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O Diário de Mogi

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O Diário de Mogi – Domingo, 19 de março de 1995.   Caderno A – 3

 

 

Multimídia eletrônica e verbo dominam “A Tentação de Santo Antão Por Frank Dell”, peça da companhia norte-americana

 


VALMIR SANTOS 

 

 

O Wooster Group nasceu há 20 anos na esteira da vanguarda do seu conterrâneo norte-americano Living Theatre. Enquanto este radicalizava com um teatro eminentemente político e social, o primeiro circunscrevia-se ao palco e, por extensão, à tela de cinema e ao tubo de televisão. A montagem de “A Tentação de Santo Antão Por Frank Dell” (Frank Dell’s The Temptation of St. Antony), em cartaz até amanhã na capital, foi escolhida para a turnê brasileira por sintetizar a linguagem cênica do grupo de Elizabeth LeCompte.

“Eu não sou uma pessoa de teatro”. É uma frase da diretora que ilustra seu trabalho. O entrecruzamento de linguagens desponta como componente fundamental para LeCompte. Em “A Tentação de Santo Antão”, a ênfase recai sobre o vídeo.

São seis aparelhos de TV dispostos no palco. A fragmentada história das visões e êxtases do eremita do século 4 ganha sintonia com o final do século 20. Toda a carga religiosa é potencializada pela multimídia eletrônica; uma visualidade forte e ao mesmo tempo obscura.

A fumaça, a sobreposição de planos, a presença marcante da margem filmada simultânea à interpretação no palco – um teatro catódico -, enfim, tudo isso, porém não derruba a barreira da língua. “A Tentação de Santo Antão” tem na palavra o sustentáculo da maior parte das cenas.

Para reverberar ainda mais o poder da palavra, os atores falam ao microfone. O aparelho surge como extensão do corpo.

Trazido por intermédio do Centro de Pesquisa Teatral (CPT), dirigido por Antunes Filho, o Wooster Group não tem uma recepção positiva unânime do público. O espetáculo, neste sentido, lembra as montagens de Gerald Thomas onde a preocupação com a estética é tanta que qualquer resquício de linearidade vai para o espaço.

Além da multiplicidade de recursos cênicos, o texto inspirado em “La Tentation de Saint Anoine”, épico do século 19 escrito por Gustave Flaubert, tem inserções várias, transformando-se praticamente num segundo.

Ao original de James Strahs foram adicionados diálogos ocasionais de “O Mágico” (1958), filme de Ingmar Bergman; de “Senhoras e Senhores, Lanny Bruce!” (1974), de Albert Goldman (Frank Dell era o apelido do ator americano Lanny Bruce nos anos 50), entre outros. Já o vídeo tem como fonte o talk show “Interlúdios Depois da Meia-Noite”, da TV a cabo norte-americana Canal J, onde os participantes eram entrevistados nus.

“A Tentação de Santo Antão” faz uma alegoria da virtualidade sem perder a ironia. O humor é uma constante nas interpretações. Willem Dafoe, ator de filmes como “Platoon” e “Corpo em Evidência”, faz dois papéis. É Frank Dell, o protagonista, e também Hilarion, discípulo de Santo Antão que depois se converte em demônio.

Dafoe incorpora bem a multimídia do espetáculo. Convite harmoniosamente com efeitos especiais graças à carreira paralela no cinema. Mas a força interpretativa, teatral, está com as atrizes Peyton Smith (Phylis), Cynthia Hedstrom (Sue) e Kate Valk (Onna).

 

A Tentação de Santo Antão Por Frank Dell – Últimas apresentações hoje, 20h e amanhã, 21h. Com o Wooster Group (Cynthia Hedstrom, Dave Shelley, Clayton Hapaz, J.J., Tracy Leipold etc). Direção: Elizabeth LeCompte. Teatro Sesc Anchieta (rua Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, tel. 256-2322 ou 256-2281). R$30,00 (50% desconto  para comerciários). Duração: 95 minutos.

 

Quem assistiu ao espetáculo “Brincante”, que fez temporada em São Paulo ano passado e agora está em cartaz no Rio de Janeiro, conferiu um dos trabalhos mais bonitos do teatro nacional contemporâneo. O pernambucano Antônio Nóbrega encantou com a brasilidade mostrada no palco: um cadinho do folclore nordestino em meio à dura realidade de um povo, acostumado a sobreviver combatendo principalmente a fome.
“Brincante” já se mostrava com potencial religioso. O personagem de Nóbrega, o funâmbulo Tonheta, antes de mais nada, tinha fé na alegria de viver. O amor lhe movia montanhas. Um dos responsáveis pelo sucesso de “Brincante”, o artista plástico Romero de Andrade Lima, autor do belo cenário, agora brinda o público com uma montagem própria, “Auto da Paixão”, onde mistura teatro, artes plásticas e canto.
A idéia de “Auto da Paixão” surgiu quando Lima teve de criar uma encenação para a vernissage de uma exposição sua, realizada em maio. As três noites de apresentação se transformaram em sete, por causa da grande procura. Limam, então, decidiu montar uma companhia com As Pastorinhas, um coro formado por 12 meninas.
Elas percorrem 12 retábulos/esculturas de lima que representam a Paixão de Cristo, com narração (feita pelo próprio autor) e cânticos sobre a vida de Jesus. O espetáculo recria procissões, reisados e pastoris, resgatando o espírito da festa popular nordestina, combinando sagrado e profano.
“Auto da Paixão” é como uma procissão. O público acompanha o coro que percorre as obras de Lima, instaladas em pontos diferentes do galpão Brincante, uma cria de Nóbrega, em plena Capital. Guardadas as devidas proporções, a polêmica peça encenada na Igreja Santa Ifigênia.
O espetáculo de Romero de Andrade Lima só é prejudicado pelo excesso de espectadores. As cem pessoas tornam a movimentação das pastorinhas um tanto tensa. A cada cena, elas são obrigadas a se espremer entre o público para se deslocar.
Ademais, “Auto da Paixão” é um deleite para olhos e alma. O repertório é composto de toadas populares que Lima escutava na casa do tio Ariano Suassuna, mentor do movimento Armorial na década de 70. O clima barroco (cenários, iluminação, figurino) transporta a um estado delicado do ser, a uma contemplação do divino de perto. Um espetáculo imperdível.
Auto da Paixão – De Romero de Andrade Lima. Com As Pastorinhas. De quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Cr$ 200 mil (quinta a sábado) e Cr$ 250 mil (domingo). Teatro Brincante (rua Purpurina, 428, tel. 816-0575). Até dia 15 de agosto.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Quinta-feira, 18 de fevereiro de 1995.   Caderno A – capa

 
Difícil manter a distância emocional no contundente espetáculo do Teatro da Vertigem, encenado em um hospital desativado
 

VALMIR SANTOS

 

 

O peso da crença despenca dos céus em “O Livro de Jó”. A montagem do grupo Teatro da Vertigem é comovente. Religião e existência, tão coligadas, convergem para o coração do homem em desassossego. Leia mais

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Quinta-feira, 22 de dezembro de 1994.   Caderno A – capa

 

A mostra de filmes com Kazuo Ohno e Tatsumi Hijikata, os criadores da dança, trouxe informações valiosas

VALMIR SANTOS 

“Os Mestres do Butoh Japonês”, mostra de vídeos e filmes inéditos que aconteceu na semana passada em São Paulo, no Sesc Consolação, trouxe informações-imagens valiosas para as artes cênicas brasileiras, cada vez mais se nutrindo dos ensinamentos de Kazuo Ohno e Tatsumi Hijikata.

Ohno, hoje com 88 anos, esteve duas vezes no Brasil: São Paulo (1986) Londrina (1992). Hijikata, morto em 1986, aos 66 anos, era, até então, praticamente desconhecido entre nós. No final dos anos 60, eles desenharam um estilo que detonou verdadeira metamorfose na relação do corpo com o espaço.

Mais que desabafo frente ao dedicado momento histórico do Japão pós-bomba, entre 1945 e 1960 (com uma nação se curvando à ocupação americana), transcenderam ao protesto e elevaram sua arte ao panteão dos gênios criadores.

De Twyla Tharp a Pina Bausch, de Peter Brook a Antunes Filho, o butoh se dissemina e marca a dança e o teatro neste final de século. Ou melhor, é incorporado também a outras manifestações, como o cinema. A mostra do Sesc exibiu trabalhos de diretores japoneses que, entre os anos 60 e 70, esboçavam uma estática butoh para as imagens.

