dos professores (de Leonardo Cortez, direção de Marcelo Lazzaratto com a Cia. de Elevador de Teatro Panorâmico). Desde 2019 dirige um núcleo de pesquisa sobre as dramaturgias da cena e, atualmente, faz parte da residência Vagamundos – Um Laboratório Cênico, sob direção de Maria Thais junto ao Centro de Pesquisa Teatral, CPT_Sesc.

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