Crítica
Mulheres acostumadas a singrar a pista e os espaços subterrâneos e aéreos do Teatro Oficina, bem como ruínas do terreiro vizinho e ruas do entorno, derrubam a geopolítica dos quadradinhos de um aplicativo universal de videochamadas, suspendem o tempo isolacionista, dão uma banana para a demagógica ideologia de gênero e como que “teletransportam” amantes da presença cênica para a vida pré-pandemia no experimento em formato digital Das paredes, combinação de live e conteúdos gravados.
Se a bigorna é o símbolo adotado pelo Oficina em 62 anos de história, o tijolo serve de alegoria para o texto da atriz e diretora Letícia Coura. Ela, que também é cantora e compositora, bebe da filosofia e do absurdo para criticar o emparedamento da liberdade e da potência de desenvolvimento da mulher em sociedades que naturalizam a desigualdade de gênero. Em seus acenos aos feminismos, porém, a criação exercita a velha e boa dialética ao expor, também, a cooptação pelo discurso machista. A consciência sobre isso é que são elas.
Aliás, o muro do patriarcado é tão arcaico que chega a ser aludido à Muralha da China, construída entre os séculos 11 e 13.
Há um espírito libertário nessa empreitada que pode ser atribuído, em parte, ao vínculo das atuantes com o diretor José Celso Martinez Corrêa. A começar por Letícia, que desde 2001 trilha com autonomia e coerência nas criações do Oficina, plataforma onde jamais deixou de realimentar seu talento para a performatividade segundo a maravilhosa contribuição de todas as promiscuidades em arte
Corajosas, enfurecidas e bem-humoradas, cinco artistas alicerçam música e atuação para fazer de uma parede a personagem central em que estão entranhadas quatro “tijolAs”, cantoras/atrizes/instrumentistas determinadas a contar e a refletir sobre si e as demais pessoas do mesmo gênero acerca das circunstâncias do que as aprisionam nos diferentes campos da vida. .
Soa prosaico, mas é sofisticado. Uma vez circunscrito esse lugar concreto, essas figuras vão desconstruí-lo com arsenal poético de textos, canções e imagens que põem em relevo o sentido crítico dos tempos em mutação.
Nos marcos tecnológicos que temos para hoje, a obra parte dessa situação inusitada para alcançar ressonâncias operísticas, sincopadas, sinfônicas, sambistas, choronas e que tais.
Chiris Gomes, Nana Carneiro da Cunha, Tetê Purezempla, Maria Bitarello e Letícia derrubam qualquer suspeição de implausibilidade de se transcender a virtualidade. Dignificam vozes, corpos e pensamentos musicais e desejantes que reafirmam a condição de artistas maiúsculas. O quinteto expressa visões questionadoras sem fugir do contraditório em termos racionais e absurdos. Acredita incondicionalmente na sensibilidade das pessoas a que se dirige.

Há um espírito libertário nessa empreitada que pode ser atribuído, em parte, ao vínculo das atuantes com o diretor José Celso Martinez Corrêa. A começar por Letícia, que desde 2001 trilha com autonomia e coerência nas criações do Oficina, plataforma onde jamais deixou de realimentar seu talento para a performatividade segundo a maravilhosa contribuição de todas as promiscuidades em arte.
A dimensão ética é iluminada com franqueza. O tom varia do confessional à galhofa, passando pela psicodelia, pela revista e pelo cabaré à Brecht. As mudanças de clima são protagonizadas por solos, duetos e coros em meio às intervenções de uma mulher ou outra que expõem suas inquietudes.
“De quem é a vida de uma voz?”, indaga uma das TijolAs, prenunciando formas de encarar o vazio e a finitude. “Então, era assim que eu era?”, diz outra delas, indicando a mudança de chave. Não se trata de prejulgar, mas exercer a impermanência do budismo, algo na linha do dilatar e do agir. Tanto que procedimentos desse sistema filosófico-religioso aparece na abertura e no desfecho do experimento. “Você já se olhou no espelho para saber se você é mesmo um tijolo?”, ouve-se do outro lado da tela.
Deu um modo geral, Das paredes toca em diferentes expressões para colocar a linguagem na berlinda. Os vídeos que pontuam a narrativa lembram os videoclipes de outrora, hipercoloridos, independente dos arranjos e das letras das canções, sempre sugestivos. No plano da palavra, é lembrado que, em francês, o gênero de tijolo é feminino (brique) e, nas línguas do tronco tupi, não se aplicam os verbos “ser” e “estar”. Tudo se transforma.
Nesse balaio cênico-sonoro, o espírito convivial manifesta-se por outras ondas que essa equipe formada exclusivamente por mulheres consegue erguer e, no mínimo, encontrar equivalências com aquele desejo de desaguar a pesquisa em espetáculo ao vivo, como sonhado antes do mundo virar do avesso.
Serviço:
Quando: últimas exibições segunda (29) e terça (30), às 20h
Onde: plataforma Sympla
Quanto: grátis
Mais informações no Instagram e no Facebook do espetáculo

Equipe de criação:
Música e atuação: Chiris Gomes, Letícia Coura, Nana Carneiro da Cunha, Tetê Purezempla e Maria Bitarello
Produção musical: Tetê Purezempla
Direção de arte: Cris Cortilio
Figurino e adereços: Gabriela Campos
Iluminação: Lúcia Galvão
Vídeo arte e design gráfico: Cecília Lucchesi
Produção gráfica: Brenda Amaral e Cecília Lucchesi
Comunicação: Brenda Amaral e Maria Bitarello
Produção: Bia Fonseca
Texto e direção: Letícia Coura
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Doutor em artes pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado pelo mesmo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas.