Crítica
15.6.2022 | por Mariana Queen Nwabasili
Foto de capa: Silvia Machado
Há quem diga que toda crítica é uma autobiografia, tamanha a exposição das percepções e referências de quem escreve. E eu devia ter por volta de 8 anos de idade quando meu pai, que é imigrante nigeriano, costumava reunir os filhos para comer na mesa da cozinha sopas tradicionais de seu país, enquanto contava histórias que ele mesmo tinha escutado ou vivido quando criança em África. Ao final da refeição e do conto, percebíamos ter adquirido mais alguns aprendizados para a vida.
Muitos anos depois, já adulta, vim a saber da importância da cultura griot entre povos africanos; a cultura dos mensageiros, musicistas, recitadores e contadores de histórias desde as épocas dos reinados. Para artistas-pesquisadores como a atriz e dramaturga sul-africana Napo Masheane, a prática de sentar no chão ao redor de uma fogueira à noite para escutar esses narradores nas vilas em África até hoje demonstra que as artes cênicas estão presentes no cotidiano dos povos do continente. “Essas manifestações são o nosso teatro desde sempre”, já a escutei dizer.
Frente ao relato de Lilly Baniwa sobre a primeira vez que viu a desumanidade dos brancos contra nossa parente onça em um desfile-espetáculo público, e à vez que Andreia Duarte viu duas onças no meio da estrada, está a primeira e única vez que a própria personagem onça, interpretada por Denilson Baniwa, vê ‘duas gentes’ e se surpreende com as ‘exóticas’ pessoas na plateia do teatro a ponto de fotografá-las com uma câmera tipo Polaroid. A foto, revelada em cena, é entregue a uma pessoa do público enquanto a peça ‘Antes do tempo existir’ segue. A imagem sobre a gente volta para nós. Olhemo-nos, então, também como os outros raciais, culturais e animais ali no palco
Atravessado um Atlântico, os povos originários aqui da Améfrica Ladina partilham com nossos também ancestrais africanos a centralidade da oralidade para a disseminação de saberes e visões de mundo – conceituado pela socióloga Lélia Gonzalez, o termo Améfrica Ladina designa, segundo a própria autora, “toda uma descendência: não só a dos africanos trazidos pelo tráfico negreiro como a daqueles que chegaram à AMÉRICA muito antes de Colombo”. Carrego na memória a imagem de pajés mostrados em questionáveis reportagens e filmes etnográficos enquanto passam seus conhecimentos a jovens e adultos da tribo sentados no chão ao seu redor.
Uma escuta atenta, praticamente hipnotizada pelo que contam e ensinam os três atores em cena é o que marca a experiência como parte do público de Antes do tempo existir, peça com direção geral de Andreia Duarte, que assina a dramaturgia ao lado de Kenia Dias e Ricardo Alves Jr., estreada na 8ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp.
A montagem se dá como um quebra-cabeças composto por cenas performáticas e depoimentos feitos por Duarte, Denilson Baniwa e Lilly Baniwa. Desdobrados em personagens de si mesmos, os atores ora se movimentam lentamente em silêncio pelo palco, fundindo-se aos galhos secos ou cheios de folhas verdes que carregam nas mãos e apoiam em seus corpos; ora nos contam, um por vez, experiências autobiográficas perpassadas pelos conhecimentos dos povos originários e por vivências culturais calcadas ou confrontadas por esses saberes e pela ambientação onde eles surgiram, a floresta. Fragmentações de imagens e falas que gradualmente se complementam, inclusive por simetrias e repetições, até construírem uma uníssona mensagem.
“O que segura o céu é o canto, é a dança”, entende-se: as vibrações naturais e espirituais da vida abaixo dele. A frase é uma das últimas ditas na peça pelo ator-personagem Denilson e dialoga diretamente com as advertências e meditações expressas pelo xamã Yanomami Davi Kopenawa no livro A queda do céu. Bem como ocorre nessa obra, a montagem se mostra crítica às consequências danosas do chamado progresso ocidental para a natureza, para nossa relação ancestral com ela e com os povos que a preservam, expondo as espiritualidades e cosmovisões indígenas como alternativas para viver e enfrentar esse cenário.
Kopenawa é um dos nomes por trás da origem de Antes do tempo existir, trabalho que se desdobrou de encontros sobre a arte contemporânea indígena realizados entre ele, o já mencionado artista visual Baniwa, a diretora Duarte e figuras como Ailton Krenak, Naine Terena, Zahy Guajaraja e Jaider Esbell, artista Macuxi de grande expressividade falecido em 2021.