Hiroshi Nakamura filmou “Revolução da Carne” (1968) e Takahiho Iimura fez “Dança da Rosa Colorida” (1965) – os dois enfocam Hijikata. Mas foi Chiaki Nagano quem assumiu mais intensamente uma estética butoh para seu cinema, realizando uma trilogia com Kazuo Ohno.

“Retrato” (1969), “Mandala” (1971) e “O Livro da Morte” (1973) correspondem ao processo em que Ohno encontra um caminho distinto – mas complementar – em relação ao seu companheiro Hijikata. Ou seja, ambos fundaram a dança e, com o passar do tempo, fincaram novas raízes.

Conheceram-se em 1954. A primeira colaboração da dupla, “O Velho e o Mar”, de Hemingway, veio cinco anos depois. Ainda em 1959, Hijikata deixava a Associação Japonesa de Dança em polvorosa. Em “Cores Proibidas”, coreógrafa um homem (Yoshito Ohno, filho de Kazuo) mantendo relações sexuais com uma galinha, enquanto um segundo (o próprio Hijikata) se insinua para o primeiro.

No final dos anos 60, Hijikata mergulha de vez em sua “dança das trevas”, se alimentando da escatologia, violência, Sade, Genet, etc. Enquanto Ohno opta pelo espírito. Não esconde sua fé na humanidade. Cristão, acredita que a dança revela “a forma da alma”.

As extremidades, como pés e mãos, sol e chuva, céu e terra, enfim, entram em convergência no caso de Ohno-Hijikata. Sim, porque o butoh parece consagrar a lei da compensação; o equilíbrio físico, pessoal e social como princípio elementar da vida. Oriente-se, mas não desocidentalize-se.

Depois de ver Kazuo Ohno dançar em Londrina (PR) e ter oportunidade de voltar aos anos 60 e 70, através de imagens p&b e coloridas, para contemplá-lo no ponto de ebulição, ao lado do testa-de-ferro Tatsumi Hijikata, ganha-se um cadinho de compreensão do universo corporal construído pelos mestres do butoh.


Ohno estreou aos 43 anos

Kazuo Ohno nasceu em 1906, em Hakodate, Hokkaido. Aos 23 anos, decidiu tornar-se bailarino, depois de assistir à dançarina espanhola La Argentina. Era professor de ginástica quando se matriculou na escola de Baku Ishii (1933). No ano seguinte, descobriu a dança expressionista do alemão Harald Krevtzberg. Tornou-se aluno de Takaja Eguchi, serviu o exército (1938-1946) e, em 1949, estreou seus primeiros solos. Tinha 43 anos. O mundo só deu conta de Kazuo Ohno em 1980, no Festival de Nancy, França, quando ele dançou o solo “Admirando La Argentina”. Esteve no Brasil pela última vez em junho de 1992, no Festival Internacional de Londrina.

 

Hijikata dança o “feminino”

Tatsumi Hijikata nasceu em Akita, em 1928 . Morreu em 1986. É dele o conceito de “ankoku butoh” (dança das trevas). Começou fazendo dança moderna. Mas, em maio de 1959, estreou uma pequena obra, inspirada em Mishima: “Cores Proibidas”. No início, parecia predominar o universo masculino. No final dos anos 60, Hijikata descobre que suas irmãs, vendidas para a sobrevivência da família, moravam nele. O feminino irrompe. O corpo assume forma de um “outro”: gato, vento, pedra ou qualquer ser. Corpo polimórfico em cerimônias misteriosas de transformação. Temido e respeitado, deixou seguidores, como os grupos Byakko-sha, que já veio ao Brasil, e Sankai Juku.  

Quem assistiu ao espetáculo “Brincante”, que fez temporada em São Paulo ano passado e agora está em cartaz no Rio de Janeiro, conferiu um dos trabalhos mais bonitos do teatro nacional contemporâneo. O pernambucano Antônio Nóbrega encantou com a brasilidade mostrada no palco: um cadinho do folclore nordestino em meio à dura realidade de um povo, acostumado a sobreviver combatendo principalmente a fome.
“Brincante” já se mostrava com potencial religioso. O personagem de Nóbrega, o funâmbulo Tonheta, antes de mais nada, tinha fé na alegria de viver. O amor lhe movia montanhas. Um dos responsáveis pelo sucesso de “Brincante”, o artista plástico Romero de Andrade Lima, autor do belo cenário, agora brinda o público com uma montagem própria, “Auto da Paixão”, onde mistura teatro, artes plásticas e canto.
A idéia de “Auto da Paixão” surgiu quando Lima teve de criar uma encenação para a vernissage de uma exposição sua, realizada em maio. As três noites de apresentação se transformaram em sete, por causa da grande procura. Limam, então, decidiu montar uma companhia com As Pastorinhas, um coro formado por 12 meninas.
Elas percorrem 12 retábulos/esculturas de lima que representam a Paixão de Cristo, com narração (feita pelo próprio autor) e cânticos sobre a vida de Jesus. O espetáculo recria procissões, reisados e pastoris, resgatando o espírito da festa popular nordestina, combinando sagrado e profano.
“Auto da Paixão” é como uma procissão. O público acompanha o coro que percorre as obras de Lima, instaladas em pontos diferentes do galpão Brincante, uma cria de Nóbrega, em plena Capital. Guardadas as devidas proporções, a polêmica peça encenada na Igreja Santa Ifigênia.
O espetáculo de Romero de Andrade Lima só é prejudicado pelo excesso de espectadores. As cem pessoas tornam a movimentação das pastorinhas um tanto tensa. A cada cena, elas são obrigadas a se espremer entre o público para se deslocar.
Ademais, “Auto da Paixão” é um deleite para olhos e alma. O repertório é composto de toadas populares que Lima escutava na casa do tio Ariano Suassuna, mentor do movimento Armorial na década de 70. O clima barroco (cenários, iluminação, figurino) transporta a um estado delicado do ser, a uma contemplação do divino de perto. Um espetáculo imperdível.
Auto da Paixão – De Romero de Andrade Lima. Com As Pastorinhas. De quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Cr$ 200 mil (quinta a sábado) e Cr$ 250 mil (domingo). Teatro Brincante (rua Purpurina, 428, tel. 816-0575). Até dia 15 de agosto.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Quinta-feira, 25 de agosto de 1994.   Caderno A – capa

 

VALMIR SANTOS 

O diretor Amir Haddad emana tanta paixão ao falar do seu trabalho, que fica difícil não enxergar nele uma espécie de guru. Maior expressão do teatro de rua no Brasil – 18 anos à frente do grupo carioca Ta Na Rua -, Haddad optou por caminho dos mais difíceis nos tempos que correm: o popular.

“Às vezes penso que o nosso teatro é feito para os excluídos”, afirma. Tirar o teatro da “caixa” (palco italiano) e levá-lo para a rua ou espaço não-convencional foi o ideal abraçado.

Haddad prega um ator que encontre sua verdade, opinião, consiga comunicar-se plenamente. Isso, segundo sua ótica, se dá no teatro de rua, onde a expansão do espaço externo culmina com a descoberta de um espaço interior. “Aí, a liberdade se estabelece entre público e atores, independente de camadas sociais”, acredita o diretor.

Depois de um workshop na Capital, onde também apresentou o espetáculo “Febeapá”, de Stanislau Ponte Preta, Haddad, 57 anos, falou com exclusividade a O Diário.

 

O Diário – O Tá Na Rua nunca subiu ao palco?

Amir Haddad – Nosso problema não é o palco ou rua. Somos livres da estética ou ideologia estabelecidas pela elite. Detesto quando nos rotulam, nos ‘prendem’ às ruas…

 

O Diário – Mas então o grupo já levou espetáculos em teatro convencional?

Haddad – A nossa montagem mais recente, “Febeapá”, com narrativas dramáticas baseadas na obra de Stanislau Ponte Preta, estreou primeiro no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio, em janeiro de 1993, e só depois, aos poucos, foi sendo ‘desmontada’ para as ruas. Quando se faz um teatro igual ao nosso, é mais difícil conseguir recursos. Raríssimos são os empresários que apóiam. Então, às vezes, fazemos a via normal, do palco italiano, para fazer o que a gente realmente gosta e quer.

 

O Diário – Como concebe seus espetáculos?

Haddad – O nosso jogo é aberto, por isso muito mais difícil. Desenvolvemos o ator que seja capaz de falar sua realidade, ter sua própria opinião, palavra, que possa exercer seu ofício com uma visão de mundo, com verdade e espontaneidade. Ele tem que romper cacoetes, vícios.

 

O Diário – E quais são as principais influências nesse processo?

Haddad – No início do Tá Na Rua, há quase duas décadas, não havia qualquer preocupação com esse contexto histórico. Nos reunimos, fazíamos bastante rua e só depois começou a aparecer Brecht, Shakespeare, commedia dell’arte…

 

O Diário – …Commedia é puro improviso…

Haddad – A commedia dell’arte surgiu há 30 anos, nas ruas da Europa. Não somos passadistas, Ela simplesmente foi incorporada, como outras coisas. Creio que visitamos o século 18, hoje, para pensar o século 21. O palco italiano, ‘caixa certinha’, vai se tornar ‘coisa do século 20’.

 

O Diário – Como se dá a relação com o espaço em seu trabalho? Como não há uma delimitação formal com o público, tem que ter muito jogo de cintura…

Haddad – É uma parte crucial do nosso trabalho. O teatro hoje é feito em sala italiana, tem conotações e está a serviço de idéias e de uma classe política, a burguesa. Então, o que temos feito é sair da ‘caixa’ para sabermos quem somos. Trabalhos na expansão, não na angústia. Buscamos os gestos exagerados, épicos até.

 

O Diário – Essa contextualização política não tem a ver com um teatro engajado?

Haddad – Não apresentamos o discurso político, panfletário. Somos mais ideológicos, não políticos. Construímos uma utopia em um momento de demolição. As elites não têm preocupação com o futuro, a não ser se manter no poder. Vamos de encontro aos excluídos, àqueles que não têm acesso.

 

O Diário – Em sua carreia, você chegou a fazer o chamado teatrão. Depois, se afastou das peças comerciais. Como foi a transição?

Haddad – Rompi com medo, chorando, impludindo, não queria mais repetir fórmulas. Saí dos palcos consagrados. Fiquei praticamente afastado durante três anos… Quando voltei, troquei o certo pelo duvidoso… Não queria o câncer, mas o fluxo. E aí entrou o teatro de rua.

 

O Diário – Como vê o teatro brasileiro atual?

Haddad – É um teatro muito rico… No Brasil, o problema é que cada diretor quer ser um Brecht… Ele acaba virando o centro da atenção. No Tá Na Rua, a gente dá muito valor ao coletivo, à participação do todos para se atingir uma expressão artística de essência.

Espetáculo de rua conduz à carnavalização

 

Quando “Febeapá” foi encenada há duas semanas, num espaço da estação São Bento do metrô, na Capital, o público captou muito bem o espírito do teatro de rua. Numa das cenas em que o personagem morre e desaba no chão, soaram os sinos do Mosteiro de São Bento. Abertos para o universo exterior, os atores sabiamente aproveitaram o “timing” da badalada para enfatizar a morte daquele pobre coitado.

Para o público em geral, tudo que a trupe do Ta Na Rua faz é fácil, porque parece que o elenco está o tempo todo rindo, improvisando. Não é bem assim. “Febeapá” é o Festival de Besteiras Que Assolam o País. Por isso, o grupo e o diretor Amir Haddad foram buscar em Stanislau Ponte Preta uma interface da história recente do País, de 64 pra cá.

De fato, o engajamento foi para escanteio. Nada a ver com os Centros Populares de Cultura, os CPCs. Mas o efeito, na prática, é mais poderoso. Não se vê o “Febeapá” do Tá Na Rua impunemente. Os fatos e as versões se cruzam entre os personagens que são o espelho de quem está assistindo ao espetáculo ali – na rua, na praça, na escola.

Executivos e donas de casa, aposentados e meninos de rua, na roda teatral do Tá Na Rua cabe todo mundo. E tudo sob o comando do ‘chacrinha’ Haddad. As músicas, os gags, os exageros, as tiradas do público, tudo conduz a uma carnavalização.

Quem assistiu ao espetáculo “Brincante”, que fez temporada em São Paulo ano passado e agora está em cartaz no Rio de Janeiro, conferiu um dos trabalhos mais bonitos do teatro nacional contemporâneo. O pernambucano Antônio Nóbrega encantou com a brasilidade mostrada no palco: um cadinho do folclore nordestino em meio à dura realidade de um povo, acostumado a sobreviver combatendo principalmente a fome.
“Brincante” já se mostrava com potencial religioso. O personagem de Nóbrega, o funâmbulo Tonheta, antes de mais nada, tinha fé na alegria de viver. O amor lhe movia montanhas. Um dos responsáveis pelo sucesso de “Brincante”, o artista plástico Romero de Andrade Lima, autor do belo cenário, agora brinda o público com uma montagem própria, “Auto da Paixão”, onde mistura teatro, artes plásticas e canto.
A idéia de “Auto da Paixão” surgiu quando Lima teve de criar uma encenação para a vernissage de uma exposição sua, realizada em maio. As três noites de apresentação se transformaram em sete, por causa da grande procura. Limam, então, decidiu montar uma companhia com As Pastorinhas, um coro formado por 12 meninas.
Elas percorrem 12 retábulos/esculturas de lima que representam a Paixão de Cristo, com narração (feita pelo próprio autor) e cânticos sobre a vida de Jesus. O espetáculo recria procissões, reisados e pastoris, resgatando o espírito da festa popular nordestina, combinando sagrado e profano.
“Auto da Paixão” é como uma procissão. O público acompanha o coro que percorre as obras de Lima, instaladas em pontos diferentes do galpão Brincante, uma cria de Nóbrega, em plena Capital. Guardadas as devidas proporções, a polêmica peça encenada na Igreja Santa Ifigênia.
O espetáculo de Romero de Andrade Lima só é prejudicado pelo excesso de espectadores. As cem pessoas tornam a movimentação das pastorinhas um tanto tensa. A cada cena, elas são obrigadas a se espremer entre o público para se deslocar.
Ademais, “Auto da Paixão” é um deleite para olhos e alma. O repertório é composto de toadas populares que Lima escutava na casa do tio Ariano Suassuna, mentor do movimento Armorial na década de 70. O clima barroco (cenários, iluminação, figurino) transporta a um estado delicado do ser, a uma contemplação do divino de perto. Um espetáculo imperdível.
Auto da Paixão – De Romero de Andrade Lima. Com As Pastorinhas. De quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Cr$ 200 mil (quinta a sábado) e Cr$ 250 mil (domingo). Teatro Brincante (rua Purpurina, 428, tel. 816-0575). Até dia 15 de agosto.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Quinta-feira, 18 de agosto de 1994.   Caderno A – capa

 

Grupo Tapa é fiel ao quebra-cabeça cênico de Nelson Rodrigues; Denise Weinberg está impecável com Alaíde

 

VALMIR SANTOS 

O diretor do grupo Tapa, Eduardo Tolentino de Araújo, consegue atualizar e, ao mesmo tempo, manter-se fiel ao quebra-cabeça cênico criado por Nelson Rodrigues e Ziembinski há 50 anos, quando “Vestido de Noiva” inaugura a fase moderna do teatro brasileiro.

Rascunhado por Nelson, radicalizado por Ziembinski e concretizado por Santa Rosa, o cenário original trazia três planos: realidade, alucinação e memória. O “Vestido…” do Tapa mantém os três planos na narrativa, mas apresenta uma nova perspectiva de espaço.

Em 1943, as cenas da operação de Alaide, atropelada no Largo da Glória, Rio de Janeiro, se davam no plano superior, correspondendo à realidade. Na montagem do Tapa, as cenas se passam no porão e são vistas pelo público através de um espelho móvel, que lembra um telão.

Esse mecanismo é a principal novidade estética. Memória e alucinação mesclam-se tanto na cena propriamente dita, como ao fundo do palco (urdimento). Numa das peças cenografia mais complexa, Tolentino trilha os labirintos propostos por Nelson, porém, sem abrir mão da presença do ator, marca registrada do Tapa.

Desta forma, o jogo de xadrez “Vestido…” ganha impulso com movimentos fundamentais. A atriz Denise Weinberg, a Catarina de “A Megera Domada”, premiada montagem do grupo, volta a brilhar no papel de Alaíde, personagem-eixo da trama.

