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Crítica

O sistema da amargura

1.6.2022  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Malu Freire

A simbologia da palavra “sistema”, tão cara ao artista e pensador russo Constantin Stanislávski (1863-1938), que empenhou boa parte da vida em organizar uma metodologia para a arte de atuar, ganha contornos engenhosos na transposição cênica da novela A dócil, de Fiódor Dostoiévski (1821-1881), pela Cia Teatro da Cidade em sua sede, uma sala multiuso em São José dos Campos (SP). O trabalho materializa o efeito da diegese, ou seja, o conjunto de efeitos que balizam tempo e espaço na narrativa, emanando um retrato histórico-social cruel e atemporal. Numa perspectiva científica, sistema também pode ser entendido como a disposição de objetos numa ordem que torna mais fácil sua observação e estudo. A experiência aqui mobiliza nesse sentido.

Desde a calçada para a rua, onde se dá o prólogo, até os diferentes planos da ocupação cênica da sala, o público entra em contato com a inteligência ativa de artistas em diálogo permanente com o romancista do século XIX que partiu de uma notícia de jornal – o suicídio de uma mulher empobrecida, cujo desespero a faz saltar da janela agarrada à imagem de uma santa – para expor o quanto a desigualdade de gênero encontra-se enraizada nas sociedades.

Uma transubstanciação da história de Dostoiévski repousa na escultura movente suspensa no miolo da sala, um carrossel de objetos pendentes por fios e à mercê da intervenção física de personagens que movimentam tal paisagem ao sabor da tempestade interior de cada um, de cada uma, notadamente o agiota e sua esposa. O sujeito lida como se tratasse com os objetos que adquire, porém não no sentido da valoração, antes da objetificação. A arte-educadora e artista visual Pitiu Bomfin assina esse componente catalisador da cenografia e, por consequência, do coração da narrativa

Numa relação de poder entre forças desproporcionais, a luta contra a subalternidade manifesta-se indelével na confluência da literatura e do teatro. O que se passa é um processo violento, a despeito do título. De como uma órfã de 16 anos, que aparenta menos idade, tenta um emprego para contornar sua condição miserável e termina abduzida pelo narrador, dono de uma casa de penhores que busca sublimar no mundo dos negócios um episódio do passado, quando foi afastado do serviço militar como capitão reformado, acusado de covardia. Espectadores e leitores que intuem correlações com a militarização do atual governo brasileiro e suas patacoadas vão se fartar em conexões que a encenação sabe dosar.

É de trás para a frente que Dostoiévski conta essa história fantástica, como a definiu – mesmo que no fundo a considerasse “realista no mais alto grau” – ao publicá-la em 1876 em sua coluna Diário de um Escritor, na revista O Cidadão, da qual foi redator-chefe quando tinha mais de 50 anos, já um romancista consagrado. Comum em roteiros contemporâneos, o recurso do flashback ainda estava longe no horizonte audiovisual. Só 24 anos após a primeira edição da novela (maior do que um conto e menor do que um romance) os irmãos Lumière aperfeiçoariam a técnica de projeção ao inventar o cinematógrafo.

Na introdução, dirigindo-se a quem lê como “meus senhores”, o autor mostra-se exímio na elaboração de sinopse: “Imaginem só um marido, sobre a mesa de casa jaz a sua mulher, uma suicida, que algumas horas antes jogou-se pela janela. Ele está transtornado e ainda não teve tempo de juntar as suas ideias”.

O espetáculo cumpre essa espécie de desmontagem com teatralidade propícia a discernir as paletas do pensamento e da prática machistas do proprietário de uma casa de penhores, hipocondríaco inveterado, confrontado aos seus privilégios e fantasmas desde que a cliente inominada, como ele, entrou em sua vida, pela porta da loja onde pessoas endividadas deixam seus bens em troca de dinheiro, até a ocasião em que, de forma abrupta, ela se retirou de um casamento imponderável, controlador e manipulador.

