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Artigo

Mirada, esboço de uma cartografia

26.9.2022  |  por Ferdinando Martins

Foto de capa: Laura Castro

Após quatro anos – e uma pandemia no meio do caminho –, a cidade de Santos (SP) voltou a receber o Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas. Entre 9 e 18 de setembro aconteceram espetáculos, ações formativas, performances, lançamentos de livros e um encontro de programadores, além de outras atividades. O evento, organizado pelo Sesc São Paulo, envolveu artistas de 11 países e de diversos estados brasileiros. Ou seja, uma oportunidade e tanta para refletir sobre a necessidade da arte nesses tempos incertos.

Por suas características, a programação estimula a construir uma análise a partir de uma cartografia do teatro ibero-americano recente. O conjunto de 36 peças permite identificar os traços predominantes na teatralidade contemporânea. Sem pretender ser exaustivo, este artigo propõe o desenho de um mapa sobre alguns eixos estruturantes da programação. Tal procedimento baseia-se na ideia de cartografia teatral e teatro comparado, uma concepção do crítico, historiador e professor argentino Jorge Dubatti, bem como na experiência do estudioso francês Patrice Pavis, em sua leitura sobre a edição de 1998 do Festival de Avignon.

Além de ‘La mujer que soy’, corpos transexuais estiveram em cena em ‘Erupção – O levante ainda não terminou ‘, da coletivA Ocupação (SP), ‘O que meu corpo nu te conta’, do Coletivo Impermanente (SP), e ‘Brasa’, espetáculo de dança criado pelo português Tiago Cadete. A transexualidade deixou de ser somente tema e imiscuiu-se no cotidiano. Aliás, em nenhum desses trabalhos aparece como elemento perturbador. Ao contrário, a transexualidade emergiu como condição naturalizada

Alguns dos eixos de análise elencados neste texto puderam ser notados já nas duas primeiras obras apresentadas no Mirada 2022, em sua sexta edição bienal. As peças Viagem a Portugal, última paragem ou o que nós andámos para aqui chegar, da autodeclarada estrutura portuguesa Teatro do Vestido, e Estreito/Estrecho, uma coprodução luso-chilena com o Teatro Experimental do Porto e o Teatro La María, de Santiago, marcaram presença na noite de abertura. A primeira é um trabalho documental que revê as mais de quatro décadas da ditadura salazarista no país homenageado no festival. Às vésperas de uma conturbada eleição presidencial no Brasil, repleta de desinformação e fake news, no mesmo ano em que se comemora o bicentenário da Independência, uma obra que reforça convicções humanistas erigiu-se como uma escolha emblemática.

Na sequência, tratando com humor e ironia a circum-navegação do Estreito de Magalhães, Estreito/Estrecho coloca em perspectiva crítica os estereótipos, preconceitos e julgamentos precipitados envolvendo europeus e latino-americanos, dando o tom decolonial presente em toda a mostra, com a recorrência de temas relacionados aos corpos divergentes, às questões de gênero e sexualidade e à memória, além da predominância de procedimentos avessos ao drama e em busca de uma proximidade maior com o real.

Corpo, gênero e sexualidade

Acompanhando uma tendência global, o Mirada trouxe um expressivo número de produções com a presença de corpos divergentes, aqueles que fogem dos padrões predominantes. Pessoas transexuais puderam ser vistas em quatro obras distintas, além de atuarem nos bastidores em tarefas de produção ou administrativas. Da mesma forma, o espetáculo Hamlet, do peruano Teatro La Plaza, apresentou um elenco exclusivamente composto por jovens com Síndrome de Down. A perspectiva decolonial do evento reforçou a presença de negros em diversas apresentações, entre elas Erupção – O levante ainda não terminou, CÁRCERE ou porque as mulheres viram búfalos, Um inimigo do povo, Chão e BaqueStriBois. Três indígenas atuaram em Discurso de promoción, do grupo peruano Yuyachkani, além da participação da liderança guarani brasileira Geni Nuñez na roda de conversa Decolonialidade, parte das ações formativas.