Impondo comicidade na dose certa, sem prejuízo da densidade trágica, psicológica, Denise sai-se muito bem. Sua interpretação destaca-se, sobretudo, porque é mais orgânica e espontânea. O elenco do tapa possui uma técnica apurada, com precisão inglesa nos gestos e movimentos. Esse rigor, por vezes, transparece e ofusca a força dos personagens.

Ocorre, por exemplo, com Clara Carvalho (Lúcia) e Zécarlos Machado (Pedro), cujas atuações se prendem à marcação. Denise vai um pouco além, e consegue dar intensidade a Alaíde. Sonia Oiticica, a veterana atriz (foi a primeira Zulmira de~“A Falecida”) transcende a nostalgia.

Sonia é a tradução perfeita do teatro rodrigueano na pele de Madame Clessi, a cafetina que freqüenta as alucinações de Alaíde. O espectro do autor ronda a montagem do Tapa na interpretação de Sonia. A “misturada” que ele produziu em sua peça, já è época impregnada de aspectos recorrentes (morbidez, traição, incesto, cinismo, etc.) foi absorvida com maestria por Tolentino e seu grupo.

Vale registrar, ainda, o impecável figurino que Lola Tolentino – mãe do diretor – concebeu para o espetáculo. Com a colaboração da luz de Roberto Lima, onde a penumbra é regra surge um “Vestido de Noiva” dos anos 90 com a cara dos anos 40. É uma equação difícil do tempo, mas que surge transparente no palco.

Vestido de Noiva – De Nelson Rodrigues. Direção: Eduardo Tolentino de Araújo. Com o grupo Tapa (Elnat Falbel, Guilherme Sant’Anna, Lulu Pavarin, Mika Winlaver, Paulo Glardini, Tony Giusti e outros). Quinta a sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Aliança Francesa (rua General Jardim, 182, Centro, tel. 259-0086). Duração: 1h30. Ingressos: R$ 15,00. Preço único.
 

Tapa também encena comédia “O Noviço”

Brian Penido, que também atua em “Vestido de Noiva”, assina a direção de “O Noviço”, texto de Martins Penna, que volta ao cartaz. A montagem inaugurou em abril o projeto Panorma do Teatro Brasileiro, onde o grupo Tapa pretende encenar quatro autores nacionais. Depois de Nelson e Marins Penna. Vem “A Casa de Orates”, de Arthur e Aluízio Azevedo. O quarto texto ainda não foi definido.

Penido estreou com firmeza na direção. Conserva o contexto português do original sem passadismo. O que se vê em “O Noviço” é um rico intercâmbio entre os “poderes” da palavra e da interpretação.

Ana Lúcia Torre, também no elenco de “Vestido…” é uma comediante de fato. Sua Florência atinge o público em cheio; uma comunicação possível, graças a um brilho de olhar, um gesto minúsculo.

Mesmo intensidade se dá com Luiz Santos Baccelli no papel de Ambrósio. O ator faz da caricatura um combustível para a farsa. Ambrósio, ambicioso, se casa com a viúva Florência por interesse. Não mede esforços para ficar com o dinheiro dela, se envolvendo num atrapalhado embate com o sobrinho e a enteada, culminando com o aparecimento da sua ex-esposa. Uma comédia bem lapidada.

O Noviço – De Martins Penna. Direção: Brian Penido. Com o grupo Tapa (Fabiana Vajman, André Garolli e outros). Segunda e terça, 21h. Teatro Aliança Francesa (leia endereço acima). Duração: 1h15. Ingressos: R$ 10,00.

Peça de Nelson estreou em 1943 e marcou época

“Vestido de Noiva” foi encenada pela primeira vez em 28 de dezembro de1943. Ao final da apresentação, a platéia do Teatro Municipal do Rio aplaudiu durante minutos. Mas entendeu muito pouco do que viu. Não era para menos. Além dos três planos de ação (realidade, memória e alucinação), o espetáculo contava com 140 mudanças de cena, com 32 personagens (incluindo duas noivas) interpretados por 35 atores.

A peça marcou a história do teatro brasileiro. O texto de Nelson Rodrigues (1912-1980), a direção do polonês Ziembinski (1908-1978), que trouxe novos conceitos de encenação, e o ousa cenário de Tomás Santa Rosa Júnior, fizeram com que “Vestido…” já nascesse madura.

Ordem cronológica é o que menos importa na história. Na mesa de operação, após ter sido atropelada, Alaíde delira. Mescla memórias e alucinações. Lembra-se de Lúcia, a irmã de quem “roubou” o namorado, Pedro continua a manter caso com Lúcia.

Alaíde havia encontrado um diário no sótão de sua casa. Pertenceu a Madame Clessi, cortesã assassinada em 1905 (a peça se passa em 1943). E Clessi também povoa a cabeça de Alaíde, que “vê” Pedro transformado em namorado da cafetina.

No campo da alucinação, ela discute com Pedro, suspeitando de que planeja sua morte com Lúcia. Pensa, então, tê-lo matado com uma barra de ferro. Em outra passagem, Alaíde conversa com Madame Clessi diante do próprio cadáver (dela; Alaíde) no bordel.

Por fim, encontra-se com Lúcia, ambas vestidas de noiva. Discutem sobre Pedro. No final, Alaíde assiste à cerimônia de casamento da irmã com o próprio. Entrega o buquê a Lúcia, ao som de marcha fúnebre.

 

Quem assistiu ao espetáculo “Brincante”, que fez temporada em São Paulo ano passado e agora está em cartaz no Rio de Janeiro, conferiu um dos trabalhos mais bonitos do teatro nacional contemporâneo. O pernambucano Antônio Nóbrega encantou com a brasilidade mostrada no palco: um cadinho do folclore nordestino em meio à dura realidade de um povo, acostumado a sobreviver combatendo principalmente a fome.
“Brincante” já se mostrava com potencial religioso. O personagem de Nóbrega, o funâmbulo Tonheta, antes de mais nada, tinha fé na alegria de viver. O amor lhe movia montanhas. Um dos responsáveis pelo sucesso de “Brincante”, o artista plástico Romero de Andrade Lima, autor do belo cenário, agora brinda o público com uma montagem própria, “Auto da Paixão”, onde mistura teatro, artes plásticas e canto.
A idéia de “Auto da Paixão” surgiu quando Lima teve de criar uma encenação para a vernissage de uma exposição sua, realizada em maio. As três noites de apresentação se transformaram em sete, por causa da grande procura. Limam, então, decidiu montar uma companhia com As Pastorinhas, um coro formado por 12 meninas.
Elas percorrem 12 retábulos/esculturas de lima que representam a Paixão de Cristo, com narração (feita pelo próprio autor) e cânticos sobre a vida de Jesus. O espetáculo recria procissões, reisados e pastoris, resgatando o espírito da festa popular nordestina, combinando sagrado e profano.
“Auto da Paixão” é como uma procissão. O público acompanha o coro que percorre as obras de Lima, instaladas em pontos diferentes do galpão Brincante, uma cria de Nóbrega, em plena Capital. Guardadas as devidas proporções, a polêmica peça encenada na Igreja Santa Ifigênia.
O espetáculo de Romero de Andrade Lima só é prejudicado pelo excesso de espectadores. As cem pessoas tornam a movimentação das pastorinhas um tanto tensa. A cada cena, elas são obrigadas a se espremer entre o público para se deslocar.
Ademais, “Auto da Paixão” é um deleite para olhos e alma. O repertório é composto de toadas populares que Lima escutava na casa do tio Ariano Suassuna, mentor do movimento Armorial na década de 70. O clima barroco (cenários, iluminação, figurino) transporta a um estado delicado do ser, a uma contemplação do divino de perto. Um espetáculo imperdível.
Auto da Paixão – De Romero de Andrade Lima. Com As Pastorinhas. De quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Cr$ 200 mil (quinta a sábado) e Cr$ 250 mil (domingo). Teatro Brincante (rua Purpurina, 428, tel. 816-0575). Até dia 15 de agosto.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Quinta-feira, 17 de fevereiro de 1994.   Caderno A – capa

 

 

A peça de Gerald Thomas, que encerra a trilogia da B.E.S.T.A., hesita entre surpresas e decepções

 

VALMIR SANTOS 

Agonia é o que não falta em “UnGlauber”, a peça do diretor/autor Gerald Thomas, que encerra sua trilogia da B.E.S.T.A. (Beatificação da Estática Sem Tanta Agonia). Da masturbação existencial da condição do ator, até a mutilação corporal (o sangue jorra em quase todo o espetáculo), o que se denota é um encenador na busca desesperada de chão (ou de céu).

