Menu
Uma temporada no Congo, texto de Aimé Césaire e direção de Christian Schiaretti junto ao Teatro Nacional Popular, o TNP, de Paris, em 2013 [ator Marc Zinga é o líder político Lumumba, ao centro]

Artigo

A poética política de Aimé Césaire

4.3.2023  |  por Fernando Marques

Foto de capa: Michel Cavalca

Césaire 1

O ano de 1960, “glorioso”, como já o chamaram, marca a independência de 16 países africanos dos colonizadores europeus. Entre esses países, estava a atual República Democrática do Congo, que se emanciparia dos belgas a 30 de junho. No centro dos eventos, a figura do político e poeta Patrice Lumumba (1925-1961), um dos líderes do movimento de independência, que sai da prisão para o cargo de primeiro-ministro da nação recém-criada.

O dramaturgo, poeta, ensaísta e político martinicano Aimé Césaire (1913-2008) percebeu em Lumumba e no Movimento Nacional Congolês, fundado por este, pontos de partida exemplares para uma peça teatral sobre a luta anticolonialista – e o fez com os acontecimentos ainda quentes, em pleno curso. A peça Uma temporada no Congo, escrita em 1966, foi publicada pela Temporal em 2022 (e lançada em Brasília e São Paulo). É uma das quatro obras teatrais de Césaire. 

Outro de seus textos teatrais chama-se A tragédia do rei Christophe, escrito em 1963, cuja história se passa no Haiti do início do século XIX, país onde ocorrem rebeliões com as quais se torna livre da escravidão em 1793 e dos dominadores franceses em 1804. O rei tirânico do título acaba por cometer erros similares aos dos colonizadores.

O volume Textos escolhidos, publicado no ano passado pela Cobogó, traz essa peça e também os ensaios Discurso sobre o colonialismo (1950), de um sarcasmo certeiro e demolidor, e Discurso sobre a negritude. Neste, Césaire atualiza, em 1987, a noção formulada pioneiramente por ele e companheiros na década de 1930.  

 

No mesmo volume que traz ‘A tragédia do rei Christophe’, acham-se dois ensaios. O mais extenso chama-se ‘Discurso sobre o colonialismo’ (1950), ‘feito como um panfleto e um pouco como um artigo de provocação’. Já o ‘Discurso sobre a negritude’ (1987) foi pronunciado na Universidade da Flórida, nos Estados Unidos, durante a Primeira Conferência Hemisférica dos Povos Negros na Diáspora, e faz breves apontamentos a um conceito então cinquentenário, aparando arestas e atualizando os seus contornos

Uma temporada no Congo mistura situações tratadas à maneira dramática (que predominam) a manifestações líricas, às vezes no interior da mesma cena. O autor se vale do Tocador de kalimba, personagem que tem a tarefa de comentar a história em chave poética. 

Lumumba atravessa os três atos em permanente movimento, saltando de crise em crise, dadas as circunstâncias conturbadas daquele período, cerca de ano e meio, com acontecimentos em reviravolta constante: preso, solto, preso outra vez… Ele age quase sempre de modo emocional, resposta possível aos momentos vertiginosos vividos ou ocorridos à sua volta.

Corajoso e por vezes temerário, otimista até a ingenuidade – sua mulher lhe diz: “Você é uma criança, Patrice!” –, Lumumba representa o que se pode chamar de herói complexo, para além do símbolo da resistência ao opressor que ele certamente também é. Herói de teatro, humano até a medula.  

De início, tiram-no da prisão e o nomeiam primeiro-ministro, por ser líder popular e “o homem negro mais conhecido do mundo à época”, informa o trio de tradutores no prefácio. Na ocasião da transferência de comando dos belgas para o recém-inaugurado governo do Congo, quando estão presentes o rei belga, o próprio Patrice e outras autoridades, Lumumba estraga a festa paternalista dos antigos donos do poder.

