Crítica
Em mais de ano informados sobre os riscos de gotículas e aerossóis que o ato de falar produz, assim como o mero aperto de mãos, artistas do Grupo Pândega de Teatro promovem um deslocamento de percepção, nos tempos enlutados, com a videoperformance A genealogia celeste de uma dança. Ela pousa uma noção cósmica no cume calmo e resoluto dos olhos do ator Luciano Chirolli.
Na companhia de texto que é sensibilizador na maneira como aguça imperceptibilidades diante de uma doença sem precedentes, por Juliana Leite, Chirolli observa os graus da desumanização em curso sublinhando que as transformações possíveis, de fato, moram nos detalhes. Em cerca de 20 minutos, pouco mais do presumido teto de uma cena curta, a minúcia virá nas respirações imagéticas, silenciosas e resplandecentes, como se a luz equilibrasse a escuridão das cavidades do ser e do planeta.
A equipe de criação faz do encontro dramaturgia-atuação um regime audiovisual que não se arrega de encarar o cenário distópico e busca transcendê-lo em carne, osso e utopia, no dizer da voz narradora.
Longe de escapismo, ‘A genealogia celeste de uma dança’ é uma obra concisa e pode ser captada como uma reza estética-existencial pela ‘magnitude de toda a compaixão, de todos os desejos, de tudo que é pleno e calmo’. Um fôlego para dias selvagens e tempestuosos
Há um caráter sinestésico que lembra experiências dramatúrgicas e cinematográficas do chileno Alejandro Jodorowsky, cuja peça As velhas foi montada há dez anos e deu lastro à formação do grupo que tinha na atriz Maria Alice Vergueiro uma das aliadas – ela morreu antes do terceiro mês da chegada da Covid-19 no Brasil.
Chirolli, seu fiel escudeiro artístico, atravessa aqui uma gama de sensações recepcionadas por quem está do lado de cá da tela. Misturam-se o caráter performativo e a aura teatral que lhe é indissociável, fazendo com que a palavra orbite corpo e pensamento.
O texto de Leite possuí sentidos poéticos, com andaimes para erguer paisagens ínfimas ou infinitas, numa jornada que vai das células ao firmamento, passando pelo ambiente doméstico. O estado insular dessa figura é fissurado, dimensionando o caráter pulverizador da solidão na atualidade.
É da ordem do encantatório o modo como a estrutura dramatúrgica toma tento do fenômeno que pintou o céu da capital e do litoral paulistas, no fim de tarde de 14 de abril de 2020, “um tecido lilás, rosa e laranja”, revisitado através de outro olhar: a arte como pulsão de vida.
Segundo explicou à época uma empresa de serviços meteorológicos, essa reflexão (note a liga da física com as ideias) ocorre porque o céu daquele dia, no primeiro mês da pandemia, apresentava muitas nuvens médias e altas e o ângulo entre Sol e Terra, com o pôr do sol, fez com que os raios solares incidissem na base das nuvens e gerassem as tonalidades púrpuras.
Esse feixe de partículas está na cena de origem impressa no título, A genealogia celeste de uma dança, e dobra para a correlação do habitante da cidade com a natureza, os efeitos do empedramento d’alma. O trabalho gestado por quem vive na maior metrópole da América do Sul assume uma mística pessoal e coletiva avessa a tons messiânicos. A direção de Bruno Kott e a colaboração de profissionais afinados com o cinema em fotografia, música/mixagem e arte/montagem se achegam de uma esfera mágica ao raciocinar sobre (in)finitude e impermanência.
A liberdade de invenção – e de edição – é exercida com o comprometimento e a compreensão de que se está a endereçar um “documento para o futuro”. Feito defesa da alegria como prova dos nove em vista dos tantos erros que a humanidade cometeu e vem cometendo ao longo da história. Uma mensagem com disposição lúdica, a ser lida com mais abertura pelos “bichos, as pedras, as crianças e os loucos”, ecoando versos do mato-grossense Manoel de Barros, escritor que “queria ser lido pelas pedras”.
Longe de escapismo, essa obra concisa pode ser captada como uma reza estética-existencial pela “magnitude de toda a compaixão, de todos os desejos, de tudo que é pleno e calmo”. Um fôlego para dias selvagens e tempestuosos. Como algumas das melhores canções do baiano Raul Seixas em sua capacidade de abordar mistérios e prover consciência crítica.
Serviço:
Segunda a quarta, às 20h. Até 5 de maio
Sessões gratuitas, retirar ingressos pela plataforma Sympla
20 minutos
12 anos
Ficha técnica:
Atuação: Luciano Chirolli
Texto: Juliana Leite
Direção: Bruno Kott
Fotografia: Lucas Barbi
Assistente de câmera: Felipe Cardozo
Som direto: Deby Murakawa
Música e mixagem: Edson Secco
Arte e montagem: Diogo Hayashi
Direção de produção: Gabrielle Araújo
Produção: Mônica Vasconcellos e Elisete Jeremias
Assessoria de imprensa: Ana Luiza Ponciano
Gerenciamento de mídias sociais: Lucas Gouvêa
Design mídias sociais: Viviane Lamana
Correalização: Teatro Sérgio Cardoso e Espaço Pândega
Realização: Ministério do Turismo, Secretaria Especial da Cultura e Governo do Estado de
São Paulo, por meio da Secretaria de Cultura e Economia Criativa
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.