22.11.2010 | por Valmir Santos
Osman da Costa Lins contava apenas 16 dias quando sua mãe, Maria da Paz, casada com o alfaiate Teófanes, morreu em decorrência de complicações no parto. O autor nunca viu uma fotografia dela. Atravessou os 54 anos de vida, até 1978, construindo com a imaginação um rosto ausente. Metáfora que acreditou traduzir à perfeição o ofício de escritor. Seu texto mais famoso é o da peça Lisbela e o prisioneiro, de 1961, popularizada pelas versões de Guel Arraes para o cinema e a TV. Ele Nasceu em Vitória de Santo Antão, na zona da mata pernambucana, criado, sobretudo, pela avó paterna Joana Carolina, a quem esculpe um memorial na mais longa e considerada mais bela das narrativas de Nove, novena, obra experimental que o projetou internacionalmente em 1966. A linguagem ousada de Retábulo de santa Joana Carolina, o eu multifacetado, levou o editor francês a rebatizar o livro com esse título, e não como no original. Retábulos são figuras pintadas ou talhadas geralmente em madeira ou mármore para ornamentar altares e podem representar uma história em série. Os 12 mistérios de Joana Carolina (como os passos na Paixão de Cristo ou os signos zodiacais, observa o poeta José Paulo Paes), seus sofrimentos de mulher simples do povo, “a vida de provações, de pertinácia e de inquebrantável firmeza de ânimo de uma modesta professora de roça”, serão encenados pelo Piollin Grupo de Teatro, da Paraíba. Leia mais
Quando a Cooperativa Paulista de Teatro convidou-me a correalizar entrevista com José Renato, Eduardo Tolentino e José Fernando Azevedo, em março de 2010, destinada à revista Camarim (edição 45 que sai agora em setembro), reagi como possivelmente a maioria dos leitores aqui: estranhamento pelas distâncias geracionais, estéticas e ideológicas entre esses diretores. Pois justamente as diferenças levaram à percepção de que a trajetória de seus espetáculos e respectivos grupos (Arena, Tapa, Narradores) compõe um quadro histórico das memórias cênicas da cidade desde os anos 1950. À luz da primeira década do século XXI, isso diz muito sobre os modos de produzir, pensar e criar no Brasil.
(28 de setembro de 2010)
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27.9.2010 | por Valmir Santos
Quando a Cooperativa Paulista de Teatro convidou-me para corealizar a entrevista com José Renato, Eduardo Tolentino de Araújo e José Fernando Azevedo, em março deste ano, para a revista Camarim, reagi como possivelmente a maioria dos leitores aqui: estranhamento por causa das distâncias geracionais, estéticas e ideológicas desses criadores. Pois justamente as diferenças refletiram a percepção de que a trajetória de seus espetáculos e respectivos grupos (Arena, Tapa, Narradores) compõe um quadro histórico da cidade e isso, à luz da primeira década do século XXI, isso diz muito sobre os modos de produzir, pensar e fazer teatro no Brasil de agora.
27.9.2010 | por Valmir Santos
O diretor alemão já adaptou pelo menos cinco obras do russo Fiódor Dostoiévski para o teatro. Ele fez chegar duas delas também ao cinema: Os demônios e O idiota, esta de 2006. Foi para exibi-las que estava no Brasil em dezembro de 2009, quando conversou com a revista Camarim, da Cooperativa Paulista de Teatro. Colaborei nesta entrevista, ao lado de Alessandra Perrechil e Maurício HIroshi. Castorf prospecta a linguagem como discurso político, o desejo pela recepção instável do espectador que o acompanha, o trânsito pelo audiovisual e a sua perspectiva histórica do lendário espaço no qual é diretor artístico há 18 anos, o Voksbühne, ou Teatro do Povo, em cena desde 1914 na Berlim que era uma antes e virou outra depois da queda do Muro.