“UnGlauber” é tão ‘working in progress’ quanto “O Império das Meias-Verdades”. Mas agora os personagens ganham mais personalidade, mais voz. Aliás, em comparação aos últimos trabalhos, nunca se falou tanto numa peça de Thomas. Na tentativa de ampliar o canal de comunicação com o público, ele passa a dar mais valor à palavra, ao diálogo.

Mas a linearidade ainda está longe. O texto continua embutindo resquícios de fragmentação. O que não implica estorvo, mas um estilo de linguagem de Thomas.

Em “UnGlauber”, se encaixa melhor a especulação em torno da função do ator, da psicologia à cena propriamente dita, do que à pretensa tematização da geração pós-Glauber Rocha, o cabeça do Cinema Novo nos anos 70. Novamente em off, Thomas disseca a presença desse elemento orgânico dentro do teatro, filosofando, sobretudo, em relação às suas “fraquezas” – capaz de “vender” até a mãe.

Nesta primeira fase, “UnGlauber” (título que literalmente significa “descrente” em alemão) apresenta necessidade de acertos. A impressão é a de que o encenador abriu exceções em relação à atuação dos atores, ao fim da abstração do cenário sem, contudo, se desvencilhar da fumaça, do artificialismo (há um ‘ratazana’ eletrônica que passeia no palco), da onipresença da sua própria voz em off.

Com essa transição, Thomas talvez tenha perdido um pouco a visão do todo; do conjunto das cenas. Isso diminui o acesso à compreensão do espetáculo; ou ao menos ao que a história sugere. O aplauso frouxo da platéia, ao final, é um indício.

Dentro do seu processo de metamorfose – quando anuncia o deslumbramento de uma nova concepção cênica, perseguindo um teatro de essência, de poesia até -, Thomas já certa, em princípio, no que respeita ao seu ator. A principal novidade de “UnGlauber” é o desprendimento do elenco de uma estética opressora. As interpretações de Luiz Damasceno, Edílson Botelho, Ludoval Campos e mesmo a da atriz convidada da Cia. De Ópera Seca, Vera Zimmermann, confirmam a mudança.

Fernanda Torres, que atuou em “The Flash And Crash Days” e “O Império…”, deixa o palco para assinar um figurino. No mínimo, convencional. Entre surpresas e decepções, “UnGlauber” fica em cima do muro. E a maior evidência da fase atual de Thomas está nos versos do samba de Paulinho da Viola, que faz parte da trilha sonora da peça: “Quando um poeta se encontra sozinho num canto qualquer do seu mundo, vibram acordes, surgem imagens, soam palavras, formam-se frases”.

UnGlauber – Texto e direção: Gerald Thomas. Com Cacá Ribeiro, Milena Milena, Eleonora Prado, Domingo Varela e outros. De quarta a sábado, 21h; domingo, 20h. CR$ 2,4 mil e CR$ 1,2 mil. Teatro Sesc Pompéia (rua Clélia, 93, tel. 864-8544). Até dia 27 de fevereiro.

Estréia a versão gaúcha de “Decameron”, em SP

Um dos melhores espetáculos da temporada gaúcha de 1993 estréia, em São Paulo, amanhã. “Decameron”, a obra-prima de Giovanni Boccaccio (1313-1375) é encenada pela Cia. Teatro di Stravaganza, com o elenco de quatro atores interpretando em italiano. A idéia é explorar o ritmo e a sonoridade desta língua.

Os atores Adriane Mottola e Luiz Henrique Palese fizeram a adaptação. Na história original de Boccaccio, dez jovens refugiam-se da peste que assola Florença no ano de 1348. Eles narram histórias de amor num local solitário. Já no enredo de Adriane e Palese, uma companhia mambembe chega a Florença. Seus atores são comediantes que apresentam um espetáculo com sete histórias de amor e sexo, celebrando a alegria, o prazer e a capacidade de manter o bom humor diante de tempos tão difíceis. Palese também assume a direção da peça.

O “Decameron”, da Cia. Di Stravaganza, extraiu sete das cem novelas que Boccaccio escreveu em sua obra-prima. São elas: “A Peste”, “O Mudo no Convento de freiras”, “O Feitiço Que Transforma Uma Bela Jovem em Égua”, “Servir a Deus é Mandar o Diabo ao Inferno”, “Caterina Com o Rouxinol da Mão”, “O Amante no Barril” e “Casais Muito, Muito Amigos”.

A hipotética companhia medieval utiliza um carroção-palco, a “caixa-mágica” para levar seu teatro às praças e palcos de todas as cidades do mundo. Para tanto, foi montado em carroção com 6,40 metros de comprimento, 2,40 metros de largura e 3,60 metros de altura. As cenas de “Decameron” acontecem no piso do teatro, dentro da carroça ou sobre seu teto.

O elenco se preparou com técnicas circenses (bufões, máscaras, acrobacia, malabarismo, etc.). A Cia. Teatro do Stravaganza foi criada há seis anos. Tem a proposta de divulgar a cultura italiana. Ano passado, montou, também, “O Rei Nunca Riu”, baseada em Ítalo Calvino. Com 50 apresentações, “Decameron” ganhou o Troféu Scalp Teatro, no Rio Grande do Sul, e o Júri Popular do Festival Isnard Azevedo, de Florianópolis (SC), ambos de melhor espetáculo. A montagem entra em cartaz em São Paulo, depois de curta temporada no Rio.

Quem assistiu ao espetáculo “Brincante”, que fez temporada em São Paulo ano passado e agora está em cartaz no Rio de Janeiro, conferiu um dos trabalhos mais bonitos do teatro nacional contemporâneo. O pernambucano Antônio Nóbrega encantou com a brasilidade mostrada no palco: um cadinho do folclore nordestino em meio à dura realidade de um povo, acostumado a sobreviver combatendo principalmente a fome.
“Brincante” já se mostrava com potencial religioso. O personagem de Nóbrega, o funâmbulo Tonheta, antes de mais nada, tinha fé na alegria de viver. O amor lhe movia montanhas. Um dos responsáveis pelo sucesso de “Brincante”, o artista plástico Romero de Andrade Lima, autor do belo cenário, agora brinda o público com uma montagem própria, “Auto da Paixão”, onde mistura teatro, artes plásticas e canto.
A idéia de “Auto da Paixão” surgiu quando Lima teve de criar uma encenação para a vernissage de uma exposição sua, realizada em maio. As três noites de apresentação se transformaram em sete, por causa da grande procura. Limam, então, decidiu montar uma companhia com As Pastorinhas, um coro formado por 12 meninas.
Elas percorrem 12 retábulos/esculturas de lima que representam a Paixão de Cristo, com narração (feita pelo próprio autor) e cânticos sobre a vida de Jesus. O espetáculo recria procissões, reisados e pastoris, resgatando o espírito da festa popular nordestina, combinando sagrado e profano.
“Auto da Paixão” é como uma procissão. O público acompanha o coro que percorre as obras de Lima, instaladas em pontos diferentes do galpão Brincante, uma cria de Nóbrega, em plena Capital. Guardadas as devidas proporções, a polêmica peça encenada na Igreja Santa Ifigênia.
O espetáculo de Romero de Andrade Lima só é prejudicado pelo excesso de espectadores. As cem pessoas tornam a movimentação das pastorinhas um tanto tensa. A cada cena, elas são obrigadas a se espremer entre o público para se deslocar.
Ademais, “Auto da Paixão” é um deleite para olhos e alma. O repertório é composto de toadas populares que Lima escutava na casa do tio Ariano Suassuna, mentor do movimento Armorial na década de 70. O clima barroco (cenários, iluminação, figurino) transporta a um estado delicado do ser, a uma contemplação do divino de perto. Um espetáculo imperdível.
Auto da Paixão – De Romero de Andrade Lima. Com As Pastorinhas. De quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Cr$ 200 mil (quinta a sábado) e Cr$ 250 mil (domingo). Teatro Brincante (rua Purpurina, 428, tel. 816-0575). Até dia 15 de agosto.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Terça-feira, 25 de janeiro de 1994.   Caderno A – capa

 

O ator faz uma interpretação emocionante do filósofo francês no espetáculo “O Futuro Dura Muito Tempo”

VALMIR SANTOS 

As interpretações de Rubens Corrêa são acachapantes. Seus últimos espetáculos, “Colombo” e “Artaud” – notadamente este – evidenciam a força com que se entrega aos personagens. É tamanha energia despendida que, ao final de cada apresentação, ele surge com o corpo levemente inclinado, cabisbaixo, como a se recuperar de um mergulho profundo.

