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Crítica

Deriva vertiginosa por um país fraturado

27.5.2023  |  por Luiz Fernando Ramos

Foto de capa: Ligia Jardim

Um circo com muitos picadeiros. Essa definição, ouvida de um espectador de Agropeça, criação do Teatro da Vertigem, sintetiza bem as potências e as limitações do espetáculo. A intenção é ambiciosa. Traduzir um país conflagrado partindo de uma das faces da moeda corrente, o poderoso agronegócio e todas as suas circunstâncias: desde as obviamente nefastas – produção extensiva de monoculturas, uso intensivo de produtos tóxicos, desmatamento predatório – até aquelas de que seus representantes muito se orgulham – rodeios espetaculares, música sertaneja hegemônica, apego às tradições.

A maior dificuldade nessa tradução seria o espelhamento, apenas, de um Brasil parcial, principalmente do interior das regiões centro, sul e sudeste, tomado como metáfora dos nossos descaminhos e tratado numa chave sarcástica, senão paródica. Com esse espelho meio torto, de efeitos deformantes, não se iria longe no projeto de atualizar uma leitura do país e de suas mazelas, pela parcialidade da perspectiva, deixando no sereno uma parcela significativa da população, aquela mesma que se manifestou de modo massivo em eleição recente e que se identifica com o mundo do “agro”.

Em ‘Agropeça’, do Teatro da Vertigem, a trama vai se esfacelar progressivamente e a cena se acelerar numa deriva de ações disruptivas. Os responsáveis por essa intensificação, sobretudo, são os atuadores que vão disputando, seja em números isolados, seja ao contracenarem, a primazia do discurso, visto que cada um deles traz algo que transcende o ambiente fabular e atravessa o espaço cênico afirmando uma perspectiva singular

Para vencer esse desafio, e contornar os inevitáveis riscos de uma abordagem simplesmente tendenciosa e, portanto, frágil, o Vertigem lançou mão de uma série de dispositivos dramatúrgicos, performativos e cênicos e conseguiu oferecer uma honesta e vibrante resposta às urgências desses tempos, e ao país em que nos últimos trinta anos estabeleceu-se como um dos coletivos mais relevantes.

O recurso mais óbvio foi o de enlaçar o mundo fantasioso de Monteiro Lobato (1882-1948) e de seu Sítio do picapau amarelo, que serve como um duplo do país, modelo em escala diminuta a ser desconstruído, e quiçá esmigalhado, permitindo que as questões mais candentes da contemporaneidade brasileira ali ecoem e sejam efetivamente tratadas. O racismo estrutural, a transfobia, a violência e a brutalidade da herança colonial nas relações profissionais e no trato social emergem naturalmente, não como temas a serem expostos didática e moralmente, mas, sim, na melhor tradição dramática, ou até na mais clara força da atuação performativa, em cenas vivas e impactantes.

Importante notar que neste espetáculo de retomada o Vertigem reaparece com um elenco completamente renovado. A exceção é a presença firme de Lucienne Guedes, que estivera em seu primeiro espetáculo, Paraíso perdido (1992), e agora retorna no protagonismo da Narizinho e no virtuosismo de vários números musicais. Entre as novas presenças, algumas trazem contribuições preciosas e sustentam a progressão vertiginosa em que o espetáculo se lança a partir de um certo ponto.

Ligia Jardim A atuante e pesquisadora Lucienne Guedes performa como Narizinho e outras figuras em ‘Agropeça’, criação do Teatro da Vertigem em cartaz no Sesc Pompeia (SP); ela estava na formação inicial do grupo em 1991

De fato, no começo, as primeiras cenas fundadas no jogo que emula a relação entre picadeiro e arquibancada habitual aos grandes rodeios, quando um narrador anima a plateia nos entreatos entre os desafios dos peões de permanecerem até oito segundos montados em bois bravos, chega-se a pensar que não haverá decolagem possível. A cena parece esvaziada de recursos ou, só dispondo de alguns chavões que remetem aos aspectos caricatos daquele circo de atrações, não chega a entusiasmar. Mas, logo, esse desempenho espetacular pífio, revela-se quase intencional, pois instaura-se uma crise entre o narrador, o Pedrinho do Sítio em registro crescentemente assustador, em busca de tornar-se um vaqueiro à americana, e uma Narizinho por ele oprimida, já decadente e degradada por anos de abusos sexuais. A partir daí, a trama vai se esfacelar progressivamente e a cena se acelerar numa deriva de ações disruptivas.

