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Crítica

A ruptura pela palavra

11.8.2021  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Gabrielle Guido

No conto O artista da fome (1922), o protagonista de Franz Kafka lamenta não jejuar além dos 40 dias estabelecidos pelo seu empresário, de olho no tempo de interesse da audiência. A prostração dentro de uma jaula, para regozijo do público pagante e vigilante de que não sabotará o pactuado, não é uma ação performada, mas deliberada. O faquir justifica não encontrar no mundo alimento que, de fato, o sacie. Já na peça A filha da Monga, atuada por Zeca de Abreu e escrita por Luiz Marfuz, a personagem encontra na palavra o sustento da alma (e da linguagem) para ganhar consciência crítica e contrariar o roteiro que o padrinho, patrão e algoz delineou para Luzia, assim como fez com a mãe dela.

Durante anos a afilhada fora obrigada a executar, numa tenda noturna, o tradicional número em que a dançarina se transforma em monstro. A metáfora ganha ares de analogia como uma afronta à dignidade humana a partir dos fios da formação da criança, da adolescente e da agora adulta. Na narrativa caleidoscópica – que dá asas à fabulação amparada na mitologia e sopesada na realidade da condição da mulher – prevalece a sensibilidade feminista como base do processo de autoconhecimento atravessado por muita dor, solidão e transfiguração, esta sim, fruto de coragem da personagem em romper o ciclo vicioso e ilícito a que estava submetida.

Naquela noite, a turba de frequentadores testemunhará um espetáculo extraordinário. Sua fúria será literal e à altura. A menina outrora ‘inservível’ fará jus ao nome em latim, a portadora de luz, desassombrada da escuridão que até então disputava o território da memória com o fértil imaginário da literatura e do ato de se manifestar, desejar

Em meio aos instintos mais destrutivos da maioria dos homens que lhe cruza o caminho, e sem necessariamente produzir rancor ao sexo oposto, ela se deixa encantar pela enunciação, sua valia para o reconhecimento de si, do outro e do mundo. “Aprender palavras para me defender e crescer na vida”, descobre.

Subentende-se que a ação se passa em alguma cidade do interior da Bahia. A tomada de consciência se dá por meio de uma colega da escola, Dyami, vinda de São Tomé e Príncipe, intuitiva e dona de sabedoria cultivada em livros, a ponto de lhe dar de presente de aniversário um dicionário, catatau de capa dura que não demora a ser mais amado que a Bíblia, deixando-se enamorar por vocábulos como “alumbra” e “enternecer”. A professora de artes manuais também se afeiçoa de Luzia e vira outra influência decisiva no apego ao ato de palavrear.

Enquanto narra, a personagem assume demais vozes e deslizamentos para ações de fato. Seu relato em “conversação” destina-se a uma “doutora” oculta, aquela que a ouve e, por isso, canal de identificação para quem acompanha a criação audiovisual no YouTube e se vê no lugar de escuta. Procedimento parecido com o papel das profissionais interlocutoras da poeta fluminense Stela do Patrocínio e do artista visual sergipano Arthur Bispo do Rosário em instituições psiquiátricas, ambos muito bem saudados na dramaturgia brasileira.

Escrito para a atriz Zeca de Abreu, o monólogo sugere algumas associações entre o inventado e o vivido, como se a atuante e Luzia fossem siamesas, nos limites da ficção. Essa combinação fica mais explícita quando se sabe que o espetáculo resulta da formatura de Abreu no curso de interpretação da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia. Interrompida no início dos anos 1990, devido às produções que emendou, a graduação foi restabelecida e devidamente azeitada pelas experiências da vida e dos palcos aos longo de 30 anos – mesma idade presumida da personagem a rememorar seu caminho pessoal.

Divulgação Zeca de Abreu encomendou o texto a Luiz Marfuz há cerca de três anos e ‘A filha da Monga’ ganhou corpo em 2021; com 30 anos de carreira na Bahia, atriz também é diretora, produtora e fundadora da Ouroboros Companhia de Investigação Teatral (2003), nascida Trupe da Zequinha

Marfuz, por sua vez, incorpora ao drama memórias do circo na infância em Coaraci, no sul baiano, onde nasceu e se recolheu por alguns meses durante a pandemia. Foi lá que escreveu boa parte da nova peça e incorporou a manifestação popular das lonas ou parques de diversão em que uma artista de trajes sensuais é convertida em gorila e simula escapar da jaula, para pânico da plateia. A técnica ilusionista feita por meio do jogo de espelhos é a antítese das desilusões que a personagem enfrenta.

Chama a atenção a eloquência do pensamento de Luzia, de como a ingenuidade cede aos poucos à inquietude. Marfuz assenta a questão de gênero sintetizada pela romancista francesa Simone de Beauvoir na frase “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”, do livro O segundo sexo (1947), repercutida no movimento feminista dos anos 60.

“Não nasci para ser mostrada que nem bicho de porão”, diz a estudante que em criança tardou a falar, a destravar o verbo, e ora sonha ser escritora. “O melhor do ser humano é querer”, repete o conselho de Dyami, a quem trata por “rainha” e vai formar, com Zafira, um trio que enfrenta xingamentos no colégio, sobretudo dos meninos. Elas se percebem fortalecidas pelas possiblidades vitais, contrariando privações impostas por pais ou responsáveis numa sociedade estruturalmente machista.

