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Reportagem

Molière tem mais futuro do que passado

23.2.2022  |  por Neomisia Silvestre

Foto de capa: Jan Versweyveld

Uma família é completamente perturbada com a chegada de um mendigo piedoso, acolhido pelo rico viúvo Orgon. O encontro com o desconhecido lhe dá um novo sentido à vida: um desapego material e espiritual. Em contrapartida, causa uma cegueira absoluta em relação às intenções deste que se passará por confidente e conselheiro austero para, então, seduzir sua atual esposa, evocar os ressentimentos do filho e herdar todos os bens do anfitrião. O enredo de Le Tartuffe ou l’hypocrite, O Tartufo ou o hipócrita, não deixa dúvidas: estamos diante de uma peça do dramaturgo, ator e diretor francês Jean-Baptiste Poquelin, mundialmente conhecido como Molière (1622-1673). Escrita em 1664 e censurada logo após a estreia pelo rei Luís XIV (1638-1715) – sob a justificativa de críticas a falsos devotos –, a primeira versão do texto, em três atos, foi a escolhida pela trupe Comédie-Française para a abertura da temporada de espetáculos e ações em homenagem aos 400 anos de batismo do escritor, celebrado no dia 15 de janeiro. A data de seu nascimento ainda é desconhecida, todavia, sabe-se que a companhia, um teatro estatal, nasceu sete anos após sua morte.

Montado pela primeira vez pela trupe parisiense em atividade há 341 anos, o espetáculo tem dramaturgia do belga Koen Tachelet e encenação do também belga Ivo van Hove, diretor artístico do Toneelgroep Amsterdam, na Holanda, a partir de argumento do historiador Georges Forestier, professor emérito de literatura francesa na Universidade Sorbonne, autor da biografia Molière (Gallimard, 2018) e responsável por reconstituir o texto proibido.

Baseado no que chamou de “hipóteses genéticas”, o trabalho de arqueologia literária realizado por Forestier foi iniciado em 2010 com assistência da professora Isabelle Grellet, autora dos poucos versos imaginados para garantir as conexões e redistribuir certas passagens da versão de 1669 – estendida a cinco atos e a única publicada e admitida como definitiva sob o título de O Tartufo ou o impostor. Como teste de viabilidade dramática, Grellet encenou o texto com alunos do ensino médio e, como resultado, obteve apresentações públicas consideradas bem-sucedidas no final do ano seguinte.

Infelizmente, mesmo no mundo democrático, Tartufo é periodicamente re-imerso na fonte da juventude e se torna atual em todo o mundo. Molière sabe que a religião, nas mãos de alguns, é o instrumento de poder por excelência. Ele sabe que os radicais, os fanáticos, aqueles que agora são chamados de fundamentalistas, usam a caricatura perversa de um deus tirânico e aterrorizante como arma de estupefação absoluta. Constrangido pelo rei, pela corte, pelo dinheiro, pela moral, Molière enfrenta tudo isso. Ao escrever, e especialmente ao atuar, esclarece o espectador sobre o poder, a ganância, o casamento forçado, o estupro, o escândalo do status das mulheres, os fanáticos. De caneta na mão, transgride sua época e, muitas vezes, até a nossa. Sim, ele tem, tenho certeza, mais futuro do que passado

Ariane Mnouchkine, diretora do Théâtre du Soleil

Tartufo ou o impostor é paradoxalmente a peça mais representada, mas a mais longamente ignorada na sua primeira versão. Muito à frente da comédia O avarento (1668), é a obra mais executada do repertório da Comédie-Française desde o século XVII, somando 185 apresentações em turnês e 3.193 na “Casa de Molière”, como é chamada a sede da companhia fundada por decreto do “Rei Sol”, como era conhecido Luís XIV, admirador das artes e responsável pela construção do Palácio de Versalhes. O soberano esteve no poder por 72 anos, entre 1643 e 1715, o mais longo reinado da história da Europa.

“Ivo van Hove vem pela terceira vez à Comédie-Française e foi a ele quem confiei a abertura da temporada Molière; criador que já encenou O misantropo (2012) e O avarento (2013), mas nunca com atores franceses. Para ele, Molière é apenas um grande dramaturgo, tal como Shakespeare ou Schiller, e não um herói nacional perante o qual a reverência seria essencial. Invejo esse despertar da liberdade porque sei como as noções de respeito e desrespeito nem sempre são tomadas no sentido correto quando se trata de teatro. Muitas vezes, na Casa de Molière, tentamos respeitar as vírgulas que ele nunca escreveu e que são fruto de transcrições tardias”, escreve o ator e cenógrafo francês Éric Ruf, administrador-geral da companhia desde 2014, em comunicado à imprensa.

Segundo Ruf, o quinto ato, até então, era exatamente o que impedia o diretor convidado de trabalhar com o texto. “Ele me perguntou se podia cortar ou reformular, respondi afirmativamente porque sempre admirei em muitos diretores estrangeiros a liberdade que se dão no que diz respeito ao repertório. E eis o encontro fortuito entre a densidade do teatro de um grande diretor e a versão lapidada de um imenso autor [Forestier]. Para nós, é quase a estreia mundial de uma peça de Molière em seu 400º aniversário”.

Figura importante da cena internacional, cujo campo de abordagem abrange o teatro, o cinema e a ópera, Van Hove leva ao palco da sala Richelieu, a principal da Comédie-Française – cuja capacidade é de 862 lugares e a inauguração data de 1790, um ano após o início da Revolução Francesa (1789-1799) –, uma tragicomédia clássica que se quer isenta de qualquer elemento vinculado a um “romantismo molieresco”. O diretor é conhecido do público da MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo: participou da 2ª edição, em 2015, com o monólogo Canção de muito longe (2015), no qual o protagonista, atuado pelo holandês Eelco Smits, precisava lidar com a morte de um irmão que mal conhecia.

Jan Versweyveld Na cena de ‘Le Tartuffe ou l’hypocrite’, ‘O Tartufo ou o hipócrita’, montagem do belga Ivo Von Hove para a Comédie-Française, que estreou em janeiro, o personagem Orgon (Denis Podalydès) flagra a esposa Elmire (Marina Hands) com Tartufo (Christophe Montenez)

Renomado por produções experimentais off-Broadway, Van Hove transporta a trama para uma atmosfera contemporânea, evidenciada pelos figurinos assinados pela designer An D’huys; pela iluminação e cenografia de Jan Versweyveld, ambos belgas e parceiros de trabalhos anteriores; além da música original criada pelo francês Alexandre Desplat, conhecido por compor trilhas sonoras de filmes como A forma da água (2017), O grande hotel Budapeste (2014) e Harry Potter e os talismãs da morte (2011).

Esta jornalista acompanhou uma das primeiras sessões da temporada de O Tartufo ou o hipócrita. Desde a primeira cena, marcada pelo banho coletivo que o personagem Tartufo (Christophe Montenez) recebe dos membros da família burguesa como forma de acolhimento – ou de limpar o passado deste sobre quem ainda não sabemos nada –, uma rítmica caótica é sugerida com a presença da equipe técnica em preparação do palco para início do espetáculo. Não estamos em uma casa, mas na ideia de uma. Semivazia, é possível ver os resquícios das demais produções. O cenário se adapta com o auxílio de seis contrarregras em cena e uma série de recursos para contar a história, como frases projetadas no telão ao fundo e a demarcação dos atos 1, 2 e 3 feita com a alternância de candelabros, postes com lâmpadas amareladas e leds, respectivamente.

O elenco é composto ainda por Denis Podalydès (Orgon, marido de Elmire); Loïc Corbery (Cléante, cunhado de Orgon); Marina Hands (Elmire, esposa de Orgon); Dominique Blanc (Dorine, empregada); Julien Frison (Damis, filho de Orgon); e Claude Mathieu (Madame Pernelle, mãe de Orgon). Esta, aos 70 anos, é a atriz mais velha da trupe, integrante permanente desde 1979, o que lhe concede o título de doyenne (decana).