Oralidade é chão
Para a escuta das histórias contadas pelos atores, a plateia é colocada literalmente no palco. Apesar do convite intimista, uma ligeira e simbólica hierarquia é mantida e faz toda a diferença: nós, espectadores, nos sentamos em almofadas dispostas no chão ou em cadeiras pequenininhas de madeira, como aquelas usadas por crianças na educação infantil. É da perspectiva do chão que recebemos o que os personagens, vistos de um ângulo que engrandece suas presenças, experiências e eloquências, têm a compartilhar-ensinar sobre uma época antes do tempo existir, quando “tudo era escuro e frio”.
As formas como se apresentam os questionamentos sobre o tempo produtivo ocidental na peça têm como referência direta O silêncio do mundo, palestra-performance de Krenak, construída em parceria com Duarte em 2020. A dramaturgia dessa obra já trazia em suas rubricas a escolha cenográfica por um “céu pendurado” no teto do palco, que, em Antes do tempo existir é representado por um pano de seda em formato retangular e abaloado. Ele funciona como difusor das luzes usadas na inteligente e naturalista iluminação operada por Lucas Pradino, que remete às variações de cores irradiadas ao longo do dia sobre superfícies ao ar livre em meio à natureza. A alusão ao céu fica ainda mais evidente quando o tecido é usado como tela na qual são projetadas estrelas e grafismos indígenas digitalizados. Construção que sugere um hibridismo entre o natural e o tecnológico, que a tecnologia atual também é ancestral.
A escolha estética da contação de histórias nos depoimentos lava à percepção de que a oralidade usada para a transmissão de conhecimento é uma tecnologia possivelmente herdada dos povos originários de África e da Améfrica Ladina. Uma forma de comunicação que atravessa o tempo, mostra que tradições não são fixas, mas sim se atualizam, compõem o cotidiano atual, inclusive, para fazer artes cênicas. A atmosfera criada por essa maneira de “dar o texto” possibilita um estado de atenção sublime para a apreensão das experiências e cosmovisões apresentadas e compartilhadas.
Duarte, por exemplo, revela a nós vivências junto aos indígenas e em meio à floresta que expõem sua curiosa busca pela complexidade de nossa cultura de matriz-motriz ameríndia e seu simultâneo deslocamento e encantamento “estrangeiro” com o que encontrou. “Tinham duas onças no meio da estrada. Duas onças”, enfatiza, ao contar sobre a vez em que levou Bambu, uma criança indígena, ao dentista em um posto de atendimento da atualmente desmantelada Funai (Fundação Nacional do Índio). Assim, a atriz, que é branca, pesquisadora doutoranda em artes cênicas na USP e idealizadora da produtora Outra Margem: Teatro e os Povos Indígenas, expõe um certo deslocamento quanto à lida com a natureza provavelmente durante os cinco anos em que viveu com o povo Kamayura no Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso.
Inicialmente, os depoimentos de Duarte parecem monopolizar os momentos de monólogo de cada um dos três atores, gerando certo incômodo para quem também anseia ver as atuações dos artistas Baniwa em uma obra atravessada pela cosmovisão indígena. Aos poucos, entendemos a equilibrada divisão das cenas e passamos a apreciar ainda mais a forma como a atriz inaugura o tom de conversa cotidiana ou de contação de causos da vida para conhecidos que cada um dos relatos carrega. Algo como quando seu pai te conta, num jantar, a história de uma experiência que viveu no passado e que diz muito sobre as formas de ver o presente, sabe?
Nesse caminho, a repetição de descrições imagéticas e cacoetes típicos da linguagem coloquial são bem-vindos, paradoxalmente dão fluidez ao acompanhamento do texto ali ao pé dos atores com quem dividimos o mesmo plano-palco – quando Denilson é o protagonista da fala, por exemplo, as atrizes sentam no chão ao lado do público para escutar atentamente o que ele tem a lhes e nos dizer.
Aqui, torna-se inevitável uma comparação com a reiterada exploração do teatro narrativo em muitas montagens sobre temas relacionados a grupos socialmente minorizados e invisibilizados. Enquanto nessas peças exige-se do espectador uma prolongada capacidade de abstração para acompanhar textos que contam experiências não materializadas em cena, Antes do tempo existir aposta na singeleza e na assertividade da orientação de leitura possibilitada pela oralidade acentuada no formato contação de histórias.
Contrastes que remetem à afirmação feita por Walter Benjamin, na década de 1930, sobre o fato de a arte de narrar, que, para o autor, caracteriza-se como “a faculdade de intercambiar experiências”, estar em vias de extinção. E também faz lembrar as diferenças entre narrar e descrever delineadas pelo pensador marxista György Lukács como próximas, respectivamente, de uma participação ou de uma mera observação da realidade experienciada pelos autores e/ou personagens de literaturas épicas e dramáticas.
