Menu

Crítica

Grafias expositivas da cena

'Lady Tempestade' por Yara de Novaes, Sílvia Gomez, Andrea Beltrão e Mércia Albuquerque

22.11.2025  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Diego Correa

Três dias e meio antes de sua morte, vítima de parada cardíaca, a advogada Mércia Albuquerque Ferreira (1934-2003) fez a súmula da atuação profissional no último escrito: “Eu vi, vi o tempo passar, os jovens perdidos nas lutas pela cidadania, pela democracia, caírem mutilados, mortos, atapetando com sangue as ruas do Recife. Vi as lideranças presas, amordaçadas, assassinadas. A impunidade dominando, os homens de bem acuados. Não fiquei como a doce e romântica Carolina, de Chico Buarque de Holanda, que na janela não viu o tempo passar. Pulei a janela, levando minha caneta, e comecei a minha caminhada”.

O espetáclo Lady tempestade é nutrido da luta e da coragem dessa brasileira em celebrar a vitória da palavra humana com licença poética, a despeito dos corpos que, direta ou indiretamente, Mércia testemunhou desfigurados ou tombados sob o terror da ditadura civil-militar.

Mais de quatro décadas após o fim do ciclo de 21 anos de governos militares, nestes tempos em que a extrema direita corrompe de vez a noção de “homens de bem”, a atuação solo de Andrea Beltrão, a direção de Yara de Novaes e a dramaturgia de Sílvia Gomez dosam o contraponto feminista que Mércia exerceu, à sua maneira, encarando uma nada surpreendente maioria de homens truculentos em órgãos de tortura, delegacias e tribunais.

Para confrontar a insanidade institucional vigente, a advogada, cuja carreira foi notabilizada pela defesa de presos políticos no Nordeste – consta que foram mais de 500 pessoas –, encontrou na escrita em forma de diário uma estratégia de ler e de interpretar a realidade exasperante imposta pela violência de Estado. Apesar da natureza autobiográfica desse gênero literário, o relato intimista transborda o cenário histórico e sociopolítico do período. O livro Diários 1973-1974 (Potiguariana, 2023), organizado pelo Centro de Direitos Humanos e Memória Popular (CDHMP), de Natal, converge olhares da cidadã que lutou pelo Estado Democrático de Direito, suspenso entre 1964 e 1985, da esposa de Octávio Albuquerque, da mãe de Aradin e da poeta bissexta que era, também amante das artes.

Em ‘Lady Tempestade’, a concepção de Yara de Novaes permite analogia com a diagramação do texto sobre a página de jornal ou de livro, dançando por entre imagens. A diretora é meticulosa nas grafias expositivas da cena, na estratégia de sobrepor e escalonar a presença performativa de Andrea Beltrão nos fluxos da dramaturgia de Sílvia Gomez e das paisagens sensoriais e fantasmais no desenho de som de Arthur Ferreira

Essas páginas foram o ponto de partida para a dramaturgia de Sílvia Gomez. Em seu “diário de um diário”, ela atravessa a massa textual como inspiração para articular uma narrativa desprendida da técnica das datações e fragmentada. Os horrores estão lá, como relatados, mas à luz da liberdade ficcional que estimula a plateia, principalmente as pessoas das gerações subsequentes ao golpe, a experienciarem em outras chaves os horrores contra a liberdade e a vida que levaram Mércia a associar o tratamento bestial do Exército, aplicado às pessoas presas por subversão, ao adotado pela Gestapo, a polícia secreta na Alemanha nazista. Afinal, anotou a escritora diletante, “O pior medo é o medo político”. Donde a missão autoimposta de “arrancar os presos das unhas deles”, ou seja, dos torturadores e delegados que apelidava em suas linhas de “feras” ou “gafanhotos”.

“No meu entender, os componentes do DOI são portadores de ‘síndrome de deterioração’. Homens maus, que vibram com a morte; a violência abafa as angústias de que são portadores. Explicam os atos anormais como amor à pátria”, registrou em 14 de dezembro de 1973, referindo-se aos militares do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), órgão de inteligência e repressão do governo federal à época.