O rei belga, Basílio, que em particular chama os congoleses de “bárbaros”, em público usa naturalmente outras palavras. Seu general Massens tinha dito a ele: “Majestade, não creio que eles sejam tão obtusos a ponto de não sentirem toda a diferença que separa um direito que lhes seria reconhecido de uma dádiva de Vossa Real Munificência!”. O soberano responde: “Acalme-se, Massens, deixarei isso explícito das formas mais imperativas possíveis”.    

Multidão que não é hostil ao rei europeu assiste, animada, à cerimônia. As primeiras falas do aristocrata bastam para caracterizar a sua disposição ideológica: “Dirijo um pensamento piedoso a meus predecessores, tutores antes de mim deste país, e em primeiro lugar a Léopold [rei belga], o fundador, que aqui chegou não para tomar ou dominar, mas para doar e civilizar”. Depois de saudar fundadores e sucessores, ele entrega aos congoleses “este Estado, nossa obra”.

A seguir, manifesta-se aquele que será o presidente algo decorativo do Congo, chamado Kala, respeitoso e protocolar. Depois, chega a vez de Lumumba. Ele, por assim dizer, quebra as louças e o faz modelarmente:

Lumumba – Eu, sire, eu penso nos esquecidos.

Nós somos os que tiveram as posses tomadas, os que foram espancados, os que foram mutilados; os que eles menosprezavam, os que eles cuspiam na cara. Boys de cozinha, boys de quarto, boys, como vocês dizem, lavadeiras, fomos um povo de boys, um povo de “pois-não-Bwana”, e, para quem duvidasse que o ser humano pudesse não ser humano, bastava olhar para nós.

Sire, todo sofrimento que se podia sofrer, nós sofremos. De toda humilhação que se podia beber, nós bebemos!

Mas, camaradas, o gosto de viver, eles não puderam de nossa boca tirar o sabor, e nós lutamos, com nossos parcos recursos, lutamos durante cinquenta anos e aí está: vencemos.

Nosso país está agora nas mãos de seus filhos. (1º ato, cena 6)

Logo Lumumba enfrentará uma secessão – a rica província de Catanga ameaça desligar-se do Congo. A Organização das Nações Unidas (ONU) tem um papel no mínimo ambíguo em relação à independência do país e a seus desdobramentos, pois se omite quando se trata de ajudar os congoleses a defenderem a integridade do território.

Divulgação O poeta, dramaturgo, ensaísta, militante e líder político martinicano Aimé Césaire (1913-2008) escreveu as peças ‘A tragédia do rei Christophe’ e ‘Uma temporada no Congo’ na década de 1960; se esta apresenta a história de um líder que se quer realizar trabalhando pela emancipação de seu povo, mas encontra dificuldades de toda sorte, aquela traz um mandatário que parte de pressupostos falsos, promovendo sofrimento em lugar de prosperidade

Os belgas, com o apoio efetivo ou tácito de aliados ocidentais, entre eles os norte-americanos, alimentam com armas a divisão. Quanto ao desembarque dessas armas em Catanga, a ONU limita-se a encaminhar “uma nota muito firme ao governo de Bruxelas”, diz o secretário-geral da entidade. Ao mesmo tempo que se recusa a interferir no conflito sob o argumento da neutralidade, a ONU também se nega a permitir que Lumumba recorra a outros possíveis aliados. Nomeadamente, os russos – parceria perigosa segundo os interesses estrangeiros.

No plano doméstico, Kala e o chefe militar Mokutu são inimigos em potencial do primeiro-ministro. Já na cena da transferência de poder, Mokutu reage à fala contundente e desabusada de Lumumba: “Quem pode ter redigido esse discurso? E dizer que eu queria fazer dele um homem de Estado! Se ele quer quebrar a cara, azar o dele!”, reclama. A cautela exigida por Mokutu – possível informante dos belgas na fase colonial – não se relaciona ao interesse do povo congolês, como se vai ver.   

Já no segundo ato, há uma cena que vale destacar, por envolver as eventuais contradições de Lumumba – contradições que não diminuem o personagem, antes o enriquecem. Na quinta cena desse ato, ele anuncia “uma grande notícia”, a tomada de Bacuanga, capital de uma das províncias.

