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Artigo

Sob o céu alaranjado de Pirandello

3.11.2021  |  por Chico Carvalho

Foto de capa: João Caldas Fº

Todos nós, em algum momento da vida, já despertamos depois de um cochilo e, ao olhar através da janela, a paisagem do lado de fora aparecia pregando uma peça aos nossos sentidos: aquele céu alaranjado estampado no horizonte seria o crepúsculo ou a aurora? Estaríamos nós diante do dia em seu amanhecer ou, ao contrário, testemunhas de um cenário de fim de tarde? Essa sensação de confusão dura pouco, é verdade, alguns segundos bastam para colocar a cabeça nos eixos e voltarmos à certeza de que os ponteiros do relógio estão novamente sob nosso comando.

Há alguns poetas, no entanto, que gostam de projetar esse embaralhamento de consciência para discussões mais profundas a respeito da natureza do ser humano. O limiar entre uma coisa e outra, essa faixa indistinta de transição que autoriza a aparição de encantamentos e fantasmagorias estaria no cerne do desequilíbrio que é a própria vida. Nesse sentido, o homem não pode agarrar-se à segurança que nasce pela força da razão convicta, mas é obrigado a dividir-se em um estado de constante tropeços em que a realidade confunde-se com a fantasia, a sanidade com a loucura.

Talvez aqui já dê para revelar de maneira mais exata a gênese atormentada dessas figuras, lá de onde saíram Hamlet, Dom Quixote e Henrique IV: são fruto da operacionalidade própria do teatro, atores brincando seriamente de representar papéis. A exemplo do machadiano Brás Cubas, que primeiro morre para depois narrar as suas memórias, são eles também elementos pertencentes ao terreno épico – olham diretamente para a plateia com a certeza de que o tempo dramático, aquele da história que corre conforme os ponteiros do relógio avançam, já não pode mais servir aos intentos da trama à qual pertencem. Embaralham os nossos sentidos na mesma proporção com que o céu alaranjado, depois de um cochilo, faz confundir aquilo que pensamos ver

William Shakespeare (1564-1616) nos coloca debaixo de um urdimento semelhante a esse, as suas personagens amplificam uma qualidade de mudança que está intimamente ligada ao movimento do que acontece em cima de suas cabeças, nos fazendo entender que o palco é ele próprio um céu alaranjado de difícil precisão, e que as figuras que nele pisam devem dar conta de transitar no perigoso limiar de um precipício. Hamlet e também Dom Quixote, do espanhol Miguel de Cervantes (1547-1616), estão nesta categoria. São figuras inacabadas, até certo ponto imaturas e infantis, mas que justamente por essa incompletude conseguem alcançar um nível elevado de elaboração do discurso. São personagens marginais e translúcidas, e por andarem na periferia conseguem enxergar mais e melhor o que acontece no centro nevrálgico de toda a ação. Henrique IV é outro que pertence a esse mesmo time. Mas não o Henrique IV do Bardo inglês, e sim o de Luigi Pirandello (1867-1936), protagonista de uma história quase simplória e semelhante a um conto de fadas: era uma vez um homem que durante uma brincadeira de Carnaval cai do cavalo e bate a cabeça, passando a se fingir de louco e exigindo que todos ao seu redor continuem representando as mesmas personagens fantasiadas daquele dia fatídico. É o exemplo mais bem-acabado de uma tragicomédia cara ao dramaturgo italiano. Pirandello toca na frágil questão da identidade do homem comum, da desgraça que é o fato de termos de acreditar o tempo todo naquilo que imaginamos ser diante dos outros, rezando para que a imagem que produzimos de nós mesmos seja aquela processada por quem nos enxerga. Enfim, uma vez que somos apresentados a esse mundo começa uma corrida desesperada por uma máscara que possa se encaixar melhor em nossas faces, o que evidentemente nunca acontece, dando vazão a um processo infinito de tentativas e erros até o final da vida. Pirandello é ainda mais genial que Shakespeare nesse quesito, já que suas personagens protagonistas são completamente destituídas de qualquer importância elevada, representantes mais próximas daquilo que somos nesse tempo contemporâneo: um contingente enorme de Zé Ninguéns em busca de algum enredo que nos faça sentido.