(27 de setembro de 2010)
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4.9.2010 | por Valmir Santos
> Foto: Adriano Franco” alt=”milagrecapafinal” height=”153″ width=”250″ src=”https://teatrojornal.com.br/acervo/wp-content/themes/twentyten/images/stories/milagrecapafinal.jpg” />contracenaCrítica de Milagre brasilerio e Quebra-quilos
Nascido há quatro anos em João Pessoa, o Coletivo de Teatro Alfenim criou dois espetáculos que aprofundam as pesquisas do diretor, dramaturgo e cofundador Márcio Marciano, ex-Companhia do Latão, da qual as influências conceituais são patentes. O encontro com artistas locais potencializa uma trajetória vertical e contínua em território paraibano no qual radicar a cultura de teatro é desafio permanente: extrair beleza e consciência crítica do precário.
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4.9.2010 | por Valmir Santos
> Foto: Adriano Franco” width=”250″ height=”153″ style=”float: left; margin-top: 0px; margin-right: 10px; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; padding: 0px;” />
contracena Crítica de Milagre brasileiro e Quebra-quilos
Nascido há quatro anos em João Pessoa, o Coletivo de Teatro Alfenim criou dois espetáculos que aprofundam as pesquisas do diretor, dramaturgo e cofundador Márcio Marciano, ex-Companhia do Latão, da qual as influências conceituais são patentes. O encontro com artistas locais potencializa uma trajetória vertical e contínua em território paraibano no qual radicar a cultura de teatro é desafio permanente: extrair beleza e consciência crítica do precário.
3.9.2010 | por Valmir Santos

Valmir Santos
Os dois primeiros espetáculos do Coletivo de Teatro Alfenim (João Pessoa, 2006) conformam o pensamento artístico e crítico de seu idealizador, o diretor e dramaturgo Márcio Marciano. As encenações e os textos reavivam memórias embotadas da Paraíba e do Brasil e trazem boas perspectivas à capital rarefeita em pesquisa vertical e continuada. Terra onde Ariano Suassuna (1927) e Paulo Pontes (1940-76) semearam dramaturgias de referência. Sede de grupos como o Bigorna (1968) e o Piollin (1977), tão maturados como bissextos em suas criações.
Marciano é cofundador da Companhia do Latão (1996), na qual escrevia e dirigia em parceria com Sérgio de Carvalho. A convivência por dez anos, naturalmente, impregna os procedimentos estéticos e conceituais em Quebra-quilos, de 2008, e Milagre brasileiro, de 2010.
Em ambos os espetáculos, ficam patentes os recursos épicos e dialéticos, à maneira brechtiana, e o indisfarçável desejo de transcender as próprias amarras que o tempo denota.
Quebra-quilos recorta um episódio da história da Paraíba, transpõe com didatismo para a cena os fatos ocorridos na cidade de Campina Grande, em 1874, e o faz assumindo a fábula. Camponesas expulsas violentamente para o sertão, a viúva Joaquina e sua filha Floriana têm suas vidas entrelaçadas ao fogo cruzado do levante popular de feirantes num vilarejo onde as autoridades alteram o sistema métrico decimal – o quilo, o metro, o litro – para faturar com novos impostos.
Num exercício de aproximação: se em Auto dos bons tratos (2002), do Latão, Marciano e seus pares paulistas imprimiam humor e ironia à narrativa sobre o controle da mão de obra indígena no Brasil Colônia, em Quebra-quilos a fábula transcorre enquanto drama tão estruturante quanto. As figuras centrais trilham o coração do conflito até o desenlace trágico.
A dramaturgia em colaboração com os atores escancara como a valoração do homem é medida pela mercadoria, isso numa linha de tempo que apanha o país no crepúsculo do Império, a 25 anos da Proclamação da República (1899), para não dizer desde as capitanias. “A medida do homem é a coisa”, brada o texto, ecoando Pitágoras na medida de todas as coisas ou Brecht em Um homem é um homem.
E a fita métrica do espetáculo é dada pela organização de seus quadros. Pelo ritmo cadenciado das falas e das ações dos atores. O entra e sai ao pisar o quadrado cenográfico desenhado pelas gavetas de legumes, cereais, frutas e rapadura, aquilo que a terra dá, o homem planta e, não raro, ele mesmo tira a troco de sangue derramado.
O balé dos pés indo e vindo na demarcação territorial da cena, um estrado de madeira também ele a centímetros do chão, corrobora o efeito de distanciamento. O ator narra, dá voz e corpo à figura e depois se dirige a uma das cadeiras à margem, mas sempre compondo o plano de visão do espectador. Os espaços do visto e do narrado resultam orgânicos.