Em “O Futuro Dura Muito Tempo” não é diferente. Dificilmente outro ator se encaixaria no papel de Louis Althusser (1918-1990), filósofo francês que exerceu uma carreira acadêmica ativa, filiado ao Partido Comunista da França e defensor de uma “ética da esperança” – era marxista, mas não tanto. Mas sua vida pessoal foi um internado em uma clínica psiquiátrica.

Althusser beijou uma mulher pela primeira vez aos 30 anos. Era Hélène, uma ativista política. E com ela se casou. Trinta e quatro anos depois, em 1980, quando massageava o pescoço da mulher, acabou estrangulando-a. Não houve qualquer intenção, nenhum fato anterior que justificasse o gesto. O corpo de Hélène não apresentou uma mancha roxa sequer. A polícia considerou Althusser mentalmente incapaz de reconhecer o que fez e o internou em um hospício, onde passou os últimos dez anos de vida. Foi nesse período que escreveu “O Futuro Dura Muito Tempo” (lançado pela Companhia das Letras em 1992).

Baseado no livro e em outros escritores de Althusser, o diretor Márcio Vianna concebeu o texto do espetáculo. A peça pincela a atuação política do filósofo de esquerda, mas está centrada, sobretudo, no homem Althusser. Rubens Corrêa cai como uma luva. O personagem tem a condição de margem, de louco.

Os melhores momentos de “O Futuro…” nascem do poder interpretativo de Corrêa. Impressiona a cena da descoberta da sexualidade, quando Hélène (a triz Vanda Lacerda) toca seu pênis e o leva ao primeiro gozo da vida. Ele literalmente urra, se contorce e, de tão delirado, pede assustado para a mulher nunca mais voltar a tocar seu corpo – pedido evidentemente não-cumprido ao longo dos anos.

Rubens Corrêa consegue injetar poesia em um drama contundente. A participação de Vera Lacerda está prejudicada pela voz baixa, que às vezes não permite a compreensão da fala. Ainda assim, a atriz responde por algumas pitadas de humor, quando sua Hélène tira Althusser do sério.

Salvo os primeiros minutos de “O Futuro…”, com intercalação de texto, música e blecaute resultando em fragmentação – o ritmo do espetáculo deslancha com a entrada de Hélène em cena –, o diretor Márcio Vianna encontra boas soluções.

O cenário de Teca Fichinski, com esculturas de Firmo dos Santos, acentua a relação do indivíduo com seu corpo – as esculturas são troncos, sem cabeças, braços e pernas, as extremidades. E a iluminação de Paulo César Medeiros tem seu próprio “texto”, se incorporando ao desenho do cenário.

Por essas virtudes, e principalmente pela presença do grande ator Rubens Corrêa (leia entrevista abaixo), a montagem carioca de “O Futuro…” é uma das melhores em cartaz nos palcos paulistanos.

O Futuro Dura Muito Tempo – De Louis Althusser. Adaptação e direção: Márcio Vianna. Com Rubens Corrêa e Vanda Lacerda. De quinta a sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Ruth Escobar/Sala Gil Vicente (rua dos Ingleses, 209, tel. 251-4881). CR$ 1,6 mil, preço único. Duração: 1h20. Até 13 de fevereiro.

Ator se acostumou à loucura

 Rubens Corrêa, 62 anos a serem completados no próximo dia 23, é um dos maiores nomes do teatro brasileiro – prêmio Mambembe/93 de melhor ator. Estreou em 1955, em uma montagem do então grupo carioca Tablado, ao lado de Maria Clara Machado e outros. Lembra que o personagem tinha 90 anos e ele, Corrêa, havia acabado de sair do Exército, com cabelo de reco. Passou três anos estudando com os três maiores nomes do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC): Ziembinski, Adolfo Celli e Gianni Ratto. Um dos papéis mais marcantes desses 39 anos de carreira foi Artaud, em monólogo homônimo que estreou em 1986 e continua sendo apresentado esporadicamente. Aliás, depois de Artaud, ficou difícil para público, crítica e para o próprio ator dissociá-lo de personagens que têm na loucura sua razão de ser. Em entrevista coletiva na véspera da estréia de “O Futuro Dura Muito Tempo”, Corrêa admitia que isso não o preocupa mais.

 

Pergunta – O que o Sr. está achando do papel de Althusser?

Rubens Corrêa – Está sendo surpreendentemente sublime. Ele tinha o gosto pelo raciocínio, pela matemática, pela razão e, ao mesmo tempo, atingia o delírio. É um ato de ser, existir. E a história é extraordinária. A união de dois esquisitões, Althusser e Hélène. Eles tinham um amor animal pela vida.

 

Pergunta – Althusser é mais um personagem com a aura de louco. Isso vem se tornando uma rotina em sua carreira, principalmente depois de Artaud?

Corrêa – No começo, isso me preocupava. Pensei: “Chega de fazer louco.” Mas depois acabei assumindo, e acho que os personagens são mesmo fascinantes. Lembro de minha infância em Aquidauana (MS), onde nasci. Lá também tinha os louquinhos de rua e as crianças tinham uma relação muito legal com eles, sem preconceito. Não tenho medo de pirar por causa dos personagens.

 

Pergunta – Em suas interpretações, percebe-se a força que o Sr. coloca nos personagens em cena. Há uma espécie de transe. Isso implica que o ator fica tomado e não tem consciência do que está fazendo.

Corrêa – Não é bem isso. Tenho a consciência de ser e de ver. Não estou totalmente alheio. É que os personagens exigem muito. Artaud, por exemplo, ensaiei durante algum tempo em um sítio, em Friburgo (RJ), sozinho, em contato com a natureza. Já Althusser, fiz algumas pesquisas, como o livro “Diário de Um Louco”, de Gogol.

 

Pergunta – Ano passado, a montagem de “Colombo”, da qual o Sr. era protagonista, ficou apenas duas semanas em cartaz em São Paulo, apesar do elogio da crítica. O que aconteceu?

Corrêa – “Colombo” foi uma produção equivocada, mal-organizada. A gente ficou em cartaz em um teatro de difícil acesso, o Arthur Rubenstein, na Hebraica. Faltou público. Só encheu na última semana, depois que a Imprensa divulgou a saída de cartaz. A peça foi para o Rio, onde a crítica considerou “um fracasso”, que não deu certo em São Paulo. Contudo, a turnê nacional. Por algumas capitais, vingou nosso trabalho.

 

Pergunta – Quando o Sr. descobriu que queria ser ator?

Corrêa – Percebi que, quando lia jornal, “Correio da Manhã”, no Rio, me detinha mais na coluna de teatro do Paschoal Carlos Magno do que na coluna de música, pois estava música. Inclusive, tinha planos de seguir para o Exterior. Só não fui porque o Exército me chamou. E quando ouvia Bach, Chopin, Beethoven e outros, sempre construía uma história na minha cabeça. Em 1955, depois que servi o Exército, surgiu a oportunidade de atuar no Tablado.

 

Pergunta – Como o Sr. encara o momento atual do teatro brasileiro?

Corrêa – O nosso teatro dá sinal de vitalidade no pós-Collor. É um momento bonito, inclusive com vários convites para levar nossas montagens para fora.

 

Pergunta – Thomas ou Antunes?

Corrêa – Eu já trabalhei com o Gerald Thomas. Tanto ele como o Antunes filho desenvolvem pesquisas muito interessantes, só que vaidosas. Depois, dizem que os atores é que são vaidosos…Mas as peças de Antunes e Zé Celso são para ver duas ou quatro vezes…

 

Pergunta – E o ator brasileiro?

Corrêa – Minha geração era contida pelo amor e respeito ao texto. O texto era como uma partitura. Levava-se dois meses, com todo o grupo sentado em volta da mesa, para se chegar à empostação correta da voz. Era uma verdadeira orquestra de vozes e emoções. Nos anos 70, descobre-se o corpo, a expressão corporal. Hoje, os atores são extraordinários, inventivos, têm paciência para a fala. Um dia, eles vão encontrar esse equilíbrio, entre palavra e corpo.

