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Crítica

‘Épico’ e a produção virtual de presença

23.6.2021  |  por Luiz Fernando Ramos

Foto de capa: Brendo Trolesi

O teatro possível enfrenta o impossível. Ou uma cena plena em suas potências, traçada no espaço virtual como presença firme, nunca ausente.

Épico, da Cia Tercer Abstracto, parte de uma investigação honesta sobre um projeto canônico do século 20, o teatro épico, mas alcança, além de estabelecer uma versão inventiva, de raro frescor, sobre o seu ponto de partida, uma resposta franca às urgências do tempo. Tanto frente ao pandemônio em que o Brasil, ou seu desgoverno, transformou a pandemia, como às demandas dos meios disponíveis às encenações, sem abrir mão de alguma simultaneidade presencial e de vero impacto sobre os espectadores.

O prólogo se serve das práticas correntes de escrita em redes sociais para articular um sutil e problemático coro induzido, que mesmo precário e improvisado ata os assistentes e os proponentes em um acordo prévio, que por sua vez carregará todos à encenação propriamente. Sugerir ao público que feche os olhos e imagine a situação imediata anterior ao início de um espetáculo, um teatro com todas as suas circunstâncias, é um ardil poderoso.

Como acontece na maioria das encenações inspiradas em Brecht, o final, que neste caso é abrupto, não deixa de manifestar uma esperança na revolta, que poderia transformar a vida não só daqueles dois personagens como do próprio público que os assiste. O coro, buscado desde o início, ainda é uma impossibilidade, só que a vontade de o encontrar se fortaleceu. Afinal, o espetáculo também compartilha com a tradição brechtiana a contraditória combinação de pensamento crítico agudo com desejo de redenção mágica

Quando as primeiras imagens aparecem, contrastadas com as palavras escritas que antes sustentavam o jogo, o espectador é arremessado ao plano do encantamento, revelando-se uma narrativa ancorada no teatro de sombras. A simplicidade e delicadeza do discurso visual formalizado contrastam com a ambição do tema que se vai explorar, ainda motivados pela questão inicial e didaticamente proposta no preâmbulo, a de como se criar um coro efetivo? A resposta será uma pequena história das lutas sociais desde a Idade Média – que calha como um pano de fundo para o foco na peste bubônica, transcorrida naquele período e pivô de uma aproximação à versão contemporânea do Covid 19 – até o imediatíssimo presente de um país conflagrado.

A primeira parte desse arco narrativo é épica num sentido mais amplo. Uma voz sobreposta às imagens sugestivas dos recortes em negro e dos traços finos e marcantes de gravuras. Num segundo momento, porém, já se revela plenamente o dispositivo construtor daquele encantamento: os manipuladores no exercício de constituir as imagens aparecem em ação, contrastados em simultaneidade com as próprias, desvendando o processo criativo e acrescentando-lhe em paralelo sua dissecação ao espectador. Esta nova camada imagética já acena para o épico na perspectiva específica do teatro de Brecht. Pode-se também relacioná-la ao bunraku, teatro de bonecos japonês em que os manipuladores convivem abertamente com suas criaturas mais diminutas. No entanto, qualquer que seja a referência, aqui épico ainda aparece na sua generalidade.

Brendo Trolesi Mateus Fávero e João Marcelino em cena de ‘Épico’; lançando mão de narrações, teatro de sombras e vídeos, a construção artística teve como ponto de partida as elaborações sobre o teatro épico discutidas pelo dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956) no texto-manifesto ‘Um pequeno órganon para o teatro’ (1948)

