Menu

Artigo

Roberto Gomes, a trágica delicadeza

6.12.2022  |  por Fernando Marques

Foto de capa: Reprodução

As revistas e comédias musicais de autores como Cardoso de Menezes e Luiz Peixoto, espetáculos risonhos, tiveram seu contraponto nas peças do carioca Roberto Gomes (1882-1922), um dos dramaturgos de inspiração simbolista atuantes nas primeiras décadas do século passado. A atmosfera soturna e crepuscular compõe o cenário preferencial das oito peças deixadas por ele, também crítico de música e teatro, contemporâneo de João do Rio (1881-1921) e Paulo Gonçalves (1897-1927). Seus 100 anos de morte completam-se em 31 de dezembro.

O influxo francês na obra do dramaturgo devia-se não apenas aos hábitos culturais das elites, mas ao fato de ser filho de francesa e de ter vivido em Paris dos 8 aos 15 anos. A admiração pelo realista Henri Bataille, representante do “teatro da paixão”, e pelo simbolista belga Maurice Maeterlinck, identificado aos climas sutis, ação rarefeita e pendor místico (aos quais dedicou estudos), deixou marcas em suas peças que, no entanto, em geral não abandonaram as âncoras realistas. O amor ou a impossibilidade do amor, o sofrimento inevitável, o sem-saída existencial são seus temas de eleição.  

A obra de Roberto Gomes foi escrita entre 1910 e 1921. Ao final desse período, cenários menos cosmopolitas e mais tipicamente brasileiros aparecerão em seu trabalho, em resposta a tendências nacionalistas em voga, incorporadas, contudo, de maneira muito pessoal. Como se dá na lapidar A casa fechada, de 1919, em que a história se passa em pequena cidade do interior. A peça, publicada e encenada postumamente, foi levada à televisão por Antunes Filho em 1975. Sensibilidade para a condição das mulheres distingue esse e outros textos do autor.

Dentre as oito peças que escreveu, o carioca Roberto Gomes (1882-1922) privilegiou os temas permanentes (a solidão, a morte), não há dúvida. Tampouco deixou de fazer a crônica das elites de seu tempo, embora este não seja o aspecto mais importante em sua obra. O que o afirma como testemunha da vida social reside na atenção dada às relações predatórias entre as pessoas, das quais ‘O jardim silencioso’ (1918) e ‘A casa fechada’ (1919) oferecem exemplos eloquentes, sendo a última adaptada ao teleteatro por Antunes Filho nos anos 1970

A estreia de sua primeira peça, Ao declinar do dia…, ocorre no Theatro Municipal do Rio de Janeiro em julho de 1910 – o prédio havia sido inaugurado no ano anterior. O drama em ato único participara de uma seleção feita pela Academia Brasileira de Letras, que estimulava o surgimento de autores nacionais.

O breve enredo mostra Viriato, homem de saúde frágil, acamado em tratamento de doença grave; sua mulher Laura; e Jorge, um velho amor que chega para visitá-la. A cena inicial envolve o Médico, Viriato e, depois, o doutor a sós com Laura. Ela sabe então que o marido está desenganado e pode morrer em poucos dias – ou horas.

O diálogo entre Laura e Jorge os leva, a seguir, não sem hesitações e angústia, a tentar retomar os sentimentos que ficaram para trás. Quando afinal se desfazem dos temores e se beijam, Viriato, que havia acordado, ao que parece ouve a conversa e possivelmente vê o beijo. Sua presença, até ali não notada por Laura e Jorge, se denuncia pelo baque do corpo. O projeto amoroso renascido há pouco então se desfaz: Laura não quer viver com a culpa de terem, quem sabe, levado seu marido à morte.

A peça é, digamos, palavrosa, com a linguagem das falas a comprometer a sua fluidez. Mas a história, com seu pesado fatalismo, pode impressionar o leitor. É fato que a ética do sacrifício já não comove (ou convence) todo mundo: o desfecho, com a separação de Laura e Jorge, lembra uma fotografia antiga, digna, mas distante.