Os responsáveis por essa intensificação, sobretudo, são os atuadores que vão disputando, seja em números isolados, seja ao contracenarem, a primazia do discurso, visto que cada um deles traz algo que transcende o ambiente fabular e atravessa o espaço cênico afirmando uma perspectiva singular. O primeiro a se destacar, já na abertura do espetáculo, mas depois em várias aparições combativas, seja como enunciador de posicionamentos ou como rapper, cantante e falante, é André D’ Lucca. Ator preto ele performa o Saci e a Rainha de Sinop, além de dobrar em figuras mais passageiras, sempre com vigor e presença marcantes.

Na mesma toada, de personagens que se destilam em performers, embaralhando ficção e realidade, estão dois outros pontos altos de Agropeça. Inicialmente, armando o quadro singelo da família do Sítio do picapau amarelo, Dona Benta, a atriz trans Andreas Mendes, e Anastácia, a atriz preta Mawusi Tulani, travam um diálogo que converge com as expectativas sobre aquelas identidades ficcionais. Mas, aos poucos, primeiro com a clara ruptura de Tulani frente à postura submissa de Anastácia e, depois, com a incursões de Mendes, por figuras mais acessórias (palhaço satânico e o porco Rabicó), ou suas reaparições como Dona Benta em delírio, o movimento sugere mais um desfile alucinante de errâncias dessas figuras em decomposição, a disputar com suas narrativas o próprio destino do espetáculo. Não é pouca coisa, quanto mais diante das pretensões, já mencionadas, de se apreender o transe de um país fraturado.

De qualquer modo é impossível não reconhecer que esse projeto só se torna viável pela potência performativa destas atuações. E onde isso fica mais evidente é no desempenho de Tenca Silva, a atriz trans que encarna Emília, a boneca de pano do Sítio de Lobato. Na primeira metade do espetáculo ela permanece silenciosa, atuando só com uma expressão corporal elástica, a configurar um ser irrelevante que não para em pé. Mas, como no caso dos outros personagens, em algum momento Emília se encorpa numa performer iluminada, que não só desata a falar e a se impor para muito além das questões do Sítio, como não se deixa mais interromper e praticamente conduz o espetáculo até o seu final, garantindo que nenhuma ferida do país em foco fique livre de sua língua ferina. É um desempenho extraordinário que tem o dom de arrebatar os espectadores.

Ligia Jardim André D’ Lucca como Saci na abertura do espetáculo cujo texto final de Marcelino Freire relê o universo da saga do ‘Sítio do picapau amarelo’, de Monteiro Lobato, e alude à Festa do Peão de Boiadeiro de Barretos (SP)

O encantamento dessas transformações, de personagens passivos em performers autorais, conta na montagem com um outro elemento decisivo para se efetivar. Trata-se do texto de Marcelino Freire, que, menos um dramaturgo e mais um escritor e poeta, fornece aos performers uma prosódia lírica e provocadora a facilitar seu trânsito errante. Freire parte da saga do Sítio do picapau amarelo não para tramar ações de um episódio daquela fonte, mas para utilizá-la como protótipo do país que mira sem pudores ou receios. As ações se trançam erráticas, mas contundentes, espatifando o espelho eventual da situação brasileira em fragmentos de reflexos pulverizados que giram velozes, acelerando até o esgotamento, materializado em seguidos desfalecimentos dos corpos. Agropeça não se presta a ser retrato acabado. É um mobile tentativo que se arrisca, esboça e não termina. No empuxo de todas essas forças, não há como não reconhecer a disposição obstinada de Antônio Araújo, que mobiliza autor e atuantes nessa empreitada de risco e, como encenador, deixa sua marca. Havia tempo que o Vertigem não produzia uma obra tão complexa e, de algum modo, com este espetáculo, em que o público assiste sentado em torno de um picadeiro, a linguagem cênica volta a ganhar relevância. Ainda que longe de uma estrutura dramática, mais performativo e lírico do que nunca, o grupo redescobre as graças da cena contemplativa. Nesse sentido, cabe mencionar ainda dois outros nomes da sua formação original. A codiretora Eliana Monteiro e o iluminador Guilherme Bonfanti, cujo desenho de luz contribui fundamentalmente para estabelecer uma sintaxe cênica estilhaçada. Sim, um circo com muitos picadeiros.