É esse intérprete ativo, vigilante na deixa e na presença “neutra” em cena, quem sustenta a engrenagem. Visto pela primeira vez em maio de 2009, na Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, e agora, em agosto, em temporada na Funarte, sempre em São Paulo, Quebra-quilos é tributário da potência dos atores em não representar, propriamente dito, e ainda assim convencer o público a fiar-se na história. A maneira como ela é contada, esquiva à identificação, não impede a emoção infiltrada no retrato contundente da violência contra a população explorada, firmando a convicção de que a riqueza propagada é para poucos.
O primeiro espetáculo do Alfenim – nome extraído de um doce típico à base de cana de açúcar, daí a determinação do coletivo em “quanto mais dura a rapadura, mais firme e delicada a consistência” – embute essa contradição de origem, a delicadeza no seio da brutalidade. Os aportes históricos e políticos dão vazão a um tratamento poético, um esforço de Marciano em traduzir em imagem (corporal, espacial) aquilo que a palavra confere em narração, diálogo e paisagens sugeridas. O traço artesanal de um tecido vermelho, a moldura cenográfica colorida no piso, a convicção e o carisma do elenco – substituições da versão anterior para a atual não subtraem energia –, tudo leva a uma teatralidade engajada a dizer por si e não sucumbir ao discurso. Um teatro do meio e não da mensagem.
Desde a abertura de Quebra-quilos, quando um narrador afirma que, doravante, vai agir feito criança, “inventar para entender o desengonço do mundo”, entreouvimos a voz de Marciano no picadeiro do circo que se ergue com palhaços degolados e a lona esburacada, conforme as asas da metáfora. Imaginamos, pois, um “desbravador” paulista em João Pessoa a arrebanhar artistas para a causa das novas práticas e pensamentos teatrais a partir do lugar em que pisam. Ou, em chave oposta, os “nativos” ampliando os horizontes de quem chega de longe e pode colher muito desse chão.
“CRÂNIO DA CONSCIÊNCIA”
No segundo trabalho, Milagre brasileiro, a tal lona esburacada encobre o ensolarado território nacional. Um projeto sobre a obscuridade. Para tocar a ferida exposta há mais de quatro décadas, “furo no crânio da consciência”: homens e mulheres desaparecidos durante a ditadura militar (1964-85). Seria pouco correlacionar os dois espetáculos pelas truculências colonial e contemporânea. O que salta em primeiro plano são as ambições de linguagem e de forma para jogar luz em porão no qual a sociedade brasileira – e, por extensão, a maioria dos artistas – não tem coragem de iluminar suas ossadas.
Não dá para invocar esses cadáveres sem incisão. Em se tratando da trajetória de Marciano, a abordagem de assunto tão explosivo não ofusca o ímpeto em experimentar, em explorar outras “línguas” para dizer a que veio. Inclusive a francesa, literalmente inserida como blague mordaz aos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade um tanto evaporados nesta era de extremos. A estratégia indicada é problematizar o signo da representação, as nuanças do naturalismo e do realismo já insinuadas em Quebra-quilos, para comunicar o estado de coisas.
“Vão embora!”, vocifera Zezita Matos, de largada, na voz e no olhar petrificadores de sua Antígona, coerente com a recepção antipassiva ao espectador que atravessou um corredor de fotografias de rostos ampliados e ouviu vozes nomearem os desaparecidos, os fantasmas que se farão presentes. O público adentra o espaço para ocupar as arquibancadas, uma de frente para a outra. É um espetáculo incômodo.
Em princípio, soa lugar-comum recorrer a Antígona para lembrar corpos insepultos. Mas logo se verá que o mito da heroína grega que enfrenta o poder autocrático pelo direito de enterrar o irmão serve como uma das antecâmaras. A dramaturgia encontra atalho em Nelson Rodrigues e uma de suas peças míticas e autodenominadas desagradáveis, Álbum de família, no rol das “obras pestilentas, fétidas, capazes, por si sós, de produzir o tifo e a malária na plateia”.
A interseção Sófocles e Nelson gera estranhamento que adensa aos poucos. A tradição, a família e a propriedade atemporais cristalizam-se no clã do coronel nordestino ou no tio de Antígona, o rei Creonte. Licença para pensar que Tebas não está tão longe de Taperoá, embaralhando símbolos, sonoridades, valentias e adestramentos em habitantes das cidades de ontem e de hoje.