A peça La mujer que soy, em formato site specific, produção do festival argentino Teatro Bombón, foi encenada simultaneamente em dois apartamentos de frente para o mar no histórico Atlântico Hotel. Em um deles, a filha chega à mãe com uma namorada aparentemente aproveitadora. No outro, uma esposa busca afeto do ex-marido, travesti que havia feito a transição de gênero após o divórcio. Interpretada pela atriz transexual Maiamar Abrodos, a peça é um exercício de alteridade, na qual a sexualidade é adereço, detalhe. Trata de convivência e de desejo, mostrando como é possível sustentar as divergências. Nesse sentido, ainda que seja um drama sobre relações amorosas e familiares, adquire um caráter político, propondo formas de convivência tão necessárias em tempos de polarização.

Além de La mujer que soy, corpos transexuais estiveram em cena em Erupção – O levante ainda não terminou , da coletivA Ocupação (SP), O que meu corpo nu te conta, do Coletivo Impermanente (SP), e Brasa, espetáculo de dança criado pelo português Tiago Cadete. A transexualidade deixou de ser somente tema e imiscuiu-se no cotidiano. Aliás, em nenhum desses trabalhos aparece como elemento perturbador. Ao contrário, a transexualidade emergiu como condição naturalizada.

Teatro La Plaza O atuante Lucas Demarchi em ‘Hamlet’, da companhia peruana Teatro La Plaza, sob dramaturgia e direção de Chela De Ferrari e elenco composto por jovens e adultos com Síndrome de Down

Igualmente inclusivo, Hamlet apresentou uma renovada leitura do clássico elisabetano. O texto de William Shakespeare serviu de dispositivo e pretexto para discussões sobre a experiência de sujeitos com Síndrome de Down. A neurodivergência foi mostrada com seriedade, mas de forma espirituosa. No início do espetáculo, os atores dirigiram-se ao público para explicar certas características de cada um deles, como a demora para falar ou uma aparente confusão mental que poderiam suscitar em suas intervenções. Esse expediente gerou empatia e fez o público conectar-se com o elenco em uma nova chave.

As questões de gênero também se configuram em relevo. É o tema central na montagem argentina Fuck me, na brasileira CÁRCERE ou porque as mulheres viram búfalos (SP) e nas portuguesas Ensaio para uma cartografia e Sou uma ópera, um tumulto, uma ameaça. Em outros trabalhos, a diferenciação entre masculino e feminino é significativa, ainda que não central, como em Erupção, na argentina Erase e em O que meu corpo nu te conta.

Em Fuck me, a artista Marina Otero exacerbou traços pejorativamente associados ao feminino, como a dissimulação e a histeria, completando um experimento de autoficção desenvolvido em dois trabalhos anteriores, Andrea (2012) e Recordar 30 Años para vivir 65 minutos (2015-2020). Juntas, essas obras compõem a trilogia Recordar para Vivir. A proposta original era que a artista atuasse sozinha nos três espetáculos, mas um problema de saúde fez com que, em Fuck me, dividisse o palco com cinco performers masculinos. Assim como uma personagem dos romances do século XIX, Marina Otero encarna uma mulher doente, frágil, em consonância com certa ideologia da feminilidade que patologiza o feminino. No entanto, a fraqueza é apenas uma máscara, pois a personagem aos poucos revela-se potente, hipersexualizada, dominadora, invertendo os papéis de gênero e apresentando um espetáculo envolvente, criativo e notório.

Da mesma forma, as mulheres de Sou uma ópera, um tumulto, uma ameaça tecem uma fina artesania de referências, emaranhando textos das britânicas Margaret Cavendish (aristocrata britânica que viveu no século XVII) e Virgínia Woolf e da norte-americana Siri Hustvedt. A dramaturgia, inteligente e provocativa, tomou corpo em atuações precisas. Trata-se de um trabalho da estrutura Causas Comuns, fundada em 2004 pela portuguesa Cristina Carvalhal e que privilegia a presença de mulheres e todos os cargos.

Sexualidades que fogem da heteronormatividade também aparecem com vigor em outras produções. A prostituição masculina em Cuba é tema BaqueStriBois e um relacionamento lésbico entre uma mulher trans e outra cisgênero é central em La Mujer que Soy. Em Cuando pases sobre mi tumba, o uruguaio Sergio Blanco ficcionaliza sua própria morte para falar de suicídio assistido. Na peça, o personagem Sergio Blanco contrata os serviços de uma clínica suíça para morrer e pede para um jovem iraniano necrófilo ter relações sexuais com seu cadáver.

Memórias e fronteiras

A pandemia de Covid-19 impactou não apenas a saúde, mas sobretudo o imaginário. Diferentes formas de pensar e de agir emergiram como resposta às restrições do confinamento. No bojo dessas transformações, a memória e o esquecimento foram modificados, reelaborados em suas configurações e funções. A memória é o tema central de Reminiscência, do grupo chileno Le Insolente Teatre, e de A caminhada dos elefantes, da companhia portuguesa Formiga Atómica. É também relevante em Fuck me e Cuando pases sobre mi tumba, em que supostas experiências pessoais são rememoradas cenicamente.

Durante a quarentena, o ator e diretor Malicho Vaca De Valenzuela apresentava Reminiscência de maneira remota, por meio da plataforma Zoom, e utilizando recursos como o Google Earth e arquivos digitais para falar de sua avó, em um afunilamento de imagens e vídeos que iam das galáxias para a casa onde morava. Agora, em formato presencial, o próprio Malicho, por meio de projeções, apresenta esse percurso. Reminiscência é um relato documental sensível sobre o esquecimento. A avó do ator, diagnosticada com Alzheimer, guarda lembranças de letras de tangos e boleros, ao passo que apaga memórias de sua vida, inclusive do próprio neto. Ao mesmo tempo, o espetáculo mostra a cidade de Santiago e o apagamento de sua fisionomia urbana, com demolições, gentrificações e novos edifícios.

Paulo Nogueira O ator e encenador Miguel Fragata em ‘A caminhada dos elefantes’, trabalho da companhia portuguesa Formiga Atómica voltado ao público infantojuvenil

A caminhada dos elefantes é um espetáculo sensível, apresentado em um delicado cenário feito de cabanas de tule, abajures e brinquedos. Conta a história do ambientalista sul-africano Lawrence Anthony (1950-2012), que por doze anos protegeu uma manada de elefantes na reserva de Thula Thula, do povo zulu, na África. Quando morreu, os elefantes empreenderam uma caminhada de 12 horas até sua residência, onde por dois dias velaram o corpo de Anthony. Voltado ao público infantil, A caminhada dos elefantes é um relato memorialístico que trata da morte de uma forma acessível e bela, por meio de brincadeiras, canções e teatro de sombras.

Quando se fala de memória, há que se destacar a presença de grupos históricos da América do Sul na programação do Mirada, em especial o peruano Yuyachkani, o boliviano Teatro de Los Andes e o colombiano Mapa Teatro, todos com mais de 30 anos de existência. Com Discurso de promoción, que pode ser traduzido em português como Festa de formatura, o Yuyachkani seguiu sua tradicional linha memorialística de trabalho, revendo momentos históricos do Peru. Neste caso, o bicentenário da Independência foi o mote para ações performativas envolvendo cultura popular e teatro documentário.

O Teatro de Los Andes, por sua vez, associou-se aos brasileiros do Clowns de Shakespeare no exercício cênico Fronte[i]ra |Fracas[s]o, iniciado no ambiente digital durante o Ocupação Mirada 2021, no projeto Telas Abertas da América Latina, que se estendeu para pesquisas de campo nas cidades de Brasiléia, no Acre, e Cobija, no Departamento de Pando, na Bolívia. A parceria inédita buscava discutir o que é uma fronteira por meio da história de um homem que, durante toda sua vida, resistiu a uma divisão artificial do território onde vivia.

Há semelhanças nas propostas de Discurso de promoción e Fronte[i]ra |Fracas[s]o, como o trabalho com fatos histórico, o uso de dispositivos do teatro documentário e principiar o espetáculo na parte externa do teatro. Há que se reconhecer a importância histórica do Yuyachkani e do Teatro de los Andes, mas alguns de seus procedimentos perderam o sentido. Por exemplo, ambos trabalhos deslocavam o público pelo espaço cênico, algumas vezes de forma excessiva e incômoda. Tal procedimento, que no passado visava despertar o público e criar uma teatralidade imersiva, mostra-se, hoje, superado, uma vez que novas modalidades de interpelação foram criadas. O uso do tempo expandido e de uma interpretação minimalista em Orgia, Pasolini, produção do Teatro Nacional 21, de Lisboa, dirigida por Nuno M Cardoso, a efervescência festiva de Erupção, direção de Martha Kiss Perrone, a relação de proximidade com as fábricas de Cubatão Vila Parisi, do Coletivo 302, de Cubatão (SP), direção de Douglas Lima, por exemplo, mobilizam o espectador de maneiras inventivas.