Kala, no entanto, lamenta o fato considerando se tratar de “uma vitória que corre o risco de custar o mesmo que uma derrota!”. Um dos ministros presentes pondera, na mesma direção: “Temos que admitir que o ENC [Exército Nacional Congolês] agiu com mão pesada! Seis mil baluba mortos!”. Acrescenta: “Na igreja de Saint-Jean de Bacuanga, quarenta famílias baluba foram exterminadas em condições inacreditáveis de crueldade! De sadismo mesmo, poderíamos dizer!”.                 

Outro ministro propõe chamar o Exército – para interpelá-lo, certamente. Um terceiro diz que os militares desmoralizaram o país diante do mundo. Lumumba a princípio parece admitir que os baluba sejam mesmo “os judeus da África”. A seguir discorda: “Mas uma campanha militar não é de forma alguma uma batalha de confetes!”.

Quando se fala na repercussão daqueles fatos na imprensa mundial e na acusação de genocídio feita pela ONU, grita: “E onde estava o sr. [secretário-geral] Hammarskjöld quando os belgas massacraram nossos homens e violentaram nossas mulheres?”. Ressalta ainda que a inimizade entre os lulua e os baluba foi estimulada pelos europeus.

A cena pode ser vista para além do que mostra imediatamente – a reação ocidental revela-se interessada e seletiva, é o que diz Lumumba, e ele está certo – relacionando-a a outra cena, esta do terceiro ato. Não há dúvida de que a reação dos países ocidentais não seria tão feroz e unânime se os agressores fossem belgas, franceses ou ingleses. A maioria deles provavelmente silenciaria ou desconversaria. Tem sido assim.

Lumumba, no entanto, não chega a lamentar o acontecido, e creio que ele o faria se fossem outras as circunstâncias. A imprensa e os diplomatas estrangeiros usam as mortes contra o Congo – quando o país corre o risco de se fragmentar. Esse uso ideológico dos fatos é o que o primeiro-ministro não aceita e por isso vai falar na rádio celebrando a vitória – e mais: “Quero dançar esta noite para celebrar a tomada de Bacuanga!”.

Essa recusa em admitir que algo de grave ocorreu, que algo saiu errado sinaliza, a meu ver, justamente o sentimento contrário. Quem fala em dançar para festejar a vitória – e com uma moça lulua, ou seja, pertencente ao grupo que praticou o massacre contra os baluba – é, na verdade, um homem interiormente fraturado.   

A violência pode ser comparada ao fogo, que se alastra e foge do controle dos que o atearam, ao atingir pessoas indefesas no seu rastro – neste caso, as vítimas são as famílias dizimadas na igreja de Saint-Jean. Ao contrário do que parece, Lumumba não é indiferente a tais desastres e justamente por esse motivo quer apagá-los depressa dentro de si.

O que se confirma na cena dois do último ato, quando militares chamados “paras” (de “paracomandos”), liderados por Kala e Mokutu, adentram o bar em que Lumumba conversa com jornalistas e dá declarações como se ainda estivesse à frente do governo. Mama Makosi, a dona do lugar, alerta: “Patrice! Os paras! Os paras! Eles invadiram a casa!”. O aliado M’Polo garante: “Patrice, não precisa ter medo! Nossos caras estão prontos! O bairro todo está com a gente! Os capangas do Mokutu vão encontrar alguém à altura!”.

Michel Cavalca Parte do elenco do espetáculo ‘Uma temporada no Congo’, produzido pelo TNP francês uma década atrás

A resposta de Lumumba nos surpreende: “M’Polo, já chega, não quero que sangue congolês seja derramado”. O outro insiste: “A gente não vai se deixar pegar como ratos de jeito nenhum!”. O líder então cita passagem bíblica que afirma ser impossível fazer justiça com violência. M’Polo ainda argumenta: “Você diz não violência, mais vale dizer suicídio!”. Lumumba encerra o assunto: “Exatamente, M’Polo! Se vou morrer, que seja como Gandhi. Tenha paciência! Deixa essa gente toda entrar! Eu vou recebê-los!”.     