Talvez aqui já dê para revelar de maneira mais exata a gênese atormentada dessas figuras, lá de onde saíram Hamlet, Dom Quixote e Henrique IV: são fruto da operacionalidade própria do teatro, atores brincando seriamente de representar papéis. A exemplo do machadiano Brás Cubas, que primeiro morre para depois narrar as suas memórias, são eles também elementos pertencentes ao terreno épico – olham diretamente para a plateia com a certeza de que o tempo dramático, aquele da história que corre conforme os ponteiros do relógio avançam, já não pode mais servir aos intentos da trama à qual pertencem. Embaralham os nossos sentidos na mesma proporção com que o céu alaranjado, depois de um cochilo, faz confundir aquilo que pensamos ver. Hamlet, Dom Quixote e Henrique IV projetam na cena o que há de mais básico no ofício de um ator: todos se apresentam como intérpretes de si mesmos, sabem perfeitamente que há uma distância entre o rosto e a máscara que vestem, e que é por intermédio dessa fresta tornada visível que se pode brincar de ser o que não se é. Uma brincadeira, novamente, bastante séria, e que não se restringe a uma ingenuidade barata. Agindo dessa forma, evitam a construção de uma identidade própria.

Divulgação O dramaturgo italiano escreveu ‘Henrique IV’ em 1922 e foi contemplado com o Nobel de Literatura em 1934, período marcado pelo deslumbramento do homem frente às inovações da modernidade: “Pirandello fez do teatro o protagonista de seu teatro. Encontrar com ele no palco é como oferecer à plateia uma espetacular aula de como a dramaturgia mais simplória pode esconder uma profundidade gigantesca”, afirma Chico Carvalho

Tal como um ator que representa papéis, Hamlet, Dom Quixote e Henrique IV são muitos, mas, ao mesmo tempo, padecem da dificuldade de afirmar uma única face. Se um ator é virtuoso por saber emprestar-se a diversos papéis, é ele também vítima do vazio que surge no instante em que retira a maquiagem do rosto e se depara com suas próprias linhas de expressão refletidas na imagem de um espelho do camarim. Henrique IV, ao olhar a lua, manifesta essa mesma melancolia: “Quem poderia adivinhar ao olhar a lua que ela sabe que oitocentos anos se passaram e que eu não posso ser de verdade Henrique IV, esse pobre homem que contempla a lua.” Um dado importante é que Pirandello nunca revela o nome deste homem que se faz passar por Henrique IV, o que vemos é apenas a performance desse sujeito sem identidade na tentativa de seguir adiante com um jogo que em algum momento terá forçosamente de terminar, assim como em qualquer espetáculo há uma hora em que os refletores do palco serão desligados e a cortina cerrará suas franjas.  

Pirandello, além de todo conteúdo filosófico que apresenta através dos solilóquios de Henrique IV – o principal deles é o de escancarar a enorme facilidade com que um bando de gente se dispõe a fazer papel de bobo diante do comando de figuras explicitamente artificiais, agindo como um coro de patetas só para não contrariar as ordens que lhe são dadas (alguma semelhança com o nosso tempo?) –, é ele também dono de uma teoria estética a respeito do teatro e do trabalho do ator. E aqui vai mais uma das contradições desse enorme dramaturgo do século XX: se na sua peça mais famosa, Seis personagens à procura de um autor, Pirandello tece a defesa da dignidade da obra pura que nasce transparente por intermédio do esforço de um autor –  atacando os atores em suas tentativas de reproduzir aquilo que já nasceu pronto, as próprias personagens –, mais à frente o mesmo Pirandello fará de seus espetáculos uma ode às engrenagens artificiosas do teatro, e reverenciará de maneira clara o trabalho do ator ao fazer dele um exemplo de consciência dessa vida eternamente cindida pela realidade e pela loucura, e que é suprimida daqueles que se imaginam fiéis a um espetáculo do qual pouco dominam. Em determinado momento, Henrique IV atira o verbo para a plateia com as seguintes altercações: “Eu estou curado, senhores, porque sei perfeitamente representar um louco aqui. A desgraça de vocês é que vivem a sua loucura freneticamente sem na verdade conhecê-la, e muito menos enxergá-la.”