Malu Freire Andréia Barros no prólogo da peça que ressignifica o papel da empregada do casal; no filme de Robert Bresson, também uma transposição da mesma obra, a personagem figura em silêncio ao lado do narrador e aqui ela ganha mais relevo na história

As desigualdades sociais acrescidas às desvantagens sofridas pelo simples fato de ser mulher são explicitadas em ações à altura da potência da linguagem ficcional que Dostoiévski constrói. Assim como o escritor russo sai da zona de conforto em busca de diferentes procedimentos narrativos na maturidade, a Cia Teatro da Cidade extrai de seus 32 anos de atividade disposição para transcender os eixos rotativos de sua engrenagem – a exemplo do teatro de narradores e de modulação épica – e atirar-se sem meio-termo à constelação poética a que foi instada pelos diretores convidados, Alejandro Puche, de ascendência colombiana, e Ma Zhenghong, chinesa. Numa parceira de vida e arte, professores universitários em Cali, a dupla também tem em comum a formação pelo Instituto Russo de Artes Teatrais, o GITIS, de Moscou, onde foram orientados, respectivamente, pelos diretores Anatoli Vassiliev e Piotr Fomenko (1932-2012), de gerações distintas na pedagogia teatral de tradição secular no país da Eurásia.

De maneira que a transversalidade cultural diz muito sobre o sistema artístico que a equipe de A dócil alcança. Não se trata de integração artificial, como pode supor quem conheça mais o manejo da cultura popular expresso no percurso da companhia, vide a trilogia de textos de Luís Alberto de Abreu. Em 2012, a Teatro da Cidade produziu Almas abaixo de zero, direção do cofundador Claudio Mendel para texto de Samir Yazbek que cotejou a dramaturgia e a biografia do também médico Anton Tchékhov (1860-1904). No enredo, um grupo de teatro mergulha na obra do autor de Tio Vânia. Texto que, em 2016, gerou experimento na residência que Puche realizou no Centro de Artes Cênicas Walmor Chagas, instalado na mesma sede e teatro. O acercamento à cultura russa, portanto, vai para mais de década, inclusive sob consultoria dramatúrgica da professora e pesquisadora Elena Vássina (USP), também interlocutora da vez.

Uma transubstanciação da história de Dostoiévski repousa na escultura movente suspensa no miolo da sala, um carrossel de objetos pendentes por fios e à mercê da intervenção física de personagens que movimentam tal paisagem ao sabor da tempestade interior de cada um, de cada uma, notadamente o agiota e sua esposa. O sujeito lida como se tratasse com os objetos que adquire, porém não no sentido da valoração, antes da objetificação. A arte-educadora e artista visual Pitiu Bomfin assina esse componente catalisador da cenografia e, por consequência, do coração da narrativa. A sonoridade dos objetos que se tocam durante a gira, por vezes emoldurada pela luz, sugere graus de desestabilizações interiores que nem estados de atuação transmitem com intensa dimensão equivalente. As escalas são distintas, sabemos. Uma do humano, outra da beleza criadora. Contudo, o ápice da translucidez com que o abismo da personagem-título vai se desenhando ocorre quando cubos de gelo são anexados às pontas desse globo vazado, multiforme. O derretimento e as gotas são decisivos para conformar a instalação sistêmica a que foram enredadas as vidas em jogo. E isso se dá, paradoxalmente, através de um mecanismo explicitador da autonomia de voo, da determinação por aliados e aliadas em rede, instâncias que a protagonista feminina tenta trazer para si, em vão, em meio ao solitário pacto de fuga matrimonial que mudaria o destino de desvalida.

