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Artigo

Independência e contendas românticas

13.8.2022  |  por Fernando Marques

Foto de capa: JPeralta/Santo Amaro Cultural

Uma peça de 1860 teve como tema o episódio da Independência brasileira e, mais importante, prefigurou as exigências contemporâneas de igualdade racial. O texto pioneiro relaciona a emancipação política à conquista dessa igualdade, deixando entender que, sem que se cumpram aquelas exigências, toda ideia de justiça torna-se vazia.   

Ao menos de maneira articulada e politicamente consequente, e limitando-nos à vida urbana, essas demandas datam do século XIX com a campanha da Abolição, a que se pode ligar o drama Gonzaga ou A revolução de Minas (1868), de Castro Alves, peça que integra a fase inicial daquela campanha. Passam pelo Teatro Experimental do Negro (1944-1968) criado por Abdias do Nascimento e se fazem constantes nas últimas décadas com a emergência de uma geração de autoras e autores pretos.

A peça de que se trata é Sangue limpo, drama em três atos do paulista Paulo Eiró (1836-1871), “representado pela primeira vez no Teatro da cidade de São Paulo a 2 de dezembro de 1861”. Também poeta, Eiró tinha 24 anos ao escrever a peça e o fez com grande lucidez, de resto confirmando a precocidade dos escritores românticos. Mais perto de nós, vamos comentar ainda o drama D Miguel, rei de Portugal (1998), de Roberto Athayde, que vê a Independência pelo ângulo português. 

Como diz Roberto Athayde em prefácio: ‘A contenda entre liberais e absolutistas ainda é, grosso modo, a eterna pendenga entre progressistas e reacionários em Portugal, no Brasil, como em qualquer lugar do mundo’. Peças como ‘Sangue limpo’, de Paulo Eiró, e ‘D. Miguel, rei de Portugal’, de Athayde, nos ajudam a entender as motivações desses conflitos e a acreditá-los menos ‘eternos’ do que aparentam ser

A peça de Eiró abre-se com uma cena, chamada prólogo pelo autor, que se dá em praça central de São Paulo, onde circulam pessoas de todas as classes sociais, ali reunidas por ocasião da passagem de d. Pedro I pela cidade. A visita à então pequena cidade causa certa comoção, atrai bastante gente e ocorre duas semanas antes do grito pronunciado a 7 de setembro de 1822, segundo a lenda que cerca a data. 

O olhar amplo e a carga de informações que Paulo Eiró mobilizou já se evidenciam no prólogo. Os motivos de tensão entre brasileiros e portugueses, relativos à situação política, acham-se resumidos nas falas, e os atritos serão materialmente ilustrados por duelo entre o jovem sargento Rafael Proença, brasileiro, e um militar português. Eiró estava a par dos embates retóricos e físicos havidos no Brasil quase 40 anos antes da redação da peça, escrita para concurso de textos teatrais que celebrassem o Brasil, vencido por ele.    

A luta entre Rafael e o militar luso tem origem numa ofensa que dará o tom ao drama. Há naturalmente, na praça, conversas sobre política, animadas pelo instante histórico, pleno de expectativas. O ressentimento português causado pela perda iminente da colônia aguça os preconceitos.

Numa das rodas, o Desconhecido pede notícias de Lisboa e o 2º Desconhecido responde: “Más. Continua a mesma obstinação dos portugueses na guerra que fazem à emancipação brasileira. Esperam-se novos decretos repressivos”. Logo acrescenta: “A hora da Independência está a soar”. Mas diz temer que, “sem um nome prestigioso, que contenha as ambições (…), a hidra da anarquia venha dilacerar-nos”. Então opina: “Acho impossível que o Brasil continue unido à coroa portuguesa”. E quer saber o que pensa o Militar.

Este afirma não ver impossibilidade “em uma união que existe há tão largo tempo”. O outro pondera que “o estado atual é muito diferente”, brasileiros e lusos têm agido de maneira extremada. Ao que o Militar, escarnecendo, retruca: “Sim… graças à vossa mistura de sangue”. O sargento Rafael, filho de escravo, que passava ali por acaso, ouve a fala depreciativa e reage:

Rafael – Mestiços! (…) Não vos envergonhais de lançar-nos em rosto as consequências do crime por vós praticado? Por vós, que tendes feito da América um pelourinho? (…) Quais serão os que, ainda não satisfeitos com a exploração infame dos sentimentos do amor e da paternidade, não desdenham fecundar o leito da escravidão? Somos nós, decerto. Sois generosos em demasia. Não o achais, senhores?

O Militar então ironiza o fato de o jovem falar “como um letrado” e de parecer muito interessado na causa que advoga. Rafael repele as insolências e o convida ao duelo, desafio que o Militar aceita. Caminham ambos para local propício, ainda na praça.