Entusiasma notar em Marciano a liberdade de encenador que revela outras camadas nas palavras que ele mesmo escreveu. Milagre brasileiro o expõe em bem-vinda orgia criativa, arriscando-se abrir janelas como nos quadros familiares aparvalhados, de registro tragicômico, com parênteses para o teatro de animação, fantoches e máscaras de caveiras que mimetizam a derrisão.
Um contraponto negativo, porém, vem com a ênfase maniqueísta nas irmãs gêmeas da família subserviente ao pai coronel, como se o instinto de maldade fosse intrínseco às futuras gerações, aos algozes que virão. Apesar de jogar com o grotesco, a desesperança movediça é reforçada no instante em que as crianças crucificam a sua boneca tomando cuidado em ocultar a sessão de tortura dos olhos adultos.
O devaneio, de um lado, e o suporte factual da história do país, de outro, conduzem a um terceiro ponto: o das contradições. Colocadas em perspectiva, elas instauram a crítica. Um exemplo disso é a passagem do tricampeonato mundial de futebol pela seleção, em 1970, apenas alguns meses após o regime militar recrudescer com o decreto do Ato Institucional número 5.

Preciso nos silêncios, o espetáculo é permeado por uma espécie de cabaré dos mortos-vivos com o acompanhamento de dois músicos na percussão e ao piano. E um terceiro contraste vem da própria condição da recobrada democracia brasileira 25 anos após o regime de exceção. Ela vê a tortura de esguelha, ao contrário de Chile, Argentina e Uruguai. Tenta escapar à outra face da tortura disseminada no cotidiano de camburões, cadeias, morros, favelas, campos, shoppings e condomínios.
Para fundamentar em cena a liturgia de ideias que propõe, o Coletivo Alfenim possui artistas experientes e recém-iniciados no ofício, uma mistura sugestiva para instaurar a provocação. Mas há desníveis acentuados no elenco em Milagre brasileiro. Não vemos a apropriação da fala e das entrelinhas como em Quebra-quilos, do qual uma boa parte migrou.
A presença das atrizes e atores vem carregada do rigor da marcação, uma sombra que não deixa transparecer humanidade no olhar e na expressão do rosto do artista – mesmo quando sob o julgo de um carrasco em cena. Essa dimensão espreitada na primeira montagem tinha tudo para aflorar aqui, em formato teoricamente mais aberto, com sua dança pelos gêneros e jogos de representar acionando o espírito lúdico. Ao contrário, o que prevalece é o franzir da preocupação em dar conta da brincadeira inventada para tratar de tema sério.
As ousadas concepções do encenador e do dramaturgo traem a si mesmas quando não se permitem o “descontrole”; não confia a mesma pulsão autoral aos homens e mulheres que o traduzem em carne e osso. Nesses quatro anos de vivência em João Pessoa, Márcio Marciano cativou artistas locais para um projeto consistente. Quebra-quilos dá notícias do encantamento dos integrantes do grupo envolvidos. Milagre brasileiro expõe o diretor e o dramaturgo avançados em suas rubricas e, no entanto, isolados na dianteira, na cabeça de Marciano a negociar com a realidade gritante, os contrastes de produção e de criação aos que perseveram fazer teatro na Paraíba, no Nordeste. Dessa precariedade, o Coletivo de Teatro Alfenim já lapidou preciosidades. Seu futuro está inscrito na generosidade de ambas as partes: o diretor paulista, pecha que lhe rende louros na proporção que lhe custa um bocado, e os artistas de João Pessoa em suas infinitas territorialidades e sotaques universais.
(1 de setembro de 2010)
trecho do programa de Quebra-quilos:
NA LAPADA DA VIDA, NOS FAZEMOS ALFENINS
Márcio Marciano
O Alfenim está nascendo da labuta de trabalhadores artistas empenhados na fatura e no debate de um teatro que se processa como forma estética interessada em se inscrever no âmbito da ação política, porque não existe arte que não seja política. Teatro do prazer que vem da crítica, da invenção formal que os novos assuntos exigem, da dialética entre o ontem e o agora, o amanhã e a tradição.