Em 1966, Mokutu estará no poder a que chegou, por golpe de Estado, algum tempo antes do desaparecimento de Lumumba em janeiro de 1961. A cena final dá o tom de seu governo: diante da multidão que exalta Lumumba, ele, irritado, ordena a seus soldados que atirem contra as pessoas. O Tocador de kalimba é um dos mortos.

A extensa obra alterna diálogos claros em prosa e segmentos cifrados que podem soar obscuros, aqueles mais numerosos que estes. A peça ganhou tradução cuidadosa, em trabalho assinado por João Vicente, Juliana Mantovani e Maria da Glória Magalhães. A leitura sensível e precisa de trechos do texto, feita pela atriz Cristiane Sobral no lançamento do livro em Brasília, evidenciou a qualidade dos resultados em português. A edição acompanha esses cuidados, com fotos e uma centena de notas ao final.

Césaire 2

Césaire pensou as peças A tragédia do rei Christophe, Uma temporada no Congo e Uma tempestade, publicadas entre 1963 e 1969, como um “tríptico político”. Em entrevista de 1967, ele alude a essa última peça, baseada em A tempestade de Shakespeare, e diz: o trio de obras “é como o drama dos negros no mundo moderno. Duas partes do tríptico já existem: o Rei Christophe é o painel das Antilhas, Une saison au Congo é o painel africano, e o terceiro deverá ser, normalmente, o dos negros americanos, cujo despertar é o acontecimento deste meio século”. Para teatro, o autor escreveu ainda o poema dramático E os cães se calavam, de 1946. 

Se Uma temporada… apresenta a história de um líder que se quer realizar trabalhando pela emancipação de seu povo, mas encontra dificuldades de toda sorte, A tragédia do rei Christophe traz um mandatário que parte de pressupostos falsos, promovendo sofrimento em lugar de prosperidade. O texto nos dá a fábula dos déspotas supostamente esclarecidos. Trata-se de uma tragédia bufa, com elementos e passagens líricas.

Aqui, Césaire já se vale do processo de misturar ou alternar ação dramática e episódios líricos – o poético surge frequentemente em forma de canções. Referindo-se ao primeiro ato, o dramaturgo sugere encenação “em estilo bufo e paródico, em meio ao qual o grave e o trágico vêm bruscamente à tona em meros lampejos”.  

O republicano Pétion e o futuro rei Christophe se encontram, ou melhor, se confrontam. Ambos procedem de lutas revolucionárias, que venceram, e pretendem reorganizar o país. Não haverá acordo entre eles, e logo o Haiti estará dividido em dois Estados, que ocuparão o sul e o norte do território.

No encontro, Pétion oferece a Christophe o cargo de presidente, que este rejeita por considerá-lo decorativo. As salvaguardas democráticas fixadas em leis recentes, mencionadas por Pétion, tampouco interessam a seu rival.

Uma fala de Christophe encerra a cena expressando o seu desprezo pela população, que ele não vê como conjunto de cidadãos e sim como crianças a serem reeducadas e conduzidas – se preciso, pelas orelhas. “A maior necessidade deste país” não é a liberdade, mas “ter um Estado”:

Christophe – Sim, senhor filósofo, alguma coisa em razão da qual esse povo de deslocados se enraíze, germine e desabroche, lançando sobre a face da Terra os aromas e os frutos de seu florescimento; e, por que não dizer, alguma coisa que o obrigue, se necessário pela força, a nascer de si mesmo e a se superar a si mesmo. (…) (tom ameaçador, contrastando com a descontração anterior) Para tudo o mais (saca a espada, brandindo-a), minha espada e minha lei!

O enredo vai mostrar o desenvolvimento prático dessa lógica obtusa (já vimos o filme vários vezes no Brasil), e Césaire não economiza nas tintas humorísticas, usadas para evidenciar o absurdo. No entanto, como ele próprio diz, algo de triste e de trágico – no sentido que esse último termo tem de incontornável – se deixa ver nas situações.