Esse episódio deflagra os motes básicos da peça: um deles, conceitual (mas atualizado nas ações), diz respeito à crítica à noção de “sangue limpo”, herdada de Portugal e usada por lá ainda nos dias atuais, ideia que também se acha no Brasil, embora por aqui não se use essa expressão. Outro fio, ligado ao primeiro, é o caso de amor – romântico até o limite, não há dúvida – entre Luísa, irmã de Rafael, e o jovem português Aires de Saldanha, filho de um aristocrata, d. José.

 A luta gera tumulto na praça. Luísa, engolfada pela multidão, desmaia e é socorrida por Aires, que a vira pouco antes pela primeira vez e que se apaixona instantaneamente por ela, sentimento a ser correspondido pela moça. Esse amor quase impossível, dada a distância social entre os dois, constituiria história bastante surrada se não interrogasse os valores expressos na noção de sangue limpo, generosamente superada ao final, em chave utópica.

O primeiro ato apresenta as tentativas feitas por Aires de aproximar-se de Luísa, escrevendo cartas à menina, rondando a casa em que ela mora, tentando aliciar o agregado Vitorino, ele também encantado pela garota, embora em silêncio. Vitorino traz a nota cômica, nas tiradas espirituosas e nas atitudes às vezes desastradas.

Esse ato se encerra com Rafael percebendo que Aires esteve em sua casa, quando o moço se declarou à Luísa e dela obteve a tímida (mas nítida) confirmação de que lhe corresponde. O sargento reage mal e quase comete um crime contra a irmã (puxa a faca para feri-la), mas se contém a tempo e logo lhe perde perdão.

Autoria desconhecida Imagem de Paulo Eiró (1836-1871) no livro ‘A vida de Paulo Eiró” (1940), de Affonso Schmidt; poeta, escritor e dramaturgo nascido no bairro paulistano de Santo Amaro escreveu a peça ‘Sangue limpo’, cuja ação se passa em 1822 e o texto foi encenado em 1861, sendo publicado em 1863: um dos motes é o romance proibido entre uma moça de sangue mestiço e um fidalgo português, sob pano de fundo do processo histórico da Independência e a manutenção da escravidão

No segundo ato, intitulado “Dois orgulhos”, acha-se uma das passagens mais interessantes da história. Defrontam-se Rafael e d. José, tendo este ido à casa do sargento para lhe falar do caso de amor envolvendo seu filho Aires. Aqui, as palavras de Rafael merecem destaque, e não importa que o tom literário as distancie do que seria usual – a convenção dramática utilizada não é a naturalista.

Imaginando que as ressalvas de d. José se devam à sua cor, diz: “O pobre pode chegar à fortuna; o plebeu pode alcançar honras e glórias: mas o homem que traz em si o selo de duas raças diversas e inimigas, o que poderá fazer ele? Dirá às suas veias que conservem este e não aquele sangue? Dirá à sua epiderme que tome esta ou aquela cor?”.

No entanto, o problema não é propriamente esse. D. José explica: “O obstáculo que existe é outro e maior, direi mesmo invencível. Que importa uma ligeira modificação do sangue?… mas deixar pesar sobre a minha família uma nódoa indelével… Sargento Proença, seu pai era escravo?”. O que o aristocrata não tolera é que o estigma servil venha a se somar a seus 40 antepassados.

A resposta de Rafael combina a simples queixa com a atitude crítica: afirma ser o Brasil uma terra em que são todos escravos. O negro a trabalhar seminu, ao sol; o índio mal pago, empregado na construção de estradas; o selvagem perseguido, a se esconder nas matas; o pardo a “viver esquecido” e enfim “o branco orgulhoso, que sofre de má cara a insolência das cortes e o desdém dos europeus”. Quando todos esses cativos se resgatarem, diz, “há de ser um belo e glorioso dia!”. Apesar do desabafo ou por causa dele, o ato se encerra sem que cheguem a qualquer acordo.

O terceiro ato, afinal, é o mais romanesco da peça. Aires, arrastado pelo pai a Santos, para onde d. José viaja na comitiva que acompanha Pedro I, foge do quarto onde havia sido trancado. A fuga é atribuída a uma negligência do escravo Liberato (nome paradoxal), que então será duramente açoitado por d. José. Farto de sevícias e humilhações, Liberato saca uma faca e mata o fidalgo.

Não haveria teatro sem as coincidências, disse o crítico e historiador Décio de Almeida Prado no ensaio “O drama histórico nacional” (em O drama romântico brasileiro, Perspectiva, 1996). De fato, vemos Liberato (e conhecemos sua história, contata por ele próprio) na pousada próxima do Ipiranga aonde também tinham ido Aires e, depois, Luísa. Acompanhada por Vitorino, ela saíra em direção a Santos para encontrar o seu amor.