Este primeiro espetáculo, Quebra-quilos, reflete o compromisso de extrair beleza da matéria crua produzida pelo desmando patrimonialista, secular, vil, que tem marcado a sociabilidade brasileira e nordestina. Beleza extraída da matéria múltipla, ao mesmo tempo grandiosa e amesquinhada, que compõe o perfil bifronte de uma gente que só se reconhece na desidentidade.
Nossa arma é artesania material e simbólica, funda contra gigantes de um olho só. Somos Alfenins: quanto mais dura a rapadura, mais firme e delicada a consistência, mais complexa a doçura.
fichas técnicas/artísticas:
QUEBRA-QUILOS
Com: Coletivo de Teatro Alfenim
Texto, direção e iluminação: Márcio Marciano
Elenco: Adriano Cabral, Ana Marinho, Daniel Araújo, Daniel Porpino, Fernanda Ferreira, Verônica Souza e Zezita Matos.
Direção musical: Marco França
Cenário: Márcio Marciano
Figurinos: Maurício Germano
Programação visual: Daniel Porpino e Leonardo Rolim
Consultoria de encenação: Fernando Yamamoto
Produção: Humberto Dias
MILAGRE BRASILEIRO
Dramaturgia e encenação: Márcio Marciano
Elenco: Adriano Cabral, Ana Marinho, Daniel Araújo, Daniel Porpino, Fernanda Ferreira, Paula Coelho, Verônica Sousa e Zezita Matos
Músicos: Diego Souza e Wilame AC
Iluminação: Ronaldo Costa
Bonecos/Instalação da família: Vilmara Georgina
Bonecos/Manipulação direta:
Artur Leonardo, Amanda Viana, José Valéria e Aline Barreto
Costureiras: Vilmara Georgina e Maria Georgina
Arte gráfica: Shyko
Fotografia: Adriano Franco
Assessoria: Calina Bispo e Cristhine Lucena
Oficina “Treinamento e criação no momento cênico”: Norberto Presta e Andréa Nascimento
Consultoria de manipulação de bonecos: Grupo Boca de Cena
Consultoria historiográfica: Professora Regina Beah
Produção executiva: Humberto Dias
Composições: Diego Souza, Márcio Marciano, Paula Coelha e Wilame AC
Direção musical: Wilame AC
Direção de arte: Maria Botelho
NALAPADA DAVIDA, NOS FAZEMOS ALFENINSMárcio MarcianoO Âlfenim está nascendo da labuta de trabalhadores artistas empenhados na fatura e no debate de um teatro que se processa como forma estética interessada em se inscrever no âmbito da ação política, porque não existe arte que não seja política. Teatro do prazer que vem da crítica, da invenção formal que os novos assuntos exigem, da dialética entre o ontem e o agora, o amanhã e a tradição.Este primeiro espetáculo, Quebra-Quilos, reflete o compromisso de extrair beleza da matéria crua produzida pelo desmando patrimonialista, secular, vil, que tem marcado a sociabilidade brasileira e nordestina. Beleza extraída da matéria múltipla, ao mesmo tempo grandiosa e amesquinhada, que compõe o perfil bifronte de uma gente que só se reconhece na desidentidade.Nossa arma é artesania material e simbólica, funda contra gigantes de um olho só, Somos Alfenins: quanto mais dura a rapadura, mais firme e delicada a consistência, mais complexa a doçura.

contracena Crítica de Milagre brasileiro e Quebra-quilos
Nascido há quatro anos em João Pessoa, o Coletivo de Teatro Alfenim criou dois espetáculos que aprofundam as pesquisas do diretor, dramaturgo e cofundador Márcio Marciano, ex-Companhia do Latão, da qual as influências conceituais são patentes. O encontro com artistas locais potencializa uma trajetória vertical e contínua em território paraibano no qual radicar a cultura de teatro é desafio permanente: extrair beleza e consciência crítica do precário.
19.5.2010 | por Valmir Santos
Valmir Santos
O paradoxo em Policarpo Quaresma é a sua competência. Antunes Filho inscreve seu nome na história do teatro brasileiro, entre outras razões, porque exímio compositor de cenas corais na mesma medida que consegue realçar a presença e o talento de uma atriz ou de um ator. Esses pilares estetas aparecem firmes no novo espetáculo do Grupo Macunaíma, extensão do Centro de Pesquisa Teatral. Mas deixam no ar uma segurança incômoda se colocada em perspectiva com voos mais arriscados nas proposições formais dos últimos trabalhos.