Quem assistiu ao espetáculo “Brincante”, que fez temporada em São Paulo ano passado e agora está em cartaz no Rio de Janeiro, conferiu um dos trabalhos mais bonitos do teatro nacional contemporâneo. O pernambucano Antônio Nóbrega encantou com a brasilidade mostrada no palco: um cadinho do folclore nordestino em meio à dura realidade de um povo, acostumado a sobreviver combatendo principalmente a fome.
“Brincante” já se mostrava com potencial religioso. O personagem de Nóbrega, o funâmbulo Tonheta, antes de mais nada, tinha fé na alegria de viver. O amor lhe movia montanhas. Um dos responsáveis pelo sucesso de “Brincante”, o artista plástico Romero de Andrade Lima, autor do belo cenário, agora brinda o público com uma montagem própria, “Auto da Paixão”, onde mistura teatro, artes plásticas e canto.
A idéia de “Auto da Paixão” surgiu quando Lima teve de criar uma encenação para a vernissage de uma exposição sua, realizada em maio. As três noites de apresentação se transformaram em sete, por causa da grande procura. Limam, então, decidiu montar uma companhia com As Pastorinhas, um coro formado por 12 meninas.
Elas percorrem 12 retábulos/esculturas de lima que representam a Paixão de Cristo, com narração (feita pelo próprio autor) e cânticos sobre a vida de Jesus. O espetáculo recria procissões, reisados e pastoris, resgatando o espírito da festa popular nordestina, combinando sagrado e profano.
“Auto da Paixão” é como uma procissão. O público acompanha o coro que percorre as obras de Lima, instaladas em pontos diferentes do galpão Brincante, uma cria de Nóbrega, em plena Capital. Guardadas as devidas proporções, a polêmica peça encenada na Igreja Santa Ifigênia.
O espetáculo de Romero de Andrade Lima só é prejudicado pelo excesso de espectadores. As cem pessoas tornam a movimentação das pastorinhas um tanto tensa. A cada cena, elas são obrigadas a se espremer entre o público para se deslocar.
Ademais, “Auto da Paixão” é um deleite para olhos e alma. O repertório é composto de toadas populares que Lima escutava na casa do tio Ariano Suassuna, mentor do movimento Armorial na década de 70. O clima barroco (cenários, iluminação, figurino) transporta a um estado delicado do ser, a uma contemplação do divino de perto. Um espetáculo imperdível.
Auto da Paixão – De Romero de Andrade Lima. Com As Pastorinhas. De quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Cr$ 200 mil (quinta a sábado) e Cr$ 250 mil (domingo). Teatro Brincante (rua Purpurina, 428, tel. 816-0575). Até dia 15 de agosto.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Quinta-feira, 20 de janeiro de 1994.   Caderno A – capa


Trilogia B.E.S.T.A., que inicia com “The Flash and Crash Days”, inaugura uma fase menos expressionista

VALMIR SANTOS 

Geraldo Thomas mudou. O diretor brasileiro que sacramentou o teatro essencialmente de imagem em nossos palcos, na contramão de boa parte da crítica e até mesmo do público, começou a metamorfose em 1991, com “The Flash and Crash Days”, que reestreou semana passada em São Paulo. “Império das Meias-Verdades” a montagem do ano passada consolidou a nova perspectiva cênica de Thomas: a comicidade, a farsa.

Sobrou pouco da assepsia das montagens anteriores (“M.O.R.T.E.”, Trilogia Kafka ou “Electra Com Creta”, por exemplo). Hoje, quem assiste a uma peça de Thomas sai com menos interrogações na cabeça. É como se o diretor tivesse rompido a “quarta parede”.

Não que o encenador e também autor queira que o público entenda seus espetáculos. Há toda uma simbologia em jogo nas construções teatrais de Thomas. O que se depreende da fase atua é a necessidade de um diálogo mais direto com o espectador. E a via de um ator cômico, sem dúvida, é a que proporciona melhor resultado.

A “The Flash…” de 1991 não é a mesma que está em cartaz no Sesc Pompéia. O próprio Thomas aponta o humor mais acentuado nas personagens vividas por Fernanda Torres, mãe e filha. O embate das duas no palco, que outrora carregava no tom de tragédia, agora surge fanfarrão.

“The Flash…” já não é somente “exercícios interpretativos”. É possível delinear um enredo. No palco, as Fernandas também são mãe e filha. Há uma clara disputa de espaço, de poder. Qual mãe nunca pensou, em um instalo de ira, dar um sumiço em sua filha? E qual filha não desejou fazer sua mãe desaparecer do Planeta? Mas não é fácil. Impossível afogar a afetividade; o cordão umbilical dificilmente se rompe ao longo da vida.

Então, a peça com as Fernandas se passa nos interstícios da imaginação. Durante cerca de uma hora e meia, o que se vê no palco são movimentações estranhas, desconexas. O cenário traz um vulcão. Fernandona senta sobre seu topo para pedir água. A Fernandinha-sem-cabeça não se conforma em ver sua mãe e os “anjos urubus” jogando seu crânio praláepracá.

As histórias de Thomas são um convite à decifração. Às vezes, não se tem que entender nada mesmo. O estranhamente, para o encenador, também faz parte do jogo. Ele é muito criticado pela “falta de emoção”. Realmente, as peças anteriores eram de uma frieza irritante.

Mas o polêmico Thomas dos anos 90 é diferente. Prova disso é a trilogia – mais uma das suas – B.E.S.T.A., (Beatificação da Estética Sem Tanta Agonia), que compreende “The Flash…”, “Império…” e “UnGlauber”. A segunda peça será revista no Sesc Pompéia, a partir da próxima semana, e a inédita “UnGlauber”, título provisório, faz sua estréia mês que vem.

“Império das Meias-Verdades” é o espetáculo de Thomas onde os atores ficam mais à vontade em cena. Fernanda Torres, Edílson Botelho, Ludoval Campos e Luiz Damasceno estão hilários. Em “Império…”, Thomas assumiu o “working in progress”, fazendo alterações, às vezes radicais, de uma apresentação para outra. No menu, a origem do homem – Adão e Eva – , a partir de um prisma existencial do homem moderno.

Sobre “UnGlauber”, palavra que em alemão significa “descrente”, Thomas diz que trata da falta ou domínio do ator na arte de interpretar. Se passa no camarim, onde os atores questionam técnicas que vão de Platão a Brecht e Stanislavski. “UnGlauber”, que para a estréia internacional em abril, na Dinamarca, será intitulada “Hammering From The Blind Pig” (Marteladas de Um Porco Cego), contará com a atriz Vera Zimmerman no elenco.

O “Glauber” do título provisório não é por acaso. A peça também pode ser considerada anti-Glauber Rocha, em referência à geração posterior à do cineasta propulsor do Cinema Novo, marcada pela descrença. A desmitificação do processo criativo de Thomas é uma boa novidade para o teatro nacional. Afinal, ele é um mestre da cena, sob vaias ou aplausos.

 

The Flash and Crash Days – De quarta a sábado, 21h; domingo, 19h. Sesc Pompéia (rua Clélia, 93, tel. 864-8544). CR$ 2 mil (visitantes); CR$ 1,8 mil (usuários com carteirinha do Sesc) e CR$ 1 mil (comerciários). Até 23 de janeiro. Império das Meias-Verdades – De 26 a 30 de janeiro. UnGlauber – De 5 a 27 de fevereiro. Texto e direção: Gerald Thomas. Com a Companhia de Ópera Seca.