Uma das falas memoráveis entre as que temos lido na dramaturgia nativa, incisiva e sintética, inicia-se da seguinte forma. O personagem fala de si mesmo em terceira pessoa:

Liberato – Liberato teve três cativeiros. Primeiro senhor dele era um velho muito bom. Dava esmola pra pobre: Liberato morria de fome. Senhor velho ouvia missa todos os dias, não saía da igreja: Liberato trabalhava sem parar, não tinha dia santo seu. Um dia, branco quis fazer uma capela; não tinha dinheiro, vendeu Liberato na fazenda. Foi mulher que comprou ele. Marido já tinha morrido. Era bonita… bonita… cara de anjo… fala dela era música. Negro apanhava todo dia, negro comia barro pra não morrer de fome, negro não tinha licença de dormir. Sinhá dizia: Feitor não presta! E sinhá ajudava feitor. Um dia mucama quebrou o espelho grande: sinhá arrancou os olhos de mucama.

O estilo se adapta às palavras prováveis de um homem sem escola. Liberato conta que fugiu, foi pego, apanhou durante três dias. Foi quando chegou d. José, propondo trocar um cavalo pelo escravo. “Pode levar”, disse a mulher. Liberato, livre das cordas que o prendiam, ajoelhou-se aos pés do aristocrata, que impiedoso ou indiferente lhe virou as costas. A fala se encerrará assim:

Liberato – Fechou filho dele num quarto de cima, pôs Liberato de guarda ao pé da porta e foi-se deitar. Outro dia, quando acordou, abriu o quarto; estava vazio. Chama Liberato. – Onde está meu filho? – Não sei, não, senhor. – Ajoelha, cão. Liberato não quis ajoelhar. Homem pegou num chicote, e tornou a dizer: Ajoelha. Liberato puxou a faca e abaixou-se. Quando branco deu a primeira chicotada, Liberato estendeu o braço: senhor José caiu morto. Aí está como foi. Encha o copo, meu amo.

Os da pousada deixam que o homem se embriague e chamam a polícia, que vem dar ordem de prisão ao escravo, mas Liberato não está mais para cativeiros. Ele se mata diante dos policiais.

Esse ponto da peça se articula ao desfecho e de certo modo o promove: chega Rafael (que também acompanhara o séquito de Pedro I) e se resigna, muito ressentido, ao ver que Luísa foi embora com o homem que ama sem a sua licença e sem os contornos formais do casamento. Mas, quando Rafael descobre que d. José não existe mais e que o português Aires, assim, acha-se solitário naquela terra que não é a sua, muda de atitude e o convida a fazer parte da própria família.

O final tem sentido simbólico, e uma última coincidência já não parecerá recurso discutível na composição do enredo, mas metáfora. Enquanto Luísa e Aires, gratos, abraçam Rafael (“Que é isto? Querem estrangular-me em agradecimento do que fiz?”), ouvem-se tropel de cavalos, retinir de espadas, vozes: “Independência ou morte!”. O príncipe d. Pedro e seu séquito atravessam o fundo do palco. O país torna-se livre ao mesmo tempo que se quebram as cadeias do sangue limpo.

Autoria desconhecida Retrato de d. Miguel (1802-1866) e esposa Adelaide no exilio; as tentativas de golpe dele são um dos motes do drama histórico ‘Dom Miguel, rei de Portugal’ (1998), do carioca Roberto Athayde

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O drama histórico Dom Miguel, rei de Portugal, publicado em 1998, tem dimensões shakespearianas. São quase 90 personagens, além dos mencionados coletivamente: ao todo mais de 100, decerto. Cinquenta e nove cenas, que se estendem por 215 páginas, sem contar o prefácio em que Roberto Athayde mostra o quanto sabe de história brasileira e portuguesa. Qualidade rara numa arte que nem sempre se casa com a história e que às vezes, pelo contrário, a desconhece.

Segundo o autor informa, a peça é a segunda de uma projetada tetralogia (de que o primeiro texto se chama Carlota rainha, publicado em 1994). Ao contrário do que se pode pensar de obra tão extensa (considerada a forma habitualmente concisa das peças teatrais), a trama é ágil, valendo-se com frequência de cenas breves, que vão se ligando uma à outra sem que se perca o ritmo da ação.

Música, dança e efeitos feéricos aparecem eventualmente, colorindo a história que se passa quase sempre no interior dos palácios, mas também ocupa as ruas. A plateia é usada como parte do espaço cênico. A dificuldade da qual lembramos ao ler essa magnífica obra de teatro é de ordem material. Como levá-la ao palco? Ou talvez à tela, transformada em filme épico.    