Desde que atravessou a trilogia das tragédias gregas em meados da década, visitando Sófocles e Eurípides, Antunes voltou-se à dramaturgia contemporânea, ora de próprio punho ora vertendo romances brasileiros para a cena. Montou Paulo Santoro, do Círculo de Dramaturgia do CPT. Montou dois Nelson Rodrigues. Adaptou um acalentado romance de Ariano Suassuna. E concebeu aquela que pode ser considerada a sua criação mais ousada nos últimos anos, Foi Carmen, versões de 2005 e 2008, na qual a escrita cênica e as atuações despontam com vocabulário alentador ao abrir uma terceira via entre a biografia de Carmen Miranda e a dança butô de Kazuo Ohno. Ao evocar os espíritos celestial e terreno do dançarino centenário, o diretor e seus melhores atores alcançam outras dimensões, alteridades à qual o público também é desafiado.
O movimento de pensar e falar ao Brasil de hoje por meio da interpretação de seu passado não muito distante encontra ecos ainda no cancioneiro de Lamartine Babo, de 2009, com um Antunes sinceramente saudoso na autoria do roteiro para o musical dramático dirigido por Emerson Danesi, ator e seu assistente mais contínuo. Esse percurso de equilíbrios e desequilíbrios, após a fase das tragédias gregas, culmina em transversal tragicômica, a quintessência do xenofobismo na literatura brasileira: o Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto.
Levar Quaresma à cena em ano de Copa do Mundo e eleições presidenciais é cutucar seu tempo: as contradições dos oito anos do lulismo, a lama da corrupção em todos os quadrantes partidários, o crescimento e a estabilidade econômicos no período, o Brasil como bola da vez para o chamado Primeiro Mundo e os Brasis das condições de trabalho análogas à da escravidão, para resumir a ópera dos três vinténs.
Antunes tem esse faro. Em 1993, com Vereda da salvação, de Jorge Andrade, ele expunha em uma só pá os conflitos agrários e os espasmos do fim da Era Collor – antológica aquela última cena em que seguidores e seu líder messiânico, encurralados na mata, pulam com as mãos estendidas aos céus quando são metralhados pelos proprietários e soldados ao som de Pensa em mim.
Para tocar o que se supõe o transe coletivo dos dias de hoje, pêndulo entre idealismo e realidade, a encenação de Antunes não renova a energia estética de fontes conhecidas e das quais já o sabemos capaz. Mostra-se refém da excelência na composição e deslocamento coral dominantes no palco do Teatro Sesc Anchieta. Como protagonista, a caracterização no enunciado, nos gestos e miradas do Quaresma de Lee Thalor remete de imediato ao Quaderna d’A pedra do reino. Quaderna, Quaresma. De fato, há pouca variação no registro desse ator que revelou potencialidades outras e ímpares como quando viveu o Tuninho na também tragédia rodriguiana à carioca A falecida vapt-vupt, no ano passado.
O curto espaço de tempo entre as teatralizações de Suassuna e a de Lima Barreto – quase quatro anos – contribui para a sensação de procedimentos saturados, inclusive o resgate relâmpago do fonemol, o estranhamento da língua inventada e aplicada com ênfase em Nova velha estória (1992). Ou a remissão à polícia nazista no trato dos prisioneiros de guerra, espectro da intolerância em ascensão anotado em Drácula e outros vampiros (1996).
Em alguma medida, todo artista é um artista de si mesmo; gera uma obra com identidade a ser lida na linha de tempo. O que surpreende em Policarpo Quaresma é a autocitação tão concentrada. O realinhamento, percebe-se, vem pelo menos desde Macunaíma (1978), uma adaptação do romance de Mário de Andrade, espetáculo demarcador do caráter antuniano experimental e inovador. Mais de três décadas depois, vemos, ao contrário, um artista seguro ao desfilar coros como vinhetas de histórias em quadrinhos para as ações do major caricato em sua pregação nacionalista pela capital federal e pelo interior do país no final do século XIX.