Por vezes, o tom sério toma a cena, sem contrastes, como quando a peça nos dá imagens da guerra civil haitiana e ouvimos a fala em versos do chefe dos rebeldes, amotinados igualmente contra Pétion e Christophe.

Os rebeldes desejavam criar um país novo, e o chefe capturado depõe: seria um país “aberto a todas as ilhas!/ A todos os negros! Os negros do mundo inteiro!/ Mas vieram os procuradores/ para dividir a família/ pondo as mãos em nossa mãe/ desfigurando-a aos olhos do mundo/ em trivial marionete infeliz!/ Christophe! Pétion!/ eu rejeito por igual a dupla tirania”.

Noutros momentos, o humor domina, e no segundo ato vemos o regime em pleno movimento. Por exemplo, temos a cena em que o próprio rei fiscaliza os súditos, armado de luneta para verificar se algum deles foge ao trabalho. O camponês flagrado a cochilar merece um tiro de canhão, dado à distância, que manda pelos ares o homem e sua casa modesta, em castigo exemplar por sua atitude relapsa. Hugonin, bobo da corte íntimo do poder, comenta cinicamente: “O homenzinho virou mingau!”.  

Além das situações de opressão exercida com despótica alegria, é central o projeto de uma Cidadela, abrigo desmesurado que o rei decide oferecer ao povo, a ser construído com o trabalho dos súditos. Christophe os obriga a esse trabalho semiescravo justamente para estimulá-los, com vantagens pedagógicas evidentes para ele. Não importa se a lei da gravidade torna difícil carregar as pedras. A obra se fará apesar dos limites humanos e da própria natureza.

Michel Cavalca Marc Zinga repete o protagonismo em ‘A tragédia do rei Christophe’, de 2017, também uma direção de Christian Schiaretti para o TNP; numa das cenas, o personagem-título expressa seu desprezo pela população do Haiti, que ele não vê como conjunto de cidadãos e sim como crianças a serem reeducadas

Essa figura quase de desenho animado, habilmente delineada pelo autor, vai se transformar no terceiro e último ato quando Christophe perde o movimento das pernas, supostamente por intervenção de forças sobrenaturais. A presença dos versos e do canto ajuda a estabelecer outra atmosfera, modificando-se o clima gaiato das primeiras seções.

A agenda política de Christophe pode ser resumida nos “grandes passos e grandes esforços” que exigia de seu povo e em seu método, o da opressão. Esse método temerário termina por lhe fazer inimigos numerosos. Eis a sua falha trágica ou tragicômica, a falta que o leva à queda. Sua prática de criar uma aristocracia, inventando títulos nobiliárquicos com que regala meia dúzia de ociosos, também soa ridícula, outro aspecto pelo qual Césaire critica sem meios-tons o seu personagem.

No desfecho, há signos místicos – canções, orações, sortilégios – ligados à tradição africana e haitiana, que envolvem o personagem numa aura algo fantástica. O clima torna-se ambíguo, de sentido impreciso.   

Mas não deixamos de pensar na população que ele tão diligentemente maltratou: “A vara de ferro que ele adorava brandir sobre a cabeça de vocês finalmente se despedaçará nas mãos dele… Até mesmo aqueles que eram seus tenentes o abandonam, cansados de não serem mais que escravos de primeiro escalão”, diz o adversário Boyer. Este general de Pétion fala em vingança e, ainda aqui, o revés nasce “do seio da Providência”.    

A tradução de Sebastião Nascimento nos dá acesso a essa peça que reúne humor e mito; edição bem cuidada envolve o texto. Nas canções, aparecem diferentes registros linguísticos: kreyòl, francês (sobretudo no último ato). A presença frequente do canto deve dar ensejo a um espetáculo de teatro musical.

Césaire 3

No mesmo volume que traz A tragédia do rei Christophe, acham-se dois ensaios. O mais extenso chama-se Discurso sobre o colonialismo, “feito como um panfleto e um pouco como um artigo de provocação”. Já o Discurso sobre a negritude faz breves apontamentos a um conceito então cinquentenário, aparando arestas e atualizando os seus contornos.