 “A companhia que representou a sua peça em 1910 era luso-brasileira e a temporada não agradou”, registra a pesquisadora Marta Morais da Costa, editora da coletânea Teatro de Roberto Gomes (1983). Havia uma demanda por companhias e montagens nacionais. O crítico Mário Nunes, citado por Costa, informa que dois anos depois, quando se exibiu O canto sem palavras, o empresário Eduardo Vitorino organizava “a primeira companha brasileira que ocupou o Municipal (…), aceitando o prefeito Bento Ribeiro a proposta, cedendo a cerrada campanha da imprensa”. A estreia se deu em outubro de 1912.

O canto sem palavras, em três atos, é uma das principais peças de Roberto Gomes. O crítico Sábato Magaldi, no Panorama do teatro brasileiro originalmente publicado em 1962, fala em Tchekhov e nos romances de Machado de Assis ao tratar dos climas melancólicos, quando não sombrios, desenhados na peça. As limitações de novo residem nas falas retóricas (o que é notado por Costa e também por Eudinyr Fraga em O simbolismo no teatro brasileiro, de 1992), mas aqui as situações estão dispostas de modo a justificar em parte os derramamentos.

Reprodução Dos raros registros de Roberto Gomes, que nasceu no Rio de Janeiro, passou parte da infância em Paris, legou pelo menos oito peças, projetou-se como um dos dramaturgos de inspiração simbolista atuantes nas primeiras décadas do século XX, contemporâneo de João do Rio, tendo vivido por 40 anos, até tirar a vida

Roberto Gomes revelava-se, na segunda obra, um hábil criador de situações dramáticas. Na primeira peça, tudo se encaixava um pouco precisamente demais, denunciando a presença do autor quando não se devia percebê-la. Desta vez, os acontecimentos (afinal simples) levam o maduro Maurício a não concordar, a princípio, com o casamento de sua afilhada Queridinha, sem que tenha nenhum motivo para tanto. Hermínia, amiga de Maurício (na verdade, sua ex-amante, mas a censura não permitia o uso dessa última palavra), então o faz ver: o que ele sente pela menina não são cuidados de tutor, mas ciúmes de homem apaixonado pela garota de 17 anos.

Há, é claro, algo de romanesco ou melodramático na história. Queridinha havia perdido o pai, depois a mãe, e esta tinha sido o grande amor de Maurício, que prometera à mulher, quando ela estava prestes a morrer, criar a menina de quem era padrinho. E ele transfere, sem o perceber, o que sentia pela falecida para a adolescente. Argumento digno de Nelson Rodrigues, vista a “súbita impressão de incesto” (como diz a canção Fado tropical, de Chico Buarque e Ruy Guerra).

Ao contrário de Nelson, no entanto, Roberto Gomes faz com que Maurício recalque o impulso (que reconhece com dificuldade) e consinta afinal no casamento – mas ele viaja na véspera da cerimônia para um compromisso profissional, tão verdadeiro quanto providencial. A bem dizer, foge para não presenciar o casamento da afilhada. Tudo se resolve sem grande alarde (exceto pelos rompantes de Maurício), embora não sem sofrimento.

Com A bela tarde, que estreia em junho de 1915, o autor está de volta à forma do texto em ato único. A rubrica inicial sugere o homem de teatro, cônscio dos recursos de palco e dos efeitos a obter com eles:

Na Tijuca. Um jardim. À esquerda, a casa, adornada com plantas e trepadeiras. Uma varanda, comunicando com o jardim por uma escadaria, dá para a sala de jantar. Ao fundo, à direita, o portão rústico, e a estrada que vai subindo pela montanha. Seis horas da tarde. Através das árvores, avistam-se ao longe o Rio e a baía, dourada pelos últimos raios do sol agonizante. Grandes nuvens de ouro e sangue serpeiam pelo céu imenso que resplende. São as derradeiras fulgurações, antes da noite silenciosa que vai lentamente cair.       

Essa é uma das boas peças desse repertório. O grupo de personagens compõe uma família, com Papai, Mamãe, Primo Juca e Nicota, secundados por Vizinho, Criada e Rapaz. O diálogo envolve linguagem coloquial e certo humor.