Ao exacerbar o que já é relevo no romance o espetáculo carrega a mão nas imagens: os hinos militares, as bandeiras e bandeirinhas, a movimentação coreografada que dissolve seu vigor pela repetição. Quando as saúvas atacam no sítio, não é difícil prever que a batida coletiva de pés no tablado logo evolui para a dança de sapateado. A ação é redundada em seguida no solo do ator no papel-título. Eis uma solução para sapateado mais impactante que a anterior, intermezzo lírico e expositor a contradizer o modismo estrangeiro no corpo de um visionário patriota.
O mergulho no grotesco deixa poucas nuanças para acompanhar mais claramente a curva do desencanto de Quaresma. A desfiguração é aliviada ao final, quando ele toma consciência do enredo em que está metido e a ilusão se dissipa em sua comovente carta destinada à irmã Adelaide, um solilóquio em que o paradoxo do comediante Lee Thalor vem à luz sob trevas, um das passagens mais tristes e belas do espetáculo. Há outras, como não poderia deixar de ser em assinatura de Antunes Filho. Vide a cinematográfica sequência da morte de Ismênia, por Natalie Pascoal, a vizinha e filha de general abandonada às vésperas de casamento após anos de noivado, desmilinguida em seu vestido de noiva, lassidão e loucura como nos sentimentos mais dolorosos de uma ária.
O espetáculo consegue mapear a mitologia “policarpesca” no sanatório geral, na brincadeira mascarada do “tangolomango”, na obsessão pelo tupi-guarani. Acresce ao pendor folclórico a musicalidade resgatada da opereta, prima pobre pouco visitada no teatro. Chega a assumir a licença poética com um papagaio à la Zé Carioca, lembrando o processo de aculturação. Engenhocas como os canhões e o pulverizador de fumaça contra a praga de ontem e a dengue de hoje passeiam pelo espaço cenográfico vazio. Objetos, imagens e personagens são como que abduzidos de quando em quando, concepção de Rosangela Ribeiro que também emenda os figurinos civis e militares com as devidas rupturas bucólicas e rigores bélicos, em que pese a fixação no símbolo da bandeira nacional.
Posto diante do espelho, neste 2010, o espetáculo parece refletir um Antunes Filho como Policarpo de si, fiel a um sistema de ideias e práticas do teatro que o liberta e o condiciona. Descompasso que a geração de espectadores em seu encalço desde o início dos anos 1990 ainda não havíamos presenciado de modo tão flagrante.
(20 de maio de 2010)
Temporada em São Paulo
27 de março a 6 de junho
Sexta e sábado, às 21h, e domingo, às 19h
Teatro Sesc Anchieta, Rua Doutor Vila Nova, 245, telefone 11 3234-3000
R$ 20
18.5.2010 | por Valmir Santos
(texto publicado originalmente em setembro de 2009, durante o 24º Festivale, Festival de Teatro do Vale do Paraíba, em São José dos Campos)
Assim como o cinema, o teatro pode usar o documentário para aproximar-se dos fatos da realidade premente ou pretérita. O arista ou o grupo garimpa esse material para tratá-lo como dramaturgia, como cena. Espera-se do processo de edição uma perspectiva não unidimensional, porque empobrecedora. Um exemplo: em Eduardo Coutinho, às voltas com um pendor cada vez mais teatral em seus filmes, as imagens e os depoimentos são polissêmicos e fazem a vida transbordar de qualquer jeito, seja o roteiro estruturado de forma aberta ou não. A instância do humano está preservada. O espetáculo que a Companhia Mugunzá traz a São José é disparador dessas sensações em torno do fazer artístico.
Por que a criança cozinha na polenta promove um feliz encontro da autora romena Aglaja Veteranyi, uma estudiosa da linguagem escrita, com o diretor Nelson Baskerville, um entusiasta da significação simbólica para além das primeiras camadas. Ainda que jamais tenham presenciado o olhar um do outro – ela pôs fim à vida em 2002 -, impressiona o diálogo estabelecido entre a encenação e o livro de mesmo nome adaptado, um romance autobiográfico, mas não só. E autobiográfica, mas não só, é a montagem que traz à baila uma história de dor e abandono, ainda que uma história de superação pela Arte até onde a narradora/autora pôde suportar na vida e na ficção.