Quando a narradora, amparada pelas sombras e pelos desenhos inspirados que sustentam sua narrativa das revoltas sociais, chega à Revolução Francesa, ocorre uma segunda disjunção da linguagem cênica. A ilustração evocativa dá lugar ao realismo e à estrutura dramática, por natureza dialógica. Dessa vez o contato com Brecht será mais explícito, pois a trama se desenvolverá, crescentemente, com rupturas narrativas em que os dois atores interrompem a representação para discutir com os espectadores suas trajetórias, suas atitudes e dificuldades em uma situação pandêmica. Os dois moram juntos em um apartamento, onde a ação transcorre nas condições opressivas da quarentena. À exemplo da clássica “cena de rua” do não menos canônico Ensaio sobre o Latão, de Brecht, aqui o que está em jogo não é só o aspecto melodramático, de personagens que sofrem e lutam para serem mais felizes. Nesta “cena de apartamento” os atores, no famoso proceder pelo estranhamento, perguntam a si e aos espectadores, sincera e explicitamente, o que fazer para que aqueles dois personagens que encarnam rompam com a passividade e o conformismo. Como fazê-los agir, ou agir de outro modo, e modificar a situação opressiva em que se encontram. Como acontece na maioria das encenações inspiradas em Brecht, o final, que neste caso é abrupto, não deixa de manifestar uma esperança na revolta, que poderia transformar a vida não só daqueles dois personagens como do próprio público que os assiste. O coro, buscado desde o início, ainda é uma impossibilidade, só que a vontade de o encontrar se fortaleceu. Afinal, o espetáculo também compartilha com a tradição brechtiana a contraditória combinação de pensamento crítico agudo com desejo de redenção mágica.

Mas, nessa bela realização, parece importar, mais do que a fidelidade ao tema ou o atendimento às urgências de uma crise social e sanitária sem precedentes, o feito estético em si. Estabelece-se uma cena que se impõe e se narra pelos meios virtuais sem perda de eficácia nos seus objetivos enquanto encenação. Isto com recursos de baixa complexidade tecnológica e inventividade abundante. No caso, tratava-se de visitar o épico e dialogar com ele sem preconceitos, o que provavelmente colaborou no resultado. Mas o fato de o espectador esquecer, ou não atentar, a uma falta, a uma presença faltante, é eloquente. Talvez tenha ajudado a utilização de materiais gravados antecipadamente que não aparecem como tais. Supõe-se aqui, salvo engano, que tanto o “teatro de sombras” como a “cena de apartamento”, acessados quando se vai ao streaming, são coisas já prontas manipuladas ao vivo como se ocorressem em tempo real. Mas esta estratégia não tem a menor importância em si, ou não deprecia em nada o conquistado, pois a cena sucedeu e se impôs como uma presença corrente, viva e impactante. Uma legítima cena épica, que ao sonhar atingir corações e mentes mal ou bem os atinge, e os afeta e transforma.

.:. O espetáculo Épico, da Cia Tercer Abasctracto, teve exibições de 15 a 31 de janeiro de 2021, via plataforma Zoom. Em 2 de abril, participou da programação do ciclo Crítica em Movimento, organizado pelo Itaú Cultural. Cofundada pelo diretor chileno David Atencio e pelo ator brasileiro Mateus Fávero, a companhia surge em 2012 com o objetivo de investigar e experimentar, a partir das abstrações das artes visuais, diversas estratégias cênicas para a elaboração de suas peças. Para tanto, investiga os principais manifestos teatrais que revolucionaram a cena no século 20.

Brendo Trolesi Atriz Giu Castro como a Cartomante em atendimento virtual: na linha de tempo da sinopse, os anos do calendário já haviam chegado ao número de 1348 quando uma peste mortífera atacou a Europa; estamos em 2020, vivendo um épico momento, em níveis nacional e internacional, que parece não ter saída

Ficha técnica:

Épico

Direção: David Atencio

Artistas convidados: Giovanna Monteiro, Giu Castro, Marô Zamaro e Paulo Eduardo Rosa

Acompanhamento crítico-pedagógico: Amanda Tavares Dias

Criação e conceito de cartelas – Unidade 1: Vicente Antunes Ramos

Criação e conceito Teatro de Sombras – Unidade 2: Marô Zamaro

Direção de fotografia – Unidade 3: Mateus Fávero

Manipulação de Teatro de Sombras: Mateus Fávero e Marô Zamaro

Iluminação: Matheus Brant

Música original: Pablo Serey

Design gráfico, fotografia e videomaker: Brendo Trolesi

Produção: Jota Rafaelli (MoviCena Produções)

Apoio técnico-operacional: Fellipe Oliveira e João Marcelino

Assessoria de imprensa: Canal Aberto Assessoria

Realização: Cia Tercer Abstracto

Professor titular de história e teoria do teatro da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

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