Falam do perfume das orquídeas e do cometa que passou há dias, por exemplo. Juca debocha do artigo de jornal que defende “o granito imarcescível de nossa honra” contra as “pútridas excrescências da calúnia” (trata-se de um caso envolvendo a Central do Brasil e seu diretor). Adiante, esse tom de comédia será rompido pelas dores de amor da jovem Nicota, abandonada pelo homem que a beijara e lhe prometera casamento, e do maduro Juca (na “crise dos cinquenta!”), igualmente abandonado e ofendido pela mulher a quem amava.

O aspecto da cena transforma-se: “As estrelas começam a palpitar, tremulantes, e como um reflexo do céu, lá embaixo, as luzes da cidade vão aos poucos brilhando”. Conversam nessa atmosfera e a certa altura Juca pondera, falando à menina das “duas pequenas dores que se encontram ao crepúsculo”: 

Estes belos momentos não podem durar muito. Amanhã já te arrependerás das tuas confidências, e, mais tarde, talvez as evoques com uma compaixão irônica. Sorrimos tão cruelmente do nosso passado! Mas não sorrias desta bela tarde em que a tua almazinha de criança e o meu velho coração palpitaram e sofreram face a face, tão miseravelmente! O Fontes não merece decerto as tuas lágrimas, e Lili muito menos as minhas. Mas não escolhemos as nossas dores.

As falas de todos os dias dão lugar a confissões desalentadas. Nicota pergunta: “E viveremos sempre assim?”. Juca replica: “E vamos assim vivendo, resignados e mudos”. Até que, “rejeitando a roupagem vã das palavras fictícias, balbuciamos as outras, as imortais palavras de verdade e de dor!”. Quando “os mais fundos segredos sobem da alma aos lábios”, diz Juca. Como notou Fraga, o autor se empenha em explicar a paixão das personagens em vez de apenas sugeri-la, o que o leva a excessos verbais nessa e noutras peças. Mas, de novo, a linha que imprime às situações pode atenuar tais excessos.

Autoria desconhecida O escritor simbolista belga Maurice Maeterlinck é uma das influências confessas na obra de Gomes, identificado aos climas sutis, ação rarefeita e pendor místico, características das peças do brasileiro que, no entanto, em geral não abandonaram as âncoras realistas: o amor ou a impossibilidade do amor, o sofrimento inevitável, o sem-saída existencial são temas de eleição

O sonho de uma noite de luar sobe à cena em julho de 1916 e é impresso no mesmo ano. Trata-se de uma peça fantasista, na qual os limites do real são ultrapassados. Cristiano teve uma paixão por Edel há 15 anos e continua preso a esse sentimento. Em versos (embora a maior parte do texto venha escrito em prosa), ele evoca a menina que o amou e que, segundo ele, o traiu. Ela então o visita.  

Veja-se o que o autor pede aos recursos de iluminação no momento da chegada mágica de Edel: “À medida que ele fala, uma luz fosca aparece num recanto da sala. Vai aos poucos se concentrando, e tomando o aspecto de uma forma humana, a forma de uma criança de 15 anos. Ela fica algum tempo imóvel. Afinal, dá uns passos e estende os braços para Cristiano”. Vale ressaltar os efeitos propostos na rubrica (ainda que tecnicamente simples). Efeitos como esses são necessários às atmosferas crepusculares ou noturnas das quais demos exemplos acima.

O palco brasileiro foi capaz de sortilégios visuais pelo menos desde fins do século XIX, como se sabe pelos elogios de Arthur Azevedo (1853-1908) ao cenógrafo Gaetano Carrancini, “extraordinário artista” que chegou ao país em 1885. Em seus trabalhos, “há flores que se transformam em estrelas, colunas que giram, águas que jorram, grupos maravilhosamente combinados, harmonia de cores, efeitos de projeções luminosas”, escreveu Azevedo, citado em artigo por Décio de Almeida Prado (1986). São truques relativos a espetáculos de revista, mas certamente assimilados por montagens de dramas como os de Roberto Gomes.