E para finalizar, neste tempo em que as mais patéticas escatologias se transformam em narrativa mediante a certeza de que cada um tem daquilo que gira ao redor do próprio umbigo, é preciso dizer que Pirandello é, sim, um questionador das verdades absolutas – um relativista nato –, mas assim o procede por intermédio da dúvida, nunca das convicções. O que ele promove na sua literatura e no seu teatro é um alerta a respeito da deslumbrante capacidade do ser humano de se transformar numa marionete ignorante ao abandonar a crise própria que lhe é inerente: somente um sujeito muito certo daquilo que acredita pode entregar-se às mais estúpidas teorias. O questionador, ao contrário, desconfia das verdades, das personagens acabadas, é ele próprio um espectador fiel do teatro ao qual pertence, ao mesmo tempo em que é o ator protagonista da cena: admite que a divisão é parte fundamental da alma humana, e que o caminho mais rápido para o abismo nunca está nas mãos destes que padecem da melancolia da dúvida, mas dos outros, do exército de patetas que se deixa levar pelas mais absurdas ordens de comando. Pirandello fez do teatro o protagonista de seu teatro. Encontrar com ele no palco é como oferecer à plateia uma espetacular aula de como a dramaturgia mais simplória pode esconder uma profundidade gigantesca.

Divulgação Marcello Mastroianni no filme ‘Enrico IV’ (1984), do diretor italiano Marco Bellocchio, livre adaptação da peça de Pirandello ao cinema

Sinopse:

Proto-Henrique IV

Pirandello explora os limites entre loucura e lucidez a partir da estória de um homem que, após uma queda do cavalo e uma pancada na cabeça, vive (ou finge viver) a personagem que representava no Carnaval, numa festa à fantasia. A produção do espetáculo estava sendo articulada desde 2019. As restrições sanitárias a partir de março de 2020, todavia, levaram seus criadores a adaptar o texto para duas personagens, Matilde e Henrique IV, interpretadas por único ator. Na dramaturgia original são 13 papeis.

Serviço:

Estreia 5 de novembro, 20h. Sexta a domingo, 20h. Até 5 de dezembro de 2021.

Ingressos gratuitos disponíveis na plataforma Sympla, aqui.

60 minutos.

12 anos.

João Caldas Fº Chico Carvalho no papel-título de ‘Proto-Henrique IV’, tradução e adaptação de Claudio Fontana para a peça ‘Henrique IV’, do italiano Luigi Pirandello, sob direção de Gabriel Villela e com sessões transmitidas ao vivo da sala Dina Sfat do Teatro Ruth Escobar

Ficha técnica:

Com: Chico Carvalho

Texto: Luigi Pirandello

Tradução e adaptação: Claudio Fontana

Direção, figurinos e cenografia: Gabriel Villela

Diretor assistente e iluminação: Ivan Andrade

Contrarregra/camareiro cênico: Breno Manfredini

Canto e arranjos vocais e instrumentais: Marco França

Assistente de figurinos: José Rosa

Adereços de arte: Jair Soares Jr

Costureira: Zilda Peres

Maquiagem: Claudinei Hidalgo

Fotografia: João Caldas Fº

Assistência de fotografia: Andréia Machado

Programação gráfica: Renata Monteiro

Diretor de palco: Alexander Peixoto

Produção executiva: Augusto Vieira

Direção de produção: Claudio Fontana

Ator formado pela Faculdade de Artes Cênicas da Unicamp (2000); mestre em Multimeios (2009); e doutor em Artes da Cena (2018), ambos departamentos do Instituto de Artes da mesma instituição. Atuou em espetáculos dirigidos por Gabriel Villela, como Estado de sítio (2018), de Albert Camus; Boca de ouro (2017), de Nelson Rodrigues; A tempestade (2015), de Shakespeare; e o infantojuvenil Peer Gynt (2016), de Henrik Ibsen, pelo qual recebeu o Prêmio FEMSA de melhor ator. Protagonizou Ricardo III (2013), de Shakespeare e direção de Marcelo Lazzaratto, papel que lhe rendeu o Prêmio Shell de Teatro SP. Diretor e dramaturgo da Cia do Bife, fundada em 2016.

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