Aos poucos, o fluxo espiralar do enredo, ainda que fragmentário, envolve todos os cantos da sala em que as plateias são dispostas como que num corredor, uma de frente para a outra. Na passagem do teatro dentro do teatro, quando o penhorista acompanhava sua esposa à casa de espetáculos, iam calados e voltavam calados, a adaptação do coencenador Alejandro Puche recorre a um trecho da cena entre um conceituado comerciante e uma viúva de A tempestade, drama do russo Aleksánder Nikoláievitch Ostróvski (1823-1886). O breve diálogo deixa entrever amarras morais da época, a ponta de o narrador afirmar que aquele fora o primeiro texto feminista de que se tem notícia no Ocidente, espelhando A dócil. Em sua transcriação da obra em Uma mulher delicada (1969), o cineasta francês Robert Bresson leva o casal de Dostoiévski a assistir à cena final de uma apresentação de Hamlet. A protagonista sai da sessão transtornada e, ao chegar em casa, confere a peça em livro e nota que os atores pularam um trecho da tragédia, trecho no qual encontrava mais nexo com a infelicidade enfrentada diante do comportamento e caráter do marido.

Malu Freire Numa das cenas mais (in)tensas de ‘A dócil’, a mulher esboça reagir à opressão do marido, que recém a havia encontrado com outro homem, uma traição que não se consumou, em atuações de Sarah Alice e Marco Antônio Barreto

A montagem da Cia Teatro da Cidade mostra cidadãos em sua humanidade, sem maniqueísmo. Nas atuações de Sarah Alice e
Marco Antônio Barreto as ambiguidades ganham nitidez e, aos poucos, o fosso entre o casal só faz aumentar a incompatibilidade de desejos. Andréia Barros e Rodrigo David surgem em múltiplos papeis. Ela ressignifica a presença da empregada desde a cena externa, denotando a diferença de classes. Ele se incumbe de um vendedor e um militar em contraste com o insensível usurário que gostava de citar Goethe e dizia ter fixação pela verdade.

Por fim, um alento o Estado de São Paulo acolher em sua cena contemporânea duas montagens a partir do mesmo texto – um dos menos conhecidos do autor de Os irmãos Karamázov –, esta e aquela A dócil de 2010, atuada por Patrícia Gifford e Dagoberto Feliz, responsável ainda pela dramaturgia com o diretor Pedro Mantovani, em que acentuaram a tragicidade da vida a dois carregada de sintomas de sociedades doentes, desde a fachada e o ventre do Galpão do Folias.

Serviço:

A dócil em circulação no interior paulista

Cubatão:  Dia 3, sexta, 20h. Teatro do Kaos (praça Coronel Joaquim Montenegro, 34, Sítio Cafezal). Ingressos gratuitos, aqui

Suzano: Dia 4, sábado, 20h. Teatro Contadores de Mentiras (rua Maria de Lourdes M. Vieira, 42, Parque Maria Helena). Ingressos gratuitos, aqui

Santa Bárbara do Oeste: Dia 5, domingo, 19h30. Teatro Municipal Manoel Lyra (rua João XXIII, 61, Centro). Ingressos gratuitos, aqui

Classificação: 12 anos

Duração: 75 minutos

Malu Freire A partir da esquerda, Andréia Barros, Sarah Alice, Rodrigo David e Marco Antônio Barreto na sessão de estreia na sede da Cia Teatro da Cidade, em 6 de maio de 2022

Ficha técnica:

Adaptação: Alejandro Puche, a partir da novela homônima de Fiódor Dostoiévski

Direção: Alejandro Puche e Ma Zhenghong

Com: Andréia Barros, Marco Antonio Barreto, Rodrigo David e Sarah Alice

Diretor assistente e direção de produção: Claudio Mendel

Direção musical e trilha sonora: Beto Quadros

Cenário e adereços: Pitiu Bomfin

Figurinos: Nour Koeder

Consultoria dramatúrgica: Elena Vássina

Confecção de cenário e montagem de luz: William Alves

Operação de luz: William Alves e Rachid Severino

Operação de som: Luciano Silva (estagiário)

Fotos: Malu Freire

Administração: Elton Dietrich

Assessoria de imprensa: Eliane Mendonça

Produção executiva: Maja Gabriel

Produção: Cia Teatro da Cidade

Realização: Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Governo do Estado de São Paulo, por meio do Programa Ação Cultural (Proac 01/2020)

Parceria: Laboratorio Escénico de la Universidad del Valle e Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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