Podemos lembrar, a esse respeito, também os espetáculos de Oduvaldo Vianna (1892-1972), pertencente à geração 10 anos posterior à de Gomes. Assim, a ideia divulgada por Nelson Rodrigues de que a iluminação nos palcos nacionais antes de Vestido de noiva (1943) limitava-se a “luz fixa, imutável – e burríssima”, algo que “nada tinha a ver com os sonhos da carne e da alma”, é no mínimo inexata (ele o diz em A menina sem estrela, de 1993).   

O sonho de uma noite de luar, “noturno em um ato”, incide em tema caro ao teatro de Gomes. O amor, como as rosas, não vive mais que um instante e não resiste quando se quer prolongá-lo ou a ele voltar. Pois a Edel fantasmática some e, em seguida, aparece a Edel real, atual, 15 anos depois daquele encontro que ficara na memória. Os dois tentam reviver o sentimento, mas o resultado é pífio: “Os teus lábios são frios”, diz ele. “O teu amplexo é mole”, responde ela. “Sob a mão do passado o presente agoniza”, sentenciam.     

Mais consistente é O jardim silencioso, com estreia em setembro de 1918. Essa peça em um ato nos remete a A bela tarde, agora com ação mais intensa e grave. O jardim que avistamos acha-se “adormecido, prateado de luar”. A “calma impressão de paz íntima e serenidade” vai se quebrar ao longo da breve história, para ao final reencontrar o equilíbrio possível.

A linguagem mostra-se coloquial, sem o rebuscamento de outros textos, ressalvado que a norma observada é a culta e na sua forma lusa, que era a usada nos palcos do início do século XX. Estamos na véspera do aniversário de casamento de Pedro e Noêmia Alvim. Mariana, irmã de Pedro, vem visitar o casal. Noêmia havia saído e ainda não chegou. Helena, a filha, conversa com Mariana e esta, beata, diz não compreender que a sobrinha “não seja religiosa”. Ela é, a seu modo.

A chegada de Daniel, primo da família, vem romper de todo a tranquilidade do ambiente, já alvoroçado com a demora de Noêmia. Nervoso, Daniel diz primeiro tê-la visto na rua, prostrada na calçada, vítima casual de um tiro. Depois admite sob pressão (“Daniel, tu mentes!”) que a encontrou ferida no hospital. E não foi acidente. Noêmia tinha um amante havia três anos e este vinha chantageando-a, ameaçando revelar o adultério. Naquela tarde, perseguiu-a e disparou três vezes contra ela. 

Esses acontecimentos são narrados por Daniel, e não chegamos a ver Noêmia, objeto de todas as atenções. O processo desloca o drama para o interior das personagens e o condensa nos diálogos, sobretudo o de Pedro e a filha Helena (que já sabia do caso e guardara segredo para poupar tanto a mãe quanto o pai). Vimos procedimento similar em A bela tarde. Essa técnica de mostrar não as ações em si, mas os seus efeitos, voltará a ser usada pelo dramaturgo em A casa fechada.

Filiado ao teatro da paixão de Bataille, o drama em quatro atos Berenice terá estreia póstuma, em francês, no Municipal do Rio em agosto de 1923. O texto em português será levado à cena pela Companhia Jaime Costa em setembro de 1931 e publicado no ano seguinte. É uma peça de excessos – não de todo inverossímeis, porém.

A personagem-título desfila a sua vaidade nos salões, encarnando a vida hedonista e frívola das elites e seus satélites, a que tampouco faltam atitudes mesquinhas ou mesmo sórdidas. Um daqueles satélites é o jovem pianista Flávio Orlando, arrivista de talento que se vale dos sentimentos outonais de Berenice para seduzi-la e usá-la socialmente.