Espetáculo estreado em janeiro de 2024, no Teatro Poeira (RJ), Lady tempestade fora gestado ainda sob as emanações trevosas do governo de morte bolsonarista apeado do poder nas eleições de 2022, mas que tentou perpetrar um golpe para não sair do Planalto, em vão.

Àquela altura, seria elementar ungir os escritos de Mércia para refutar os instintos autocráticos da vez. Em vez disso, Sílvia abraçou a personalidade histórica e a preciosidade da documentação legada, vivida e apurada in loco, para criar uma bricolagem libertária na invenção de escrita e, assim, abrir janelas de utopia – como a que Mércia pulou para lidar com as dores do mundo. A ponto de imprimir tons de humor e suspense à trama, somando à voz da advogada-escritora a própria voz da atuadora, implicada diretamente no presente narrado. E Andrea amplifica a adesão orgânica ao surgir ao lado de Chico Beltrão, o filho responsável por criação e operação da trilha sonora, posicionado em mesa ao fundo.

Há um elo de maternagem entre as mulheres do teatro e a mulher solidária à clientela, a maioria estudantes. Mércia costumava levar comida durante as visitas profissionais. Na cenografia de Dina Salem Levy, há uma placa de trânsito com os dizeres: “Devagar. Crianças voltando da escola”. A noção de cuidado colocada em relevo contrasta a barbárie e remonta a episódio de 2 de abril de 1964. A advogada recém-formada trabalhava como professora, equivalente ao atual ensino fundamental 1, na região central do Recife. Na saída da escola, por volta de meio-dia, viu o ex-deputado constituinte e dirigente comunista Gregório Bezerra vestido apenas de calção, pés descalços, ser arrastado por uma corda no pescoço presa a um jipe do Exército dirigido por um general que “comemorava” o dia seguinte ao golpe militar. E também no dia seguinte a essa cena cruel, Mércia, aos 29 anos, foi à Casa de Detenção e se propôs a ser advogada assistente de Bezerra, que tinha 64 e aceitou prontamente.

Em 2001, em discurso de agradecimento por dois títulos de cidadã recebidos em Natal, Mércia declarou: “Peço, neste momento, perdão ao meu filho Aradin, por não lhe haver dedicado horas preciosas quando mais necessitava, ocupadas com o patrocínio da defesa dos perseguidos políticos. Não desconheço que a minha ausência deixou marcas no seu mundo afetivo, que nunca pude compensar, somente restando pedir a sua compreensão para a excepcionalidade daquele tempo e do desafio enfrentado”. Ela foi presa 12 vezes, entre junho de 1964 e outubro de 1973. Sofreu agressões e ameaças de morte ao praticar a juridicidade e tentar impedir a impunidade por delitos estatais cometidos em prisões, à luz do dia ou na clandestinidade, como “fuzilamento simulado, pau-de-arara, telefone [tapas simultâneos nos dois ouvidos];, queimaduras, sede, fome, suspensão pelos pulsos e cabelos, pontapés nos escrotos, unhas arrancadas”.

Assim, Lady Tempestade resulta um marco de visibilidade ao projeto de vida de uma personalidade nordestina decisiva na história contemporânea do país. E o faz com verticalidade estética e poder de comunicação. Um equilíbrio delicado, difícil de ser alcançado quando ponderadas questões de gênero e iluminados porões do passado recente – práticas desgraçadamente escancaradas na doutrina majoritariamente olho por olho, dente por dente das polícias ou brigadas militares estaduais e municipais, para não dizer das milícias e facções.