“A ideia de uma encenação contando uma experiência familiar vem do fato de eu achar que as peças de Molière são dramas sociais que acontecem nessas pequenas células representativas que são as famílias, espelhos da sociedade como um todo. Dramas familiares, dramas conjugais que refletem uma sociedade em mudança, dividida entre tendências decididamente conservadoras – baseadas em uma ideia de coesão total, hierárquica e coletiva – e desejos mais individuais de emancipação, liberdade”, explica Van Hove em entrevista a Laurent Muhleisen, conselheiro literário da Comédie-Française.

Dramaturgo de língua francesa mais lido, interpretado e traduzido no mundo, Molière elevou a comédia a um gênero importante por meio de obras como Escola de mulheres (1662), Dom Juan (1665), O misantropo (1667), O cavalheiro burguês (1670), A trapaça de Scapin (1671) e O doente imaginário (1673).

Em uma noite – quando da estreia de O Tartufo ou o hipócrita nos jardins de Versalhes, em 12 de maio de 1664, por ocasião das festividades Reais –, passou de artista favorito e protegido do rei a homem ameaçado e perseguido pela Igreja e pelo conservadorismo da alta sociedade da época, dado o olhar afiado que lançou sobre os falsos religiosos. Em função do realismo e da vertente cômica de sua escrita, durante grande parte de sua vida artística sofreu perseguições e acumulou rivais.

Na biografia recém-lançada Molière – Quem é você? (Edition du Cerf, 2022), o pesquisador francês Boris Donné investiga a dimensão humana do autor a partir dos poucos documentos preservados ao longo dos séculos, e questiona quem realmente era para além das fantasias, lendas e rumores sobre sua vida privada e sua morte, que muitos acreditam ter sido em cena.

“De quase todos os grandes escritores de sua geração [Pierre Corneille (1606-1684) e Jean Racine (1639-1699)], conhecemos pelo menos algumas cartas. Às vezes, após o desaparecimento de um escritor, seus amigos publicavam uma coletânea de seus pensamentos e opiniões particulares, retirados de cartas ou anotações feitas após as conversas. De Molière, nenhuma carta de amor, nenhuma confidência. É como se esse homem tivesse permanecido desconhecido até mesmo para seus amigos íntimos”, escreve o doutor em letras e professor de literatura francesa do século XVII na Universidade de Avignon, sudeste da França.

Divulgação Composição de retratos de Jean-Baptiste Poquelin, o Molière, em coleção da Comédie-Française, companhia estatal fundada sete anos após a morte do autor, justamente com o intento de abrigar a trupe dele, Ilustre Teatro

Donné pontua que Molière será à sua época uma espécie de burguês-boêmio, que romperá apenas parcialmente com os valores de seu meio de origem. “É essa ambivalência que lhe permitirá retratar esse ambiente de dentro e satirizá-lo. Ele compreende seus comportamentos, lógicas e formas de pensar; continuará compartilhando alguns deles, mas terá a perspectiva necessária para denunciar seus excessos e ridículos.”

Primogênito de um casal de classe média, o comerciante e artesão Jean-Baptiste Poquelin (1595-1669), tapeceiro oficial do rei Luís XIII (1601-1643) e da jovem Marie Cressé (1601-1632), morta quando Molière tinha 10 anos, estudou em colégio jesuíta em Paris e, ainda na juventude, herdou o cargo de estofador, função também exercida pelos dois avós. O materno, Louis Cressé, foi o responsável por lhe transmitir o gosto pelas artes cênicas, levando o garoto à única sala permanente de Paris até 1630, o Hotel de Bourgogne. A burguesia formava ali uma parte importante do público.

Segundo Donné, o mais importante na infância do futuro Molière, para compreender sua trajetória e apreender certas questões acerca de sua obra, são suas origens sociais: “Acredita-se que, em suas comédias, ele queria conferir uma imagem da sociedade francesa do século XVII. Essa imagem, de fato, é muito parcial: ele retratou acima de tudo o que conhecia por dentro. Muitos dos personagens principais de suas peças – Arnolphe, Orgon, Harpagon, Argan, para citar apenas alguns – são burgueses confrontados com problemas próprios do grupo social do qual ele mesmo está incluído. Se o retrato crítico que fez da burguesia, revelando seu ridículo, suas tensões e seus problemas ainda nos fascina três séculos e meio depois de sua morte, é porque essa classe está em grande parte na origem da sociedade moderna”.

Em 1642, Poquelin iniciou os estudos em direito, em Orléans, mas abandonou o curso para dedicar-se ao teatro. No ano seguinte, aos 21 anos, ao lado da atriz e companheira Madeleine Béjart (1618-1672) e de mais oito artistas amadores criou o Ilustre Teatro, momento em que passou a assinar Moliere, grafado sem acento.

Segundo Noëlle Guibert, diretora do departamento de artes cênicas da Biblioteca Nacional da França, inúmeras são as suposições a respeito da origem desse nome artístico. Por exemplo, poderia ter sido emprestado do dançarino parisiense Louis de Mollier (1615-1688), que o próprio teria conhecido quando jovem. A questão permanece aberta e frequentemente desperta a curiosidade de espectadores.

Em publicação de 1991 da Comédie-Française, Noëlle explica que no século XVII os atores escolhiam referências herbais, florais ou geográficas para o autobatismo. “Do nome ‘Molière’ pode-se destacar a sílaba ‘lière’ e aproximá-la do nome da planta. Difundida na natureza em diferentes variedades, a hera comum ou trepadeira reveste paredes e forma bordas de caminhos em jardins. Há também a hera terrestre, que se encontra à beira de valas, na relva dos pomares. As virtudes medicinais de suas folhas frescas são reconhecidas há séculos, pois eram usadas ​​para acalmar tosses, asma e catarros pulmonares. Acrescentemos que a hera é também a planta consagrada na Antiguidade a Dionísio e associada ao simbolismo da criação poética: a coroa de hera correspondia à recompensa dos poetas inspirados pelos deuses”.

Após ser preso em 1645, devido às dívidas acumuladas pela trupe, o dramaturgo deixa Paris com o grupo e parte em itinerância pelas províncias francesas, percorrendo e se apresentando durante 13 anos por cidades como Rennes, Bordeaux e Toulouse. Sua primeira peça, O atordoado ou o contratempo, foi escrita em 1655, em Lyon.

Essa epopeia mambembe é retratada na produção cinematográfica Molière ou la vie d’un honnête homme, Molière ou a vida de um homem honesto (1978), escrita e dirigida pela encenadora francesa Ariane Mnouchkine, 82 anos, fundadora do Théâtre du Soleil, em 1964. Com Philippe Caubère no papel-título, o filme de quatro horas rodado na Cartoucherie de Vincennes, periferia de Paris e sede do coletivo desde os anos 1970, contou com a participação de 120 atores, 600 figurantes, 1.300 figurinos e 220 cenários e acessórios.

“Eu não queria fazer um trabalho cultural ou acadêmico. Queria fazer um grande filme popular onde nós contamos uma história que eu acho não apenas interessante, mas essencial, e da maneira mais acessível possível. Também para acessar a inteligência dos espectadores e todos os canais que o espetáculo pode nos dar. Ou seja, o prazer dos olhos, dos ouvidos, as lágrimas, o riso. Eu não vejo muros impermeáveis entre o cinema e o teatro. Acho que existem diferentes formas de espetáculos, mas é sempre uma maneira de tentar contar algo, e há diferentes técnicas e meios para isso”, responde a diretora à jornalista Anne Andreu no extinto programa Ciné Regards, veiculado no mesmo ano do lançamento.

Laurent P. Figurinos da exposição ‘Molière, a fábrica de uma glória nacional’, em cartaz em Versalhes até 17 de abril como parte das comemorações dos 400 anos de nascimento do dramaturgo

Disponível para locação na plataforma de streaming Vimeo, o filme traça uma narrativa a partir da infância do escritor, suas primeiras experiências teatrais, seus companheiros de trupe, fracassos, sucessos e lutas até a morte, em 17 de fevereiro de 1673.

“É quase o fim da Idade Média e o início do tempo moderno, o começo do Estado. É o fim de todo tipo de cultura popular e o começo de uma cultura mais oficial. E este homem, à maneira como participou, acho isso fascinante. Não é um filme sobre a obra de Molière, não é um curso – os professores são muito melhores que nós nisso –, é uma recriação a partir do nosso imaginário. Nos servimos de nossa experiência: a minha como encenadora, eles como atores e de nós todos como grupo, como era a trupe de Molière, para tentar compreender como ele viveu, resistiu e fracassou certamente. É um filme sobre sua vida mais do que sua obra. É sobre como a criança de 10 anos se constitui a partir de tudo que vê, que escuta, que gosta ou não e como tudo isso, nesse caso, o torna um autor. E que poderia também ter sido um pintor, um músico, um médico”, explica Mnouchkine.

Parte dos figurinos e algumas das máscaras utilizadas no longa-metragem integram a exposição Molière, a fábrica de uma glória nacional, até 21 de abril no Espaço Richaud, em Versalhes, a 21 quilômetros de Paris.

Com curadoria do dramaturgo francês Martial Poirson, professor de história e estudos de teatro na Universidade Paris 8 e autor do livro homônimo publicado em janeiro pela editora Seuil, a mostra reúne mais de 200 itens, entre eles: manuscritos, registros de encenação, croquis, fotografias, cartazes, pinturas, esculturas, desenhos, figurinos, maquetes de cenários, caricaturas, histórias em quadrinhos e projeções audiovisuais. É dividida em quatro partes – Genealogia de um grande homem (1622-1705); A construção de uma lenda (1705-1922); O mito revisitado (1922-2022); e Molière em figurinos, de ontem para hoje.

Como parte das celebrações organizadas pela prefeitura de Versalhes, em maio será inaugurado um busto criado pelo artista francês Xavier Veilhan. E, em junho, terá início o “Mês Molière”, em que 11 companhias profissionais são recebidas em residência e apresentam suas criações. Considerado uma incubadora de talentos desde 1996, o evento é uma espécie de aquecimento para o icônico Festival de Avignon, fundado em 1947 e idealizado pelo ator e diretor Jean Vilar (1912-1971) na cidade medieval do sudeste da França.

De volta à Paris e ao fio da história, o Ilustre Teatro apresenta As preciosas ridículas (1659) perante a Corte no Teatro Petit-Bourbon, localizado nos arredores do Museu do Louvre. Com o sucesso da peça, foi então concedido ao grupo o direito de se estabelecer no Palais-Royal, morada da Família Real à época. Sua trupe foi moral e financeiramente apoiada por Filipe I, irmão mais novo de Luís XIV. Em 1665, Molière foi nomeado chefe de entretenimento Real; momento em que passou a colaborar com o músico e compositor italiano Jean-Baptiste Lully (1632-1687) na escrita de oito comédias-balés, incluindo Os irritantes (1661), O casamento forçado (1664), George Dandin (1668) e Le bourgeois gentilhomme (1670), traduzida como O burguês fidalgoO cavalheiro burguês, O burguês gentil-homem e/ou O burguês ridículo.

Em 1673, aos 51 anos, debilitado fisicamente, Molière recusa-se a cancelar a sessão e desmaia no palco durante a quarta apresentação de O doente imaginário, sua última peça, a qual interpretou o personagem-título Argan. Horas depois, morreu em decorrência de uma infecção pulmonar em sua casa, a poucos passos do jardim do Palais-Royal. A poltrona cenográfica utilizada durante o espetáculo está exposta na Comédie-Française. Sepultado sem direito a uma cerimônia cristã, seu túmulo permanece no cemitério Père-Lachaise, em Paris, onde também repousam a cantora francesa Edith Piaf (1915-1963); o pianista polonês Frédéric Chopin (1810-1849); o dramaturgo irlandês Oscar Wilde (1854-1900); e o escritor francês Honoré de Balzac (1799-1850), entre outros.

Ainda que Molière tenha significativa importância para a literatura e o idioma francês – apelidado de “Língua de Molière” –, o atual governo se recusa a aceitar os pedidos de sua inserção simbólica no Panteão, local dedicado a quem marcou a história do país, por tratar-se de um templo engendrado pelo Iluminismo – movimento intelectual, filosófico e cultural europeu dos séculos XVII e XVIII – e que, assim sendo, as figuras ali homenageadas são posteriores ao período e à Revolução Francesa; o que não o inclui.

Em defesa, o ator e diretor francês Francis Huster, 74 anos, uma das principais referências acerca da obra de Molière, argumenta que ele “revolucionou a atuação, reinventando-se constantemente, como a própria língua francesa”. Huster é autor de Dicionário amoroso de Molière (Plon, 2021); Poquelin contra Molière: um duelo até a morte (Armand Colin, 2021); e Molière meu Deus: apelo ao Panteão (Armand Colin, 2019), ainda não traduzidos para o português.

No trecho de Molière transgride seu tempo, texto publicado em janeiro no site do Théâtre du Soleil, Mnouchkine pontua que mais do que a obra em si, a vida deste homem ainda hoje nos ilumina:

“Como muitas pessoas do teatro, sinto uma espécie de piedade filial porque ele é o antepassado, o santo padroeiro dos atores franceses. Quando você é criança, já que aprendeu isso na escola, acredita que Molière é normal. Não sabemos o quão excepcional ele é. Parece-nos velho, quando é novo. Mais tarde, discernimos o ritmo da linguagem, vemos a liberdade da cena, vemos sua vida, suas alegrias, suas servidão e sua coragem. E aqui, não estou falando apenas do escritor, mas daquele que arriscou sua liberdade. Quando empreende a escrita de Tartufo, que talvez seja sua maior peça, sabe que corre o risco de impedimento, da ruína, da prisão. Na Europa Ocidental, já não arriscamos tudo isso por um escrito, ainda que haja, hoje em dia, um insidioso restabelecimento de censuras recorrentes ou novas. E sofremos uma perigosa recaída, febril por todo tipo de proibições, que já não são de Estado, mas de opinião”.

Em junho de 1995, o Théâtre du Soleil estreava Tartufo no Festival de Viena, na Áustria. Encenado por Mnouchkine, o trabalho fez referência ao Magrebe – região noroeste da África – e transpôs a ação do personagem-impostor a um país inflamado pelo fundamentalismo islâmico para fazer uma crítica ao fanatismo e um apelo à fraternidade. Com elenco composto em parte por refugiados e exilados, o ator e coreógrafo iraniano Shahrokh Moshkin Ghalam assumiu o papel-título; enquanto Dorine foi vivida por Juliana Carneiro da Cunha, atriz e bailarina brasileira radicada na França desde 1988. Há 32 anos ela integra o coletivo.

Michele Laurent A atriz e bailarina Juliana Carneiro da Cunha, radicada na França, integrante do Théâtre du Soleil desde 1990, e o ator e coreógrafo iraniano Shahrokh Moshkin Ghalam contracenam em ‘Tartufo’ (1995), sob direção de Ariane Mnouchkine

Os seis meses de ensaios na sede do grupo até as primeiras apresentações do espetáculo foram testemunhados e documentados pelos cineastas franceses Éric Darmon e Catherine Vilpoux no filme Au soleil même la nuit (O sol mesmo à noite, de 1997), em coprodução do próprio Théâtre du Soleil.

“Infelizmente, mesmo no mundo democrático, Tartufo é periodicamente re-imerso na fonte da juventude e se torna atual em todo o mundo. Molière sabe que a religião, nas mãos de alguns, é o instrumento de poder por excelência. Ele sabe que os radicais, os fanáticos, aqueles que agora são chamados de fundamentalistas, usam a caricatura perversa de um deus tirânico e aterrorizante como arma de estupefação absoluta. Constrangido pelo rei, pela corte, pelo dinheiro, pela moral, Molière enfrenta tudo isso. Ao escrever, e especialmente ao atuar, esclarece o espectador sobre o poder, a ganância, o casamento forçado, o estupro, o escândalo do status das mulheres, os fanáticos. De caneta na mão, transgride sua época e, muitas vezes, até a nossa. Sim, ele tem, tenho certeza, mais futuro do que passado”, finaliza Mnouchkine.

Na língua portuguesa, “tartufo”, assim como em outros idiomas, é sinônimo de “indivíduo hipócrita”. A palavra originou uma série de derivados como tartufice, tartúfico ou ainda o verbo tartuficar, que significa enganar, ludibriar. No Brasil, a eleição presidencial – e sobretudo a permanência – de Jair Bolsonaro torna-se o exemplo concreto de que o fanatismo e a hipocrisia podem, sim, (des)governar um país em nome de Deus.