Serviço

Agropeça

Quarta a sábado, 20h; domingo e feriado, 17h. Sessões extras nas terças-feiras 6 e 13 de junho, 20h. De 4 de maio a 14 de junho de 2023

Sesc Pompeia – Galpão (Rua Clélia, 93, Água Branca, tel. 11 3871-7700

R$ 50 (inteira); R$ 25 (pessoas com +60 anos, estudantes e professores da rede pública de ensino); e R$ 15 (credencial plena)

120 minutos

14 anos

Ligia Jardim Cena inicial de ‘Agropeça’, em que figuras posam para foto na propriedade de Dona Beta; as relações sociais são dissecadas à luz das explorações históricas na formação do país

Ficha técnica

Uma criação do Teatro da Vertigem

Texto: Marcelino Freire

Concepção e direção geral: Antônio Araújo

Codireção: Eliana Monteiro

Desenho de luz: Guilherme Bonfanti

Performers: André D’ Lucca, Andreas Mendes, James Turpin, Lucienne Guedes, Mawusi Tulani, Paulo Arcuri, Tenca Silva e Vinicius Meloni

Artistas colaboradores: Nicolas Gonzalez (1ª e 2ª fase) e Lee Taylor (1ª fase)

Dramaturgismo: Bruna Menezes

Assistente de Dramaturgismo: João Crepschi

Conceito do espaço: Antônio Araújo

Cenografia: Eliana Monteiro e William Zarella Junior

Sound designer associados: Randal Juliano, Guilherme Ramos e Kleber Marques

Figurino: Awa Guimarães

Visagismo: Tiça Camargo

Direção musical e trilha original: Dan Maia

Direção vocal: Lucia Gayotto

Videografismo: Vic von Poser

Preparação corporal: Castilho e Ricardo Januário

Preparação corporal (1ª fase): Fabrício Licursi

Direção de movimento: Castilho

Assistente de direção: Gabriel Jenó

Assistentes de iluminação: Giorgia Tolaini

Músicos: Lisi Andrade e Ricardo Saldaña

Operação de luz: Giorgia Tolaini

Operador de áudio: Fernando Sampaio

Operadoras de projeção: Júlia Ro e Vic von Poser

Operadores de câmera: André Voulgaris e Matheus Brant

Operadores de seguidor: Igor Beltrão e Lays Ventura

Contrarregras: Clay Dalim, Flores Ayra, Gabriel Jenó e Jacob Alves

Cenotécnico: Zé Valdir Albuquerque

Montagem, pintura e tratamento de cenografia: Elástica SP Cenografia

Costureiras: Francisca Rodrigues e Cleonice Barros Correa

Sonoplastia dos ensaios: Dener Moreira

Aulas de laço: Gui Sampaio

Crânios de boi: Vinicius Fragata

Máscara Rabicó: Pietro Schlager

Tradutor Yorubá: Mariana de Òsùmàrè

Assistente de arquitetura: Maria Piedade

Acompanhamento no projeto de luz: Chico Turbiani

Estagiária de direção: Julie Douet Zingano

Estagiário de iluminação: Felipe Mendes e Caio Maciel

Fotos: Ligia Jardim

Documentarista: Padu Palmerio

Designer: Guilherme Luigi

Assessoria de imprensa: Canal Aberto Produção: Corpo Rastreado – Leo Devitto e Gabi Gonçalves

Professor titular de história e teoria do teatro da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

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