Em outra direção, o Mapa Teatro apresentou o inventivo La luna em el Amazonas, um trabalho com ampla gama de recursos técnicos para iluminação e cenário e inovações nos recursos de linguagem pesquisados pelo grupo desde sua fundação, em 1984. Partindo do registro documentário para uma criação ficcional, procedimento já adotado em trabalhos anteriores como La despedida, apresentado no Mirada 2018, desta vez os temas são a Amazônia colombiana, a resistência dos povos originários e o isolamento. Há citações ao filme Memória (2021), do diretor tailandês Apichatpong Weerasethakul, rodado na Colômbia e com a participação de dois atores da peça. No filme e na montagem cênica, o entrelaçamento entre o subjetivo e as condições determinadas pelo ambiente histórico, político e cultural se fazem presentes.

Rolf Abderhalden A porção colombiana da maior floresta tropical do mundo está no centro de ‘La luna en el Amazonas’, criação do grupo Mapa Teatro, de Bogotá, uma concepção e direção dos irmãos Heidi Abderhalden e Rolf Abderhalden

Teatros do real

À boca miúda, comentou-se nas conversas paralelas dos participantes do Mirada 2022 sobre o constante uso de recursos audiovisuais, interpretados como ecos da quarentena de Covid-19. No entanto, essa associação não se sustenta, uma vez que o cinema já é utilizado no teatro há mais de um século e, apesar de as novas tecnologias terem facilitado a presença de imagens e sons nos palcos, projeções de fotos e vídeos já eram amplamente empregados antes da pandemia.

Considerando os aspectos formais, o que se nota, de fato, é a predominância do que a filósofa e pesquisadora francesa Maryvonne Saison denomina “teatros do real”, em especial a autoficcção e o teatro documentário. São formas que embaralham informações criando instigantes jogos interpretativos. Em Entreito/Estrecho, várias referências falsas são criadas, como a inclusão de personagens fictícios apresentados como reais ou criando uma falsa história sobre o desaparecimento dos Selk’nam, povo originário da Terra do Fogo que, na peça, é exterminado pelo navegador português Fernão de Magalhães quando, na verdade, foram mortos por pneumonia, no século XX, após capturados para se apresentarem como atração em zoológicos alemães.

Pistas falsas fazem parte do jogo da autoficção, explorado exemplarmente por Marina Otero, em Fuck me, e Sérgio Blanco. O dramaturgo uruguaio há muito parte de acontecimentos de sua vida para narrar a própria morte de forma fictícia. Antes de Cuando pases sobre mi tumba, já havia criado, com esse mesmo formato, Tebas Land, La ira de Narciso e El bramido de Düsseldorf. Em larga medida, os teatros do real exibidos no evento aproximam-se do teatro performativo, formato contemporâneo de práxis teatral que se mescla com atuações performáticas dos artistas. No entanto, a performance arte, como linguagem autônoma e independente, ficou relegada a segundo plano na programação. Apesar de ser um festival de artes cênicas, as performances não apareciam na programação principal, onde estavam o teatro e a dança, mas sim nas ações formativas, sem grande destaque. Dessa forma, trabalhos singulares acolhidos na instalação TheA²trumcoRpusmUnDi, como Devorar conchas e clérigos, da Companhia Antropofágica (SP), Glossolilando, de Cristiane Paoli Quito e Lívia Seixas, e A nota fervorosa, de Ana Kiffer e Carlos Serejo, tiveram pouco público, sem a repercussão devida.

.:. O autor viajou a convite da organização do Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas.

.:. Visite o site do Mirada.

José Caldeira Artistas de ‘Estreito/Estrecho’, parceria luso-chilena entre o Teatro Experimental do Porto (TEP) e o Teatro La María, de Santiago, sob direção de Alexandra von Hummel, Alexis Moreno e Gonçalo Amorim

Sociólogo, jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Líder da linha Estudos da Performance e Processos de Subjetivação do Grupo de Pesquisa Alteridade, Subjetividades, Estudos de Gênero e Performances nas Comunicações e Artes. Desenvolve pesquisas nas áreas de história da arte, teorias do teatro, estudos da performance, psicanálise e produção cultural. É, também, jurado dos prêmios Shell SP, Bibi Ferreira e da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA).

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