Crítica
A Cia. Luna Lunera dispensa reticências no título da peça E ainda assim se levantar. No entanto, sua base textual, e mesmo a sintaxe do espetáculo, é permeada de três pontos. As pausas surgidas entre falas, pensamentos ou gestos não representam necessariamente silêncios, omissões, titubeios. Antes, são rumores gerados por exaustão existencial.
Também são três atuantes a emendar experiências pessoais às respectivas personagens que tratam de angústias de um presente rasurado, ávido por dias melhores. Nesse universo fragmentado, a rotação dramatúrgica de tentativas calha como um alento no panorama de desencantos em que o país e o mundo andam metidos – e a rigor não de agora.
A masculinidade aludida às faíscas de uma esmerilhadeira é contraposta a outro instrumento típico do chão de fábrica, o paquímetro, que mede com precisão as pequenas distâncias. Decerto, um objeto de cena dos mais improváveis e cuja apropriação simbólica se revela pertinente a trabalhadores da arte e da cultura
Expressões como “A gente está tentando” e “Vamos começar de novo” indicam vestígios beckettiano na dramaturgia de Marcos Coletta concebida em parceria com a companhia. Falhas e desvios são reconhecidos mutuamente pelo trio, numa dinâmica de dentro e fora, de crítica e autocrítica, movimento que a direção de Isabela Paes delineia como efeito de circularidade refletido na própria ocupação espacial conformada em arena. Afinal, “Este espetáculo não começou agora”, mais uma frase lançada ao público na busca artística por estabelecer uma relação de jogo difícil de ser concretizada, em boa parte, devido ao vão que distancia o palco frontal do teatro no Sesc Santo Amaro.
No entanto, essa dificuldade é atenuada por meio de um recurso elementar e assertivo, quando bem aplicado, como no caso. O público descobrirá como o ato de fechar ou abrir os olhos em sintonia com determinadas passagens pode interferir sensível e decisivamente no modo de fruir a obra. Há um tensionamento propositivo diante das modulações de afetos ao longo da narrativa.
Originalmente, a montagem mineira estreada em 2019 pensou parte do público disposto ao redor da cena em cadeiras de diferentes formatos. Elas permanecem lá, mas vazias, em atenção às medidas de distanciamento. Esse quadro involuntário acaba por redimensionar o luto pelas ausências e reafirmar o significado das presenças na esteira da pandemia sobreposta às regressões sociopolíticas de toda ordem.
Ao lidar com a música interior feita de tons confessionais e de incertezas quanto à condição de quem vive de arte e preza direitos constitucionais – expondo liminaridades de um ato civil –, Anderson Luri, Cláudio Dias e Letícia Castilho vocalizam a condição de brasileira e brasileiros ao cantar e tocar seus prantos, alegrias, medos e lutas. Para tanto, chamam composições de Pixinguinha, Milton Nascimento, Zé Ramalho e Caetano Veloso, assim como saúdam Elis Regina. O registro vocal e os traços do rosto da atriz (âncora do feminismo no texto) combinam sobremaneira com os da intérprete que buscou o quanto pôde equilibrar-se na travessia da ditadura civil-militar. “Será que ainda podemos falar disso aqui?”, pergunta Castilho, na única referência mais direta ao pesadelo governamental.
O componente musical é determinante, com ênfase em instrumentos percussivos, porém o trabalho não se limita às raias do gênero. Parece dar ouvidos a Belchior em Divina comédia humana: “Enquanto houver espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer não/ Eu canto, ora direis”. A dança desses corpos e palavras no espaço dão liga a uma experiência que performa a partir da conjunção de crises na interface sujeito-sociedade e se deixa atravessar pelo drama humano, esse velho ancestral.
O terrível relato do estupro coletivo de uma adolescente de 13 anos encontra eco na lembrança de Luri acerca da reprimenda que levou do pai, também aos 13 anos, corrigindo-o como pôr as mãos na cintura e estufar o peito a fim de esquivar-se de qualquer gestualidade afeminada, assim presumida pela estreiteza machista.
De fato, o desejo é outra instância relevante em E ainda assim se levantar. As repressões subliminares ou explícitas são confrontadas com ímpeto no campo da memória e presentificadas. A nudez tira o véu da falsa moralidade, da hipocrisia, assim como figurinos subvertem normatividades. A história homoafetiva vivida por Dias numa viagem ao Rio de Janeiro é digna dessa ruptura. De como uma noite de amor transforma seu dia seguinte em termos de coragem e de potência para a vida num grau que, talvez, jamais tivera se dado conta. “Eu queria matar esses mitos todos”, desabafa, socando a luva de boxe em alguma superfície, como se a face monstruosa do autocratismo.
Já a masculinidade aludida às faíscas de uma esmerilhadeira é contraposta a outro instrumento típico do chão de fábrica, o paquímetro, que mede com precisão as pequenas distâncias. Decerto, um objeto de cena dos mais improváveis e cuja apropriação simbólica se revela pertinente a trabalhadores da arte e da cultura.
Formada em Belo Horizonte, em 2001, a Luna Lunera alia temas universalizantes a esferas intimistas, a exemplo do que ergueu em Nesta data querida (2003), Não desperdice sua única vida (2005) e Aqueles dois (2007). Inventos dos quais saímos nos perguntando o que foi feito de nós. A essa identidade somam-se princípios vitais expostos no poema Defesa da alegria, do uruguaio Mario Benedetti (1920-2009), uma das fontes inspiradoras da mais recente criação da companhia em pleno olho do furacão.
.:. E ainda assim se levantar cumpriu temporada de 28 de janeiro a 6 de março de 2022 no Sesc Santo Amaro, em São Paulo. E faz apresentação única em 11 de março, sexta, 21h, no Sesc São José do Rio Preto.
.:. Acesse o programa digital do espetáculo, aqui.
Ficha técnica:
Direção: Isabela Paes
Dramaturgia: Marcos Coletta e Cia. Luna Lunera
Assistência de direção: Cláudio Dias
Atores/criadores: Anderson Luri, Cláudio Dias e Letícia Castilho
Figurino: Camila Morena e Cia. Luna Lunera
Cenário: Ed Andrade e Cia. Luna Lunera
Criação de luz: Marina Arthuzzi e Jésus Lataliza
Vídeos do espetáculo: Fabiano Lana
Design: Rafael Maia
Fotografias: Carlos Hauck e Kika Antunes
Assessoria de comunicação: Zé Walter Albinati
Assessoria de imprensa (SP): Ofício das Letras – Adriana Monteiro
Produção executiva: Cláudio Dias
Direção de produção: Marcelo Souza e Silva e Isabela Paes
Produção: Cia. de Teatro Luna Lunera
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.