O primeiro artigo saiu originalmente em 1950, mas ganhou notoriedade cinco anos depois, quando publicado pela editora parisiense Présence Africaine, responsável pela revista pan-africana de mesmo nome. O segundo texto é de 1987, tendo sido pronunciado na Universidade da Flórida, nos Estados Unidos, durante a Primeira Conferência Hemisférica dos Povos Negros na Diáspora (Homenagem a Aimé Césaire).

No Discurso sobre o colonialismo, Césaire desmonta os sofismas colonialistas e racistas, usados por pensadores ditos sérios – sobretudo até meados do século passado, quando se escoravam na pseudociência. Raciocínios carentes não só de humanidade, mas também da lógica mais elementar, com premissas falsas e generalizações indébitas.

Césaire aponta na Europa dois grandes problemas: o do proletariado, ou seja, a desigualdade interna ao continente; e o da colonização, que se refere à relação com outros povos e países. Ele vai se concentrar sobre essa última questão, mas ligando-a à primeira, e ambas à ação da burguesia nos 200 anos anteriores. Aqui, poderíamos lembrar que esses problemas são ainda mais antigos, remontando quando menos ao século XVI. O que, no entanto, não desmentiria em nada a equação proposta pelo autor.

As relações econômicas e políticas, assimétricas, projetam-se na consciência dos indivíduos sob a forma de ideologia. Isso acontece quando se imagina, por exemplo, que a desigualdade social tenha origem natural. Sem instrumentos críticos, cedemos às construções ideológicas, construções que nos chegam prontas, como lugares-comuns, tradução subjetiva de desigualdades objetivas.   

Os pretensos representantes da razão e da consciência europeias não encontram argumentos capazes de justificar as práticas políticas ocidentais, confrontados por “dezenas e dezenas de milhões de pessoas que das profundezas da escravidão se erigem em juízes”. Assim, filósofos, historiadores, psicólogos, geógrafos incidem em preconceitos, obrigando-se ao equívoco ou à hipocrisia.

Césaire afirma: “Pode-se matar na Indochina, torturar em Madagascar, castigar nas Antilhas. Os colonizados agora sabem que têm uma vantagem sobre os colonizadores. Sabem que seus ‘senhores’ transitórios mentem”.

Ele então se dispõe a examinar uma fórmula de pensamento que alguns vendem como se estivesse demonstrada a priori, a de que haveria equivalência entre colonização e civilização. Ao dominar outros povos e territórios, os europeus estariam transferindo qualidades culturais e morais a seus subalternos.

Césaire propõe a pergunta: “o que é, em princípio, a colonização?”. E responde:

O essencial é convir naquilo que ela não é; nem evangelização, nem obra filantrópica, nem desejo de fazer retrocederem as fronteiras da ignorância, da enfermidade ou da tirania, nem difusão de Deus, nem ampliação do Direito, o essencial é admitir (…) que o gesto decisivo neste caso era o do aventureiro e do pirata, do comerciante e do armador, do explorador de ouro e do negociante, do apetite e da força, tendo por trás a funesta sombra lançada por uma forma de civilização que, a um dado momento de sua história, se viu internamente compelida a estender à escala mundial a concorrência de suas economias antagônicas.

A expansão colonial – portuguesa, espanhola, inglesa, francesa, holandesa – se fez em razão do interesse material e jamais se recusou à carnificina.

Michel Cavalca Zinga e atores na montagem francesa de ‘A tragédia do rei Christophe’, cuja edição brasileira, pela Cobogó, inclui dois discursos de Césaire; num deles, o autor afirma que Hitler aplicou à Europa “métodos colonialistas que até ali estavam reservados apenas aos árabes da Argélia, aos cules da Índia e aos negros da África”

Césaire entende que a amoralidade básica do empreendimento colonial minou as bases éticas da própria cultura europeia e terminaria por irromper no próprio continente. É como ele vê o nazifascismo, exemplo extremo da indiferença pelo sofrimento alheio.       