Caso do padrinho de crisma, cujo nome jamais é citado e o caráter predatório se escancara. Ele é uma espécie de tutor, sujeito que explora a mulher da vez, a proíbe de cursar faculdade na capital e arranca-lhe o futuro, como ela diz. Acuada, a filha única que não conheceu a mãe, expulsa da cidade – “Minha mãe era bicho e virou santa” – e tampouco o pai toma tento da engrenagem montada por aquele que deveria provê-la do necessário na ausência dos ascendentes.

Mesmo com o trabalho forçado e distante das amigas, Luzia não abandona o hábito da leitura, seguindo outro conselho ouvido lá atrás, de Dyami: “Quando o monstro chegar, bota a cara nos livros e voa”. Foi como suportou conviver por um tempo com o homem que, não bastasse tudo, ainda lhe faz outras revelações tardias, cruéis e criminosas.

Enquanto lambia feridas e enfrentava tristezas profundas, leu sobre a história da dançarina e cantora mexicana Julia Pastrana, no século XIX, que tinha o rosto e o corpo cobertos por cabelos pretos lisos, por razões genéticas, e acabou se tornando atração de circo. Ela se casou com um estadunidense que também mediava suas apresentações. Mesmo tendo vivido apenas 26 anos, morta após o parto em que também perdeu o bebê, Pastrana teve seu corpo conservado quimicamente e continuou sendo explorado pela curiosidade mórbida.

Nesse ponto da jornada, a protagonista de A filha da Monga desencadeia um processo de mutação distinto do truque do padrinho ao se disfarçar de gorila enquanto a afilhada simula fugir da jaula feito animal. Naquela noite, a turba de frequentadores testemunhará um espetáculo extraordinário. Sua fúria será literal e à altura.

A menina outrora “inservível” fará jus ao nome em latim, a portadora de luz, desassombrada da escuridão que até então disputava o território da memória com o fértil imaginário da literatura e do ato de se manifestar, desejar.

Divulgação A personagem Luzia ouve da colega Dyami: “O profundo da mente é tão profundo que esconde as verdadeiras verdades, e que nós mulheres feitas, coisa que nem sei se sou, vivemos assombradas pela noite que cobre a memória”

Desafiada à atuação em modo montanha-russa, transparecendo a ternura do olhar infantil, o horror da mulher violentada, a beleza da sexualidade e a força hercúlea para quebrar a máquina de abusos e ignorâncias, Abreu prospecta o baú da arte que carregou até aqui, apropriando-se firmemente da dupla via audiovisual-teatro. O trabalho da atriz alcança intimidade com a escrita e a direção de Marfuz, o que, a rigor, são codependentes da capacidade de entrega dos demais criadores na elaboração de atmosferas e vinhetas costuradas à narrativa.

Por fim, outro aspecto que a montagem propicia refletir diz respeito à cultura do linchamento, seja ele moral ou físico, sempre carregado da emoção do ódio ou do medo, espraiando-se do bullying ao ambiente institucional do país conduzido por políticos de extrema direita. A ferrugem dominante em parte da cenografia parece acentuar esses anacronismos.

Estudioso do assunto, o sociólogo José de Souza Martins explica que a história dos linchamentos no Brasil recua até o século XVI, quando essa palavra ainda não existia, pois só surgiria no século XVIII, nos Estados Unidos. O episódio mais remoto de ação coletiva para punir alguém teria ocorrido em Salvador, em 1585, quando o índio Antônio Tamandaré liderava um movimento messiânico e foi assassinado pelos próprios seguidores, brancos incluídos. Segundo Martins, quem pratica a injustiça do linchamento tem certeza de que cumpriu um ato moralmente justo. Tipo de álibi do padrinho cínico que leva a afilhada ao inferno e ela busca sair de lá a qualquer custo. No final do conto de Kafka, o artista da fome sucumbe. Em A filha da Monga, o desfecho dá margem para uma mudança de rumo em meio a um “fluxo de afeição”.

Onde ver: no canal do Sesc Bahia no YouTube, disponível 24 horas por dia até 5 de setembro de 2021.

Divulgação Abreu em cena da peça de Marfuz, diretor teatral, dramaturgo, jornalista e professor da Escola de Teatro na UFBA, artista atuante na cena baiana há 40 anos

Ficha técnica:

Atuação: Zeca de Abreu

Texto e direção: Luiz Marfuz

Trilha sonora original: Luciano Salvador Bahia

Assistência de direção: Mateus Schimith, Lucas Modesto e Ícaro Bittencourt

Atores convidados vozes off: Aicha Marques, André Tavares, Edu Coutinho, Hebe Alves, Iami Rebouças e Kaika Alves

Preparação vocal: Iami Rebouças

Cenografia: Zuarte Júnior

Cenotécnico: Luiz Buranga

Figurino: Maurício Martins

Confecção figurino: Saraí Reis

Desenho de luz: Fernanda Paquelet

Colaboração de movimentação: Rita Brandi

Maquiagem: Janaína Abdon

Câmeras: Hilda Lopes Pontes, Klaus Hastenreiter e Thiago Duarte

Montagem: Klaus Hastenreiter

Roteiro audiovisual: Luiz Marfuz e Lucas Modesto

Coordenação de produção: Luiz Antônio Sena Jr.

Produção executiva: Gabrielle Guido

Assessoria de imprensa: Edu Coutinho

Arte gráfica: Michelle Vivas

Apoio: Acervo Boca de Cena, Coletivo 4,  Di Mercatto, Adote o Orgânico, Adoce Ação do Aprender para Multiplicar no Sertão, Coisando com Retalhos e Pé na Cena – Grupo de Pesquisa PPGAC UFBA

Parceria institucional: Sesc Bahia

Realização: Escola de Teatro da UFBA e Ouroboros Companhia de Investigação Teatral

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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