O Pedro I do Brasil naturalmente não foi apenas o herói do quadro famoso de Pedro Américo, mas também líder autoritário, tendo outorgado ao país a sua primeira Constituição em 1824, depois de dissolver a Assembleia que a iria formular. No entanto, com o título de Pedro IV em Portugal, teve na ex-metrópole um papel menos reacionário em confronto com o irmão d. Miguel, absolutista e, portanto, contrário a qualquer avanço democrático.       

A peça de Roberto Athayde nos mostra as tentativas de golpe de Estado feitas por d. Miguel a partir de 1823, que encontraram a resistência de seu pai d. João VI. Este havia sido intimado a retornar a seu país depois de 13 anos de Brasil – a transferência da corte portuguesa, fugindo das tropas de Napoleão, ocorrera em 1808. João VI, muito menos néscio do que reza a lenda, equilibrava-se entre o liberalismo, isto é, a monarquia constitucional, e o velho absolutismo para o qual o empurravam as correntes ultraconservadoras e fanatizadas. Arruaças, espancamentos e assassinatos marcam a agitação dos miguelistas.   

As tentativas de golpe, chamadas Vilafrancada e Abrilada, fornecem movimento à peça, que ao mesmo tempo vai fotografando a mentalidade dogmática naqueles tempos. Essa mentalidade encarna-se à perfeição na figura perversa de Carlota Joaquina, esposa de João e mãe de Miguel. Um grande papel, o da destemperada rainha, incapaz de culpa ou remorso.   

Esse clima coletivo (embora não unânime) de ideias e sentimentos desce à psicologia dos personagens: Miguel, visto a partir de seus 20 anos de idade, é infantilmente despótico, impulsivo, de inteligência miúda. Nele enxergamos o perfil de atores da política brasileira contemporânea, descendentes remotos do absolutismo luso, apesar da maquiagem republicana.

João VI seria assassinado em 1826, envenenado a mando de Carlota Joaquina – versão que os historiadores não abonam por completo, mas que o autor julga obviamente correta e, pelos argumentos que apresenta, parece mesmo incontornável. A ação da peça se encerra em 1828, quando Miguel é aclamado rei. Pedro demora-se no Brasil até que as pressões o forcem a abdicar em 1831. Em Portugal, enfrenta os absolutistas, vencendo-os em guerra civil de 1832 a 1834.

Ciclo Roberto Athayde: 40 anos de carreira Mais conhecido pelo monólogo ‘Apareceu a Margarida’ (1971), atuado por Marília Pêra em 1973, Athayde, aqui em registro de 2012, aborda a peleja dos irmãos d. Pedro I e d. Miguel, filhos do rei português d. João VI e da rainha Carlota Joaquina, em torno do trono de Portugal, de 1822 a 1828. A disputa levará à guerra civil lusa entre 1832 e 1834

Como diz Athayde em prefácio: “A contenda entre liberais e absolutistas ainda é, grosso modo, a eterna pendenga entre progressistas e reacionários em Portugal, no Brasil, como em qualquer lugar do mundo”. Peças como Sangue limpo e D. Miguel, rei de Portugal nos ajudam a entender as motivações desses conflitos e a acreditá-los menos “eternos” do que aparentam ser.

Referências

ATHAYDE, Roberto. D. Miguel, rei de Portugal: drama histórico em dois atos.  Rio de Janeiro: Agir, 1998.

EIRÓ, Paulo. Sangue limpo. Em: Antologia do teatro romântico. Peças de Agrário de Menezes, Bernardo Guimarães e Paulo Eiró. Edição e introdução: Elizabeth R. Azevedo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

EIRÓ, Paulo. Sangue limpo. Drama original em tres actos e prologo. São Paulo: Typographia Litterária, 1863.

PRADO, Décio de Almeida. O drama romântico brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 1996.

SCHMIDT, Affonso. A vida de Paulo Eiró. Seguida de uma collectanea inédita de suas poesias organizada, prefaciada e annotada por José A. Gonsalves. Porto Alegre: Companhia Editora Nacional, 1940.  

Professor do departamento de artes cênicas da Universidade de Brasília (UnB), na área de teoria teatral, escritor e compositor. Autor, entre outros, de ‘Zé: peça em um ato’ (adaptação do ‘Woyzeck’, de Georg Büchner); ‘Últimos: comédia musical’ (livro-CD); ‘Com os séculos nos olhos: teatro musical e político no Brasil dos anos 1960 e 1970’ e ‘A província dos diamantes: ensaios sobre teatro’. Também escreveu a comédia ‘A quatro’ (2008) e a comédia musical ‘Vivendo de brisa’ (2019), encenadas em Brasília.

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