Diego Correa Andrea Beltrão no solo dirigido por Yara de Novaes e escrito por Sílvia Gomez a partir dos diários da advogada pernambucana Mércia de Albuquerque Ferreira, notabilizada pela defesa de pessoas que lutaram contra a repressão militar

A negociação das autonomias de voo, sustentadas em potências máximas, é um dos trunfos de Yara na concepção do espetáculo. Percepção já verificada em criações recentes junto ao seu Grupo 3 de Teatro ou quando convidada a participar de outras peças. Em Lady tempestade, a composição de cena permite analogia com a diagramação do texto sobre a página de jornal ou de livro, dançando por entre imagens. Seja no piso da sala multiuso do Poeira, seja no palco do Teatro Sesc Anchieta, em São Paulo, Yara mostra-se meticulosa nas grafias expositivas da cena, na estratégia de sobrepor e escalonar a presença performativa da atriz nos fluxos da dramaturgia e das paisagens sensoriais e fantasmais no desenho de som de Arthur Ferreira.

Nos dois edifícios teatrais mencionados, a partitura cênica foi executada à risca, com gradações de volume espacial que não alteraram o impacto da experiência frente a peça-denúncia que o faz como deriva da crença em afetar por meio, sobretudo, de uma sistema de linguagem.

Povoada pelas aliadas nos processos de pesquisa, criação e produção, Andrea expressa a dimensão trágica das histórias da advogada de Pernambuco com variações de alma comediante, na acepção substancial do termo. O público que assistiu ao primeiro solo dela, Antígona (2016), com direção de Amir Haddad, encontra aqui uma atualização da mitologia grega em que uma mulher empreende corpo a corpo com atos institucionais que não ficam devendo, guardadas as proporções, aos decretos de Rei Creonte que Sófocles imaginou pouco mais de 2.500 anos atrás. Desumanidades parelhas que a plateia do Teatro de Santa Isabel pode divisar nas três sessões programadas nesta primeira semana do 24º Festival Recife do Teatro Nacional. Ali, como se leu, no território por excelência de atuação de Mércia Ferreira Albuquerque, com direito à pertinência do tema adotado pelo evento: “Vozes Femininas – Histórias que Ressoam”.

.:. Leia reportagem por ocasião da temporada de Lady Tempestade no Teatro Anchieta do Sesc Consolação, em São Paulo, entre 30 de maio e 6 de julho de 2025: Diários sobre coragem e luta, de 12 de maio de 2025.

Serviço

Lady Tempestade

Quinta (20), sexta (21) e sábado (22), sempre 20h, dentro do 24º Festival Recife do Teatro Nacional 2025.

70 minutos | 12 anos | 700 lugares | Sessões com recursos de libras quinta e sábado; e de audiodescrição sexta.

Grátis. Distribuição de ingressos na bilheteria uma hora antes da sessão, mediante entrega de um quilo de alimento não perecível.

Teatro de Santa Isabel (Praça da República, s/n, Santo Antônio, tel. 81 3355-3323). Mais informações sobre o festival: https://linktr.ee/secultrec.

Diego Correa A atuação de Andrea é povoada pelas aliadas nos processos de pesquisa, criação e produção, expressando a dimensão trágica das histórias relatadas com variações de alma comediante, na acepção substancial do termo

Ficha técnica

Atuação: Andrea Beltrão

Direção: Yara de Novaes

Dramaturgia: Sílvia Gomez

Cenografia: Dina Salem Levy

Desenho de luz: Sarah Salgado e Ricardo Vívian

Figurinos: Marie Salles

Criação e operação de trilha sonora: Chico Beltrão

Desenho de som: Arthur Ferreira

Assistente de direção: Murillo Basso

Assistente de cenografia: Alice Cruz

Identidade visual: Fábio Arruda e Rodrigo Bleque | Cubículos

Fotografia: Nana Moraes

Assessoria de Comunicação: Vanessa Cardoso | Factoria Comunicação

Assessoria de Imprensa: Daniella Cavalcanti

Produção: Quintal Produções

Direção de produção: Verônica Prates

Coordenação de projetos: Valencia Losada

Produção executiva: Camila Camuso e Bruno Mros

Realização: Boa Vida e Quintal Produções

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Doutor em artes pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado pelo mesmo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas.

Relacionados