Cinco anos depois de terminada a Segunda Guerra, o ensaísta constata que o horror diante de Hitler decorreu não de seus traços inumanos – mas de a crueldade até então praticada contra povos não europeus haver dizimado, dessa vez, os próprios europeus. A mesma amoralidade usada para impor sofrimento a africanos e asiáticos acabou por vitimar os conterrâneos.

Para Césaire, o que o “mui distinto, mui humanista, mui cristão burguês do século XX (…) não perdoa a Hitler” é “o fato de ter aplicado à Europa métodos colonialistas que até ali estavam reservados apenas aos árabes da Argélia, aos cules da Índia e aos negros da África”.

Césaire critica o que chama de pseudo-humanismo (que, por nossa conta, poderíamos apelidar também de humanismo ambivalente) pela redução arbitrária dos direitos das pessoas, operada a todo tempo e há tanto tempo. Os que se julgam humanistas têm desses direitos “uma concepção estreita e parcelada (…) e, em última análise, sordidamente racista”.

Ele adverte não ser contrário ao contato entre civilizações distintas, de modo algum. O contato é positivo e costuma rejuvenescer povos diferentes; uma civilização fechada em si mesma tende a fenecer. Pois “as trocas são o oxigênio” e “a grande sorte da Europa foi ter servido de encruzilhada”, “ter sido o lugar geométrico de todas as ideias, o receptáculo de todas as filosofias, o abrigo de todos os sentimentos”, que dela fizeram “o melhor redistribuidor de energia”.        

Contudo, aos que atribuem à Europa e apenas a ela todas as conquistas (e o fazem para depreciar os não europeus), Césaire opõe, didaticamente, fatos que resistem à visão autocentrada. A aritmética e a geometria foram inventadas pelos egípcios; a astronomia foi descoberta pelos assírios; a química nasceu entre os árabes. Menciona também “o surgimento do racionalismo no seio do Islã, numa época em que o pensamento ocidental tinha uma feição furiosamente pré-lógica”. Páginas antes, citara o repertório político e estético das culturas subsaarianas (ou sul-saarianas, como prefere o historiador Muryatan Barbosa): os impérios sudaneses, os bronzes do Benin, a escultura songai… A música por toda parte. 

Em suma, voltando à questão de ter ou não havido contato entre as culturas no vasto processo histórico da colonização, responde simplesmente não ter havido contato genuíno: “E digo que, entre a colonização e a civilização, a distância é infinita; que, de todas as expedições coloniais acumuladas (…), é impossível extrair um único valor humano sequer”. As populações têm a vida desorganizada e reorganizada segundo os interesses do invasor, sem contato nem troca efetivos.

O Discurso sobre o colonialismo mostrava-se especialmente necessário em meados do século XX porque, àquela altura, ainda circulavam, com ênfase pseudocientífica, teorias raciais que hierarquizavam os grupos humanos, depreciando alguns para tentar justificar a dominação exercida por outros. Essas teorias foram desmoralizadas e ninguém as levaria a sério hoje – exceto a direita ignorante e fanática. Mas as relações desiguais entre os países e entre as pessoas o tornam necessário ainda agora.           

Aimé Césaire foi um dos criadores e divulgadores da noção de negritude, que veio a ter um papel político na emancipação dos países africanos na década de 1960. Mais de 30 anos depois do ensaio sobre o colonialismo, o Discurso dedicado a essa noção afirma de saída que “a negritude não é fundamentalmente de ordem biológica”, mas “uma das formas do destino humano tal como a história o moldou: é uma das formas históricas da condição imposta ao ser humano”.

O termo nasceu nos anos 1930, plasmado pelo grupo que incluía Léopold Senghor, Léon Damas, depois Alioune Diop e o grupo da revista Présence Africaine. Não é, no entender de Césaire, uma filosofia ou “concepção pretensiosa do universo”:       

É uma maneira de viver a história na história; a história de uma comunidade cuja experiência se revela – verdade seja dita – singular, com suas deportações populacionais, suas transferências de pessoas de um continente a outro, suas memórias de crenças distantes, seus escombros de culturas assassinadas.