Tanto a palavra, em Aglaja, quanto a cena, em Baskerville, convergem para uma espécie de “docudrama”. O neologismo cinematográfico quer dar conta do equilíbrio entre o vivido e o gestado. Essa retroalimentação serve como matéria-prima para o ato criador. Aglaja revisita memórias pessoais como experimento de linguagem literária. Tudo o que conta vem por meio da sua criança, testemunha da violência doméstica ou do mundo lá fora, lugares da brutalização pelo alcoolismo, pelo abuso infantil e outras formas de exploração. No seio de uma família de circo, pai palhaço e mãe trapezista, ela teve a condição humana aviltada em vários momentos. Um prato cheio para cair no melodrama, ressentimentos, comiseração. Ao contrário, Aglaja sublinha a escrita com talento para narrar com muita criatividade, mantendo o olhar e a voz da criança como lampejos de verdades à flor da pele.
A reconstituição cênica adaptada do livro lança mão da projeção de imagens de época da sanguinária ditadura comunista do presidente Nicolae Ceausescu, submetido a julgamento sumário após insurreição popular e executado em praça pública ao lado da mulher, em dezembro de 1989. Naqueles anos, a Romênia fazia jus ao epíteto de “pátria do vampiro”, pespegado por causa da região da Transilvânia onde Drácula teria nascido. O contexto político perpassa o texto com a perseguição étnica, o embate democracia versus comunismo, a rejeição aos imigrantes. A autora entrelaça intimismo à espiral intercultural sem jamais perder a essência de sua voz.
Outros fragmentos de imagens históricos da própria autora, de seu pai, o palhaço Tandarica, que também faz às vezes de cineasta, compõem o suporte fílmico que pontua o espetáculo num processo de colagem parecido com o aplicado por Marcelo Masagão em Nós que aqui estamos por vós esperamos. A montagem teatral ainda projeta na tela, ao fundo, trechos mudos ficcionais que corroboram a narrativa. Os atores em carne e osso são também aqueles que deambulam pelo filme feito um Chaplin ou Buster Keaton, criando um outro interessantíssimo nível de leitura ao espectador.
Na disposição da cena, Baskerville estilhaça os planos como na literatura de Aglaja. Ergue um eficiente hipertexto no ir e vir dessa família circense, cigana e nômade por natureza. Às almas deformadas corresponde uma intensidade expressionista que está no corpo, no figurino, no cenário, na imagem. Essa subjetividade cambiante inclui intervenções ao microfone, a música operada ou executada pelos atores, a comida preparada também por eles, cujo cheiro toma conta do ambiente, os signos do manequim e das muletas, a automutilação representada numa tampa de alumínio retorcida, e por aí segue.
O espectador faz seu caminho nesse mundo engendrado pelos olhos de uma criança. Como na cena que traduz o desamparo dela e da irmã vendidas a outra família: um cortejo cruza o espaço cênico lentamente, marchando para o desfazimento do núcleo. A caçula arrasta-se aos pés dos pais feito um cão com medo de ser abandonado. Aliás, seu cachorro de fato e sua boneca são interlocutores decisivos para salvar-se pela imaginação. Quando vivia com sua irmã, esta lhe contava várias versões sobre a criança que cozinha na polenta, uma lenda romena equivalente à do bicho papão. Em sua cabeça, parecia difícil distinguir o inferno da vida e o inferno da panela.
As cenas e as páginas percorrem a infância, a adolescência e a fase adulta dessa narradora sempre vinculada à família disfuncional, mesmo quando apartada. É por isso que tenta ser estrela do show business, em busca da fama que seus pais não tiveram em suas empreitadas artísticas – ainda que grandes artistas, mas abortados por existências dilaceradas. A Companhia Mungunzá de Teatro é muito corajosa ao expor tudo isso com inventividade e risco, bons atores e um cuidado em não violentar ainda mais essas histórias de vida tão fragilizadas, sendo moralista ou prejulgando. “Eu só era alguém antes de nascer”, lemos na tela a sentença prematura da menina, num dos momentos de suspensão. Aglaja transforma sua história de vida em Arte, mesmo submetida ao desapego, à melancolia e ao questionamento perpétuo dos desígnios divino e humano feito um Jó de saias.