A última cena do terceiro ato exibe o confronto entre a mulher e o homem que a abandona. Ele diz a ela: “Não me perdoavas o amor que me tinhas”, frase que faz recordar o “perdoa-me por me traíres” rodriguiano. Os ataques são ferozes e recíprocos. Berenice ameaça contar à mulher com quem Orlando vai se casar o que foi a sua vida com ele. Orlando então a humilha:

Eu também lhe direi a vida de tormentos que passei, preso ao teu amor mirrado, quando havia lá fora tanta juventude ardente e sadia à minha espera! Hei de contar-lhe o horror das nossas noites, lúgubres como a morte, em que ouvia, calado, as tuas trêmulas e exasperantes palavras de amor… recebendo os teus beijos febris que me nauseavam e que eu aturava por compaixão… Sim, por compaixão…

No quarto e derradeiro ato, o homem procura Berenice. A mulher parece que vai se deixar enredar por Orlando uma vez mais, atendendo às súplicas de amor que ele lhe faz – não sem insistir na devolução das cartas que ele escreveu a ela e que o desmoralizam. Berenice pede que o homem saia por um instante… E pouco depois se mata com a arma que guardava, “revólver pequeno e trabalhado como uma joia preciosa”. Um dramalhão, sem dúvida, que não teme os excessos e os potencializa.

O romance Inocência, do Visconde de Taunay, lançado em 1872, tem tido dezenas de edições e foi traduzido em diversas línguas. Teve também adaptações: quatro para teatro, duas para ópera, uma para cinema (mudo), feitas entre 1896 e 1915. Situada em Mato Grosso, a história fala da menina de 18 anos que dá nome ao livro e seu amor infeliz com Cirino, jovem farmacêutico que percorre o interior. Os dois ousaram contrariar o acordo de casamento tratado pelo pai de Inocência com o pretendente Manecão, selado à revelia da garota.  

O livro de Taunay adota linguagem regional e tem humor, visto nas figuras do pesquisador alemão e seu auxiliar que andam pelas matas à cata de insetos, mas encerra uma história trágica. A adaptação de Roberto Gomes, em seis quadros, conserva esses traços. Estreou em junho de 1921, não tendo sido bem recebida pela crítica: “o único fracasso” na carreira do dramaturgo, de acordo com Costa. 

Dois aspectos parecem especialmente significativos em Inocência. O primeiro deles é o cenário rural em que se passa a história, distinto das salas e jardins urbanos, ricos ou remediados. Ambiente semelhante (mas não idêntico) quanto à localização no interior do país aparecerá em A casa fechada, possivelmente a peça mais bem lograda de Roberto Gomes.

Divulgação Cena de ‘A casa fechada’, teleteatro dirigido por Antunes Filho e exibido pela TV Cultura em 1975; boa parte das externas aconteceram na vila inglesa de Paranapiacaba (SP), no Alto da Serra do Mar: em uma morada desabitada de uma pequena cidade, acontecimentos misteriosos aguçam a curiosidade dos vizinhos, que pouco a pouco vão revelando suas personalidades

O segundo aspecto a assinalar corresponde a um dado comum a várias obras do autor: as situações de violência em que se veem as personagens femininas, sejam as protagonistas Berenice e Inocência, sejam os “seres de papel” (no dizer de Costa), isto é, as personagens apenas mencionadas pelas demais. É o caso de Noêmia em O jardim silencioso, a quem não vemos, e de Maria das Dores em A casa fechada, a quem apenas entrevemos ao final.

A casa fechada foi encontrada entre os papéis de Gomes, com data de 23 de julho de 1919. O texto, em um ato, seria publicado em 1947 e chegaria ao palco em novembro de 1953. Está entre as peças (a outra é Berenice) só encenadas após a morte do escritor, que se suicidou com um tiro no peito na derradeira noite de 1922. Há uma nona peça, na verdade a primeira, chamada Le papillon, escrita em francês pelo dramaturgo adolescente. O adulto iria descartá-la.

A casa fechada ilustra à perfeição a mudança de ênfase operada pela dramaturgia simbolista: o interesse desloca-se da ação exterior para a subjetividade das personagens. Ou seja, o privilégio é dado a como os acontecimentos são recebidos e elaborados pelos que os veem ou deles têm notícia. O grupo de vizinhos, reunidos em frente à agência do Correio na pequena cidade, comenta o caso de adultério envolvendo Maria das Dores e o marido Matias; tudo o que importa, dramaticamente falando, já aconteceu. Para além dos supostos fatos, o que se revela são os valores, os preconceitos, a maledicência, o prazer com a dor alheia e a eventual compaixão daquelas pessoas. 