Encontros animais
A sedutora fluidez na fala também se faz presente na exposição de memórias feita por Lilly, que é marcada por reiterações e ênfases presentes nas línguas indígenas utilizadas por ela em cena e sem tradução. A escolha convida os espectadores, em geral alienados das línguas-maternas de nosso território devido à repugnante desvalorização dos povos que as falam, ao desconforto vivido pelos indígenas ao serem expostos à língua oficial do país.
Por mais que nos conte sua história, nos momentos que o faz por meio de suas línguas-maternas, Lilly torna opaco quem seriam seus interlocutores ideias, inclusive, como público de uma peça encenada na região oeste da cidade de São Paulo em meio a uma das mais importantes mostras internacionais de teatro do país. É evidente: deveríamos conviver com mais pessoas não-brancas, com mais indígenas e seus descendentes diretos em todos os lugares. Porém, ao mesmo tempo, não são estes últimos que necessitam ser, urgente e artisticamente, conscientizados da “queda do céu” e orientados quanto ao que é necessário e possível fazer para segurar a ele e a nós mesmos como humanos-animais.
Nos momentos que conseguimos entender explicitamente o que a atriz diz em um português mesclado com algumas palavras em línguas indígenas, mais uma história pessoal vem à memória. Foi quando, como parte de uma formação complementar durante a graduação em jornalismo, fui uma das componentes de um grupo de futuros comunicadores selecionado para uma viagem de estudos ao estado do Amazonas. Uma experiência subsidiada e mediada pelas Forças Armadas do Brasil.
Já “desencaixada” desde aquela época, incomodava-me e me constrangia imensamente caminhar por diferentes cidades e pontos turísticos ao lado de soldados fardados e em carros do exército. O ápice da vergonha alheia e indignação segue registrado na única foto oficial da expedição: o encontro do grupo com uma onça aparentemente pertencente ao braço armado do Estado, que, quando estava fora da jaula, era domesticada por uma grossa coleira manejada por um soldado. Na imagem, os seres humanos estão em pé ao redor da fera que está deitada na frente e ao centro da parede de gente.
Um troféu? Uma decadência. Uma violência inclusive quanto à nossa humanidade, é o que confirmo ter sido aquela experiência ao escutar, na peça em questão, o relato Lilly sobre a primeira vez que foi com sua mãe a um desfile do 7 de Setembro, dia da convencionada independência do Brasil. “Eu vi, ali, uma onça acorrentada. Tinha uma onça acorrentada. Uma onça acorrentada”, repete a atriz em cena, num misto de indignação e desespero que se justifica melhor, minutos depois, com a continuidade de seu depoimento. Em contraste com a paralisia de Duarte frente às “duas onças no meio da estrada”, a mãe de Lilly a havia ensinado, certa vez, quando se depararam com um grupo de onças, que não era necessário ter medo desses animais, pois eles eram, na verdade, seus parentes, aqueles que já haviam morrido.
A atuação dela, que é estudante de artes cênicas na Unicamp, confirma a percepção crítica explicitada no texto “Brasil: língua cheia minguada”, sobre a peça Língua brasileira (Felipe Hirsch e Coletivo Ultralíricos, 2022): como, na arte e na “vida real”, os povos originários são invisibilizados não “apenas” linguística e culturalmente, mas também territorial e fisicamente, a presença de artistas indígenas no palco reitera que, como signo, seus corpos e línguas ganham força para o que se quer dizer por meio do teatro. Presenças que, no centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, confrontam a crítica percepção desse evento histórico-cultural como fundador de uma nova ideia de Brasil, que partia da incorporação apenas simbólica dos negros e dos indígenas ao ideal de um povo brasileiro cordialmente mestiço e cenicamente mais branco.
Frente ao relato de Lilly sobre a primeira vez que viu a desumanidade dos brancos contra nossa parente onça em um desfile-espetáculo público, e à vez que Duarte viu duas onças no meio da estrada, está a primeira e única vez que a própria personagem onça, interpretada por Denilson, vê “duas gentes” e se surpreende com as “exóticas” pessoas na plateia do teatro a ponto de fotografá-las com uma câmera tipo Polaroid. A foto, revelada em cena, é entregue a uma pessoa do público enquanto a peça segue. A imagem sobre a gente volta para nós. Olhemo-nos, então, também como os outros raciais, culturais e animais ali no palco.
O entendimento e a vivência da realidade de maneira fabular nas culturas indígenas são assumidos não apenas na personificação da onça, mas também na própria exploração e compartilhamento das lembranças, ou seja, memórias sempre um tanto ficcionalizadas, mas não menos críveis e significativas, dos atores-personagens. Uma forma de se relacionar com a história e com a vida que, quando encenada, flerta com a atmosfera do teatro infantil e nos faz olhar o que é ou o que poderia ser com novos e transcendentais olhos.