Ficha técnica:

Le Tartuffe ou l’hypocrite, O Tartufo ou o hipócrita, comédia em três atos sob versos de Molière

Encenação: Ivo van Hove

Versão de 1664 interdita em três atos, restituída por: Georges Forestier com a cumplicidade de Isabelle Grellet

Com: Claude Mathieu (Madame Pernelle, mãe de Orgon), Denis Podalydès (Orgon, marido de Elmire), Loïc Corbery (Cléante, cunhado de Orgon), Christophe Montenez (Tartufo, hipócrita religioso), Dominique Blanc (Dorine, empregada), Julien Frison (Damis, filho de Orgon), Marina Hands (Elmire, esposa de Orgon) e demais atores da academia da Comédie-Française: Vianney Arcel, Robin Azéma, Jérémy Berthoud, Héloïse Cholley, Fanny Jouffroy e Emma Laristan

Dramaturgia: Koen Tachelet

Cenografia e luz: Jan Versweyveld

Figurinos: An D’Huys

Música original: Alexandre Desplat

Colaboração musical: Solrey

Som: Pierre Routin

Vídeo: Renaud Rubiano

Assistente de encenação: Laurent Delvert

Assistente de cenografia: Jordan Vincent

Assistente de luz: François Thouret

Temporada de 15 de janeiro a 24 de abril de 2022

105 minutos

Mais informações no site oficial da Comédie-Française e, aqui, o programa do espetáculo em francês.

Divulgação O dramaturgo em ilustração símbolo das homenagens na companhia e teatro estatal de Paris
Christophe Raynaud de Lage Integrantes da Comédie-Française saúdam o busto de Molière e citam, cada um, uma fala do mestre durante tradicional homenagem após a estreia de ‘O Tartufo ou o hipócrita’, transmitida simultaneamente para mais de 200 cinemas do país


Para celebrar Molière

Espetáculos:

Teatro Aliança Francesa – São Paulo

Escola de mulheres


Direção de Clara Carvalho

Até 27 de março – De quinta a sábado, às 20h; e domingo, às 18h

R$ 60 (inteira) e R$ 30 (meia)

Classificação 12 Anos

Elenco: Ariel Cannal, Brian Penido Ross, Felipe Souza, Fulvio Filho, Gabriela Westphal, Leandro Tadeu, Luiz Luccas, Rogério Pércore e Vera Espuny

Teatro Comédie-Française – Paris

Programação completa da Temporada Molière 2022 (em francês e inglês)

Filme:

Vimeo

Molière ou la vie d’un honnête homme, Molière ou a vida de um homem honesto (1978), produzido pelo Théâtre du Soleil
Disponível por 4,99€ (48 horas) ou 9,99€ (ilimitado)
Legendas em francês e inglês
Duração: 240 minutos

Podcast:


Spotify France Inter
Molière, le chien et le loup

Série em 10 episódios produzidos e narrados pelo jornalista Philippe Collin

Acervo:

Portal La Grange
Catálogo digital da biblioteca-museu da Comédie-Française disponibiliza coleções históricas, exposições virtuais, documentação, seleção de obras de arte e arquivos. Em francês e inglês.

Molière 2022
Encabeçada pelo biógrafo Georges Forestier, plataforma desenvolvida por uma rede de investigadores de instituições francesas e internacionais (Sorbonne, Universidade de Friburgo, Toulouse, Lausanne e Yale). Apenas em francês.

Jornalista e escritora brasileira radicada na França, tem contribuições em projetos artísticos e socioculturais a partir de atuações em ONGs, revistas, rádio, televisão, fotografia, assessoria de imprensa e produçāo de eventos. É autora da biografia Esumbaú, Pombas Urbanas! 20 anos de uma prática de teatro e vida (2009) e uma das criadoras do Orgulho Crespo, movimento independente de valorização do cabelo afro iniciado em 2015 com a 1ª Marcha do Orgulho Crespo SP. A iniciativa integra o calendário oficial do Estado de São Paulo com o #DiaDoOrgulhoCrespo, celebrado todo 26 de julho por meio da Lei 16.682/2018.

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