A negritude “não é comiseração nem lamúria”, mas “postura ativa e ofensiva do espírito”, combate contra uma hierarquia feroz e obtusa, como a que denunciou no ensaio anterior. É afirmação do direito à diferença, “intimação feita a todos para o reconhecimento desse direito” e para o respeito à personalidade comunitária. É luta contra “as fogueiras do racismo que, aqui e ali, voltam a se acender”.

Césaire vê a identidade negra relacionada a esse legado: “Não me importam os cromossomos. Mas eu creio nos arquétipos”. Noutras palavras, crê “na virtude modeladora das experiências seculares acumuladas e da vivência transmitida pelas culturas”.

As populações africanas transplantadas para as Américas, ele constata, influíram sobre as civilizações nascentes com valores essenciais, linguísticos, artísticos, filosóficos, valores que a elas se incorporaram. Césaire considera também os avanços econômicos e políticos, especialmente entre os norte-americanos, entre os quais a negritude teria nascido.      

Ele acredita que não se deva esquecer o que houve de amargo na diáspora, mas assumir plenamente o passado e dele fazer ponto de apoio para seguir adiante. O que significa manter vivos os polos da identidade e da universalidade (“Há duas formas de se perder: a segregação murada no particular ou a diluição no ‘universal’”, dissera em carta).

O autor encerra a sua conferência afirmando o empenho “na conquista de uma nova e mais ampla fraternidade”. Ou, para trazermos as palavras do brasileiro Nei Lopes, na construção de “um humanismo totalmente humano”.

Referências:

BARBOSA, Muryatan S. A razão africana: breve história do pensamento africano contemporâneo. São Paulo: Todavia, 2020.

LOPES, Nei. Bantos, malês e identidade negra. 4ª edição revista e atualizada. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.

*

Serviço:

Textos escolhidos: A tragédia do rei Christophe; Discurso sobre o colonialismo; Discurso sobre a negritude, de Aimé Césaire. Tradução de Sebastião Nascimento. Apresentação de Mickaella Perina.

Coleção Encruzilhada. Organização de José Fernando Peixoto de Azevedo.

Cobogó.

240 páginas, R$ 68,00.

*

Uma temporada no Congo, de Aimé Césaire. Tradução, prefácio e notas de João Vicente, Juliana Estanislau de Ataíde Mantovani e Maria da Glória Magalhães dos Reis. Prefácio à edição francesa de Éric Vuillard. Posfácio de Kabengele Munanga.

Temporal. 232 páginas, R$ 64,00.

Os lançamentos de Uma temporada no Congo em Brasília e São Paulo:

Lançamento de Uma temporada no Congo, de Aimé Césaire, a 26 de janeiro de 2023, na livraria Paradeiro (Quadra 309 Norte), em Brasília, com a presença dos tradutores João Vicente, Juliana Estanislau de Ataíde Mantovani e Maria da Glória Magalhães dos Reis. A atriz Cristiane Sobral fez a leitura dramática de trechos do texto.

Lançamento de Uma temporada no Congo a 3 de dezembro de 2022, na livraria Megafauna (Praça da República), em São Paulo, com a presença dos três tradutores da obra e da historiadora Mayana Nunes. O evento foi mediado por Camila Dias, especializada em literatura e humanidades.

Professor do departamento de artes cênicas da Universidade de Brasília (UnB), na área de teoria teatral, escritor e compositor. Autor, entre outros, de ‘Zé: peça em um ato’ (adaptação do ‘Woyzeck’, de Georg Büchner); ‘Últimos: comédia musical’ (livro-CD); ‘Com os séculos nos olhos: teatro musical e político no Brasil dos anos 1960 e 1970’ e ‘A província dos diamantes: ensaios sobre teatro’. Também escreveu a comédia ‘A quatro’ (2008) e a comédia musical ‘Vivendo de brisa’ (2019), encenadas em Brasília.

Relacionados