O animal pintado se apresenta, na verdade, como um devir já anunciado em detalhes das estampas nos figurinos de característica streetwear usados por Denilson e Lilly. Aqui, vale destacar que, bem como a trilha sonora, remixada no palco pelo DJ Barulhista e marcada pela mescla de cantos e frases em línguas indígenas e batidas de música eletrônica e do funk carioca, as roupas dos atores quebram as preconceituosas expectativas de quem espera que encenações feitas por indígenas devam corresponder a estéticas supostamente tradicionais ou rurais. O caráter experimental das misturas e dos momentos mais performativos e sem falas de Antes do tempo existir explicitam que os povos originários, suas culturas, saberes e formas artísticas estão em movimento, são presente e futuro, contemporâneos e transcendem os estereótipos colonialistas e limitantes sobre suas vivências, experiências e referências.
O ator-personagem-onça é o que mais tem falas que apresentam explicitamente conteúdos das cosmovisões indígenas. Pelas suas palavras, ditas quando onça ou quando homem, entendemos que a capacidade de transformação dos seres humanos em animais ditos selvagens, ou seja, na vida animal que compõe as florestas, foi perdida ao longo da sedimentação do tempo produtivo; tempo estabelecido e seguido por culturas que definiram determinadas visões de mundo como crendices, mitos, lendas e folclore – assim disseminadas até hoje por produtos culturais, como a novela Pantanal (Benedito Ruy Barbosa, Rede Manchete, 1990), que tem remake atualmente exibido na TV Globo como sucesso de audiência –, e não como história, filosofia ou epistemologia.
Antes do tempo existir nos convida a dançar e cantar-gritar no palco como forma de desnaturalizar essas construções e aprender a importância de resgatarmos as capacidades animais e espirituais de transformação que nossos ancestrais indígenas sempre disseram ser parte da vida e essenciais para a manutenção dela. Nesse processo ritual, todos parecemos estrangeiros reaprendendo, desesperadamente, após confinamentos e sensações de impotência frente aos sistemáticos e conjunturais assassinatos das florestas, da cultura e povos originários e de seus aliados, a existir das formas mais elementares: sentindo o vento e a luz no rosto, encostando em plantas ou em outras gentes, escutando-nos e voltando a transformar e movimentar nossa humanidade para (ao menos tentar, mesmo que de maneira artística-efêmera ou como expurgação de uma mea-culpa “branca”) segurar as vidas, segurar a Terra.
.:. O espetáculo Antes do tempo existir foi apresentado dias 10, 11 e 12 de junho de 2022, no Teatro Cacilda Becker, dentro da programação da MITsp.
Ficha técnica:
Direção geral e concepção: Andreia Duarte
Direção cênica e dramaturgia: Andreia Duarte, Kenia Dias e Ricardo Alves Jr.
Criação coletiva: todos artistas envolvidos, com destaque para Jaider Esbell (in memorian) e Zahy Guajajara, que estiveram presentes na primeira imersão
Artistas em cena: Andreia Duarte, Denilson Baniwa e Lilly Baniwa
Assistente de direção e iluminação: Lucas Pradino
Trilha sonora: Barulhista
Espaço cênico e figurino: Renato Bolelli
Desenho Cosmos e Performance do Pajé Onça: Denilson Baniwa
Oficina de voz: Silvana Stein
Produção: André Lucena (2021/2022) e Juliana Pautilla (2022/estreia)
Produção técnica local: Victor Gally (SP Escola de Teatro), Will Zimolo (Biblioteca Mário de Andrade)
Criação de vídeo e coordenador técnico: Rodrigo Gava
Fotos: Amanda Dafoe, Francio de Holanda e Ricardo Alves Jr.
Comunicação visual e site: Casaplanta – Amanda Dafoe
Comunicação: Luna Rosa e Olívia Maia
Catering: Cléria de Oliveira Moura
Parceria: Casaplanta, Móbili, SP Escola de Teatro e Translapas
Apoio cultural: Goethe-Institut e Biblioteca Mário de Andrade
Correalização: Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, através da Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc, e MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo
Realização: Outra Margem
Página do espetáculo: www.antesdotempoexistir.art
Jornalista e pesquisadora, doutoranda e mestre em meios e processos audiovisuais pela ECA-USP, onde se graduou em jornalismo. Estuda representações, identidades, recepções e relações de gênero, raça, classe e colonialidade no audiovisual. Por vezes, amplia essa perspectiva para tecer olhares acerca das artes da cena (teatro, performance e dança) e televisão. Atualmente, como bolsista do Projeto Paradiso, cursa master em curadoria cinematográfica na Elías Querejeta Zine Eskola, na Espanha.