O grupo espera a saída de Das Dores de sua casa, fechada há dias, para ir embora da cidade no trem das sete horas. A ótica e a técnica simbolistas optam, nessa e noutras peças, pela criação de atmosferas em detrimento da exposição sequencial das ações. A forma circular (por assim dizer) tende a substituir a objetividade e a linearidade realistas.

A forma em pauta serve a um conteúdo que se pode associar à sorte geral dos seres humanos; mas, nessa moldura ampla, acentua a condição das mulheres. A cena em que Matias açoita Maria das Dores, narrada por Geraldino, e outra história sangrenta contada pelo Pescador à audiência ávida geram reações, e essas reações caracterizam as personagens e a mentalidade que as governa. Uma das senhoras, Eudóxia, discorda solitária e timidamente dessa mentalidade. No entanto, o homem “é o dono. Tem todos os direitos”, dirá o Boticário, taxativo. O Acendedor de Lampiões e o Mendigo, figuras alegóricas, vêm relativizar as certezas nas últimas cenas.  

A adaptação de Antunes Filho para a tevê, em 1975, capta muito bem a peça teatral (o programa está disponível no YouTube, embora incompleto). Seria injusto destacar qualquer dos intérpretes, todos seguros, mas pode-se chamar a atenção para o trabalho de uma Denise Stoklos iniciante no papel de Ritoca. A personagem a certa altura tem um acesso de riso nervoso, inestancável e revelador.

A dramaturgia de Roberto Gomes se valeu com frequência da inspiração ou da colaboração da música; ele era pianista. A esse respeito basta recordar O canto sem palavras, que alude já no título a uma obra de Mendelssohn, executada em cena. Outra referência estava na poesia de Heine, citada mais de uma vez.

Roberto privilegiou os temas permanentes (a solidão, a morte), não há dúvida. Tampouco deixou de fazer a crônica das elites de seu tempo, embora este não seja o aspecto mais importante em sua obra. O que o afirma como testemunha da vida social reside na atenção dada às relações predatórias entre as pessoas, das quais O jardim silencioso e A casa fechada oferecem exemplos eloquentes.

Referências bibliográficas:

FARIA, João Roberto (dir.). História do teatro brasileiro, volume I: Das origens ao teatro profissional da primeira metade do século XX. São Paulo: Perspectiva/Sesc São Paulo, 2012.

FRAGA, Eudinyr. Simbolismo no teatro brasileiro. São Paulo: Art & Tec, 1992.

GOMES, Roberto. Teatro de Roberto Gomes. Com oito peças. Edição e introdução: Marta Morais da Costa. Rio de Janeiro: Inacen – Instituto Nacional de Artes Cênicas, 1983.

GOMES, Roberto. A casa fechada. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Teatro, 1973. 

MAGALDI, Sábato. Panorama do teatro brasileiro. 3ª edição revista e ampliada. São Paulo: Global, 1997. PRADO, Décio de Almeida. “Do Tribofe à Capital federal”. In AZEVEDO, Arthur. O tribofe. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Casa de Rui Barbosa, 1986.

.:. No vídeo a seguir, o primeiro capítulo incompleto de A casa fechada, teleteatro a partir da peça homônima de Roberto Gomes, produção da TV Cultura exibida em 1975 sob direção de Antunes Filho. Atuações de Jofre Soares, Dina Lisboa, Karin Rodrigues, Jairo Arco e Flexa, Luiz Linhares, Paulo Deo, Elisio Albuquerque,
Denise Stoklos e Elizabeth Savalla. Cenas externadas gravadas na histórica vila inglesa de Paranapiacaba (SP).

Professor do departamento de artes cênicas da Universidade de Brasília (UnB), na área de teoria teatral, escritor e compositor. Autor, entre outros, de ‘Zé: peça em um ato’ (adaptação do ‘Woyzeck’, de Georg Büchner); ‘Últimos: comédia musical’ (livro-CD); ‘Com os séculos nos olhos: teatro musical e político no Brasil dos anos 1960 e 1970’ e ‘A província dos diamantes: ensaios sobre teatro’. Também escreveu a comédia ‘A quatro’ (2008) e a comédia musical ‘Vivendo de brisa’ (2019), encenadas em Brasília.

Relacionados