Quem assistiu ao espetáculo “Brincante”, que fez temporada em São Paulo ano passado e agora está em cartaz no Rio de Janeiro, conferiu um dos trabalhos mais bonitos do teatro nacional contemporâneo. O pernambucano Antônio Nóbrega encantou com a brasilidade mostrada no palco: um cadinho do folclore nordestino em meio à dura realidade de um povo, acostumado a sobreviver combatendo principalmente a fome.
“Brincante” já se mostrava com potencial religioso. O personagem de Nóbrega, o funâmbulo Tonheta, antes de mais nada, tinha fé na alegria de viver. O amor lhe movia montanhas. Um dos responsáveis pelo sucesso de “Brincante”, o artista plástico Romero de Andrade Lima, autor do belo cenário, agora brinda o público com uma montagem própria, “Auto da Paixão”, onde mistura teatro, artes plásticas e canto.
A idéia de “Auto da Paixão” surgiu quando Lima teve de criar uma encenação para a vernissage de uma exposição sua, realizada em maio. As três noites de apresentação se transformaram em sete, por causa da grande procura. Limam, então, decidiu montar uma companhia com As Pastorinhas, um coro formado por 12 meninas.
Elas percorrem 12 retábulos/esculturas de lima que representam a Paixão de Cristo, com narração (feita pelo próprio autor) e cânticos sobre a vida de Jesus. O espetáculo recria procissões, reisados e pastoris, resgatando o espírito da festa popular nordestina, combinando sagrado e profano.
“Auto da Paixão” é como uma procissão. O público acompanha o coro que percorre as obras de Lima, instaladas em pontos diferentes do galpão Brincante, uma cria de Nóbrega, em plena Capital. Guardadas as devidas proporções, a polêmica peça encenada na Igreja Santa Ifigênia.
O espetáculo de Romero de Andrade Lima só é prejudicado pelo excesso de espectadores. As cem pessoas tornam a movimentação das pastorinhas um tanto tensa. A cada cena, elas são obrigadas a se espremer entre o público para se deslocar.
Ademais, “Auto da Paixão” é um deleite para olhos e alma. O repertório é composto de toadas populares que Lima escutava na casa do tio Ariano Suassuna, mentor do movimento Armorial na década de 70. O clima barroco (cenários, iluminação, figurino) transporta a um estado delicado do ser, a uma contemplação do divino de perto. Um espetáculo imperdível.
Auto da Paixão – De Romero de Andrade Lima. Com As Pastorinhas. De quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Cr$ 200 mil (quinta a sábado) e Cr$ 250 mil (domingo). Teatro Brincante (rua Purpurina, 428, tel. 816-0575). Até dia 15 de agosto.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – outubro de 1993.   Caderno A 


VALMIR SANTOS 

“Ham-Let” é uma orgia. Tudo é festa, catarse dionisíaca, subversão da estética cênica em favor de um ator em estado bruto e, portanto, mais espontâneo naquilo que ele e seu corpo realmente comunicam. Tudo é surpresa, ritual. Desde a entrada no galpão da rua Jaceguai, na Capital, até depois de mais de cinco horas de espetáculo, há sempre o impacto.

A concentração de expectativas na noite de estréia, anteontem, tornou o clima mais mágico – ou melhor, místico. José Celso Martinez Corrêa, homem que pelejou pela reabertura do Teatro Oficina, faz 34 anos, estava visivelmente emocionado. Estado que, aliás, tomou conta do elenco e do público esfuziante.

Comandando a sua Companhia de Teatro Comum Uzyna Uzona, Zé Celso consegue trazer à tona a essência do trabalho do grupo Oficina, cujas montagens de “Rei da Vela” (67), de Oswaldo e Andrade, e “Roda Viva” (68), de Chico Buarque, foram cruciais para a história do teatro brasileiro.

O ator de Zé Celso é tal qual o próprio: se deixa levar por uma espécie de “santo” que baixa no palco. Em “Ham-Let”, várias são as cenas em que personagens berram e correm em disparada. Essa sensação de porra-louquice, uma entrega às cegas, é interessante até certo ponto; depois, causa estranhamento e incomoda porque sua sistemática fica, sem novidades.

Mas essa é a cara do Oficina. Os impulsos do ator merecem respeito e são incorporados a cada momento. É como que um improviso combinado. Se um introduz uma fala nova e sarcástica, o outro ri sem descaracterizar a situação. Na sexta-feira, uma mulher que estava sozinha e havia bebericado além da conta, cruzava o palco a todo instante. Marcelo Drummond (Príncipe Hamlet) não a ignorou. E a sempre segura, Denise Assunção, não fez por menos: jogou a mulher dentro da pequena queda d’água do cenário. E o estorvo assentou o facho.

Dividida em três longos atos, a história de Willian Shakespeare ganhou requintes nacionais. É explícita e velada a referência aos podres poderes políticos que regem o Brasil da fome e das chacinas. E há também o pau costumeiro de Zé Celso dirigido aos homens públicos que tratam a cultura a pão e água.

Marcelo Drummond, Pascoal da Conceição (com sete personagens) e Denise Assunção (Rozecrantz e outros dois papéis hilários) são os destaques da Uzyna Uzona. É impressionante como mantêm, sobretudo Pascoal e Denise, um pique uniforme do início ao fim do espetáculo.

A iluminação de Cibele Forjaz se equilibra com muita competência entre sombras, semiblecautes e gerais – há momentos em que o personagem em cena é acompanhado somente pelo foco de uma lanterna, onde o público vê ator e operador, o que proporciona uma metalinguagem interativa. A música de Péricles Cavalcante e José Miguel Wisnik, executadas ao vivo por músicos excelentes, têm influência capital em “Ham-Let”. O ritmo é o pulso da peça.

O cenário de Hélio Eichbauer e Alexandre Lopes se adequam ao espaço físico do Oficina, incluindo um jardim, o teto móvel, que permite ver a noite lá fora, e as folhagens que espelha pelo corredor-palco. Num primeiro instante, o Oficina é estranho. Não há propriamente um palco. O público se posta nas laterais, em galerias de dois andares. Depois, tudo é inter-ação. Em momentos em que a relação público – ator é tão próxima (personagens trombam na platéia, roubam alguns lugares em determinada cena, duelam com as espadas à beira do nariz do espectador) que vem à mente o teatro hard do grupo catalão La Furia Del Baus, quando esteve no Brasil.

Enfim, pelo tanto que se esperou para a reabertura – que somente será completada em novembro – e pela vontade do diretor, ator e agitador Zé Celso em levar um espetáculo que se sintonizasse com o Brasil aqui-agora. “Ham-Let” é uma montagem inusitada que, apesar de restabelecer o estilo Oficina de atuação, surge paradoxalmente como um divisor de águas no cenário nacional – o que se vê é muito diferente das montagens apresentadas nos últimos anos em todo o País.

 

Ham-Let – De William Shakespeare. Adaptação de José Celso Martinez Corrêa, Marcelo Drummond e do jornalista da Folha de S. Paulo, Nelson de Sá. Sexta e sábado, 21h; domingo, 20h. Teatro Oficina (rua Jaceguai, 520, Bela Vista, São Paulo, tel. 259-8405). Cr$ 900 (sexta e sábado) e Cr$ 700 (domingo). Estreou sexta-feira.

Quem assistiu ao espetáculo “Brincante”, que fez temporada em São Paulo ano passado e agora está em cartaz no Rio de Janeiro, conferiu um dos trabalhos mais bonitos do teatro nacional contemporâneo. O pernambucano Antônio Nóbrega encantou com a brasilidade mostrada no palco: um cadinho do folclore nordestino em meio à dura realidade de um povo, acostumado a sobreviver combatendo principalmente a fome.
“Brincante” já se mostrava com potencial religioso. O personagem de Nóbrega, o funâmbulo Tonheta, antes de mais nada, tinha fé na alegria de viver. O amor lhe movia montanhas. Um dos responsáveis pelo sucesso de “Brincante”, o artista plástico Romero de Andrade Lima, autor do belo cenário, agora brinda o público com uma montagem própria, “Auto da Paixão”, onde mistura teatro, artes plásticas e canto.
A idéia de “Auto da Paixão” surgiu quando Lima teve de criar uma encenação para a vernissage de uma exposição sua, realizada em maio. As três noites de apresentação se transformaram em sete, por causa da grande procura. Limam, então, decidiu montar uma companhia com As Pastorinhas, um coro formado por 12 meninas.
Elas percorrem 12 retábulos/esculturas de lima que representam a Paixão de Cristo, com narração (feita pelo próprio autor) e cânticos sobre a vida de Jesus. O espetáculo recria procissões, reisados e pastoris, resgatando o espírito da festa popular nordestina, combinando sagrado e profano.
“Auto da Paixão” é como uma procissão. O público acompanha o coro que percorre as obras de Lima, instaladas em pontos diferentes do galpão Brincante, uma cria de Nóbrega, em plena Capital. Guardadas as devidas proporções, a polêmica peça encenada na Igreja Santa Ifigênia.
O espetáculo de Romero de Andrade Lima só é prejudicado pelo excesso de espectadores. As cem pessoas tornam a movimentação das pastorinhas um tanto tensa. A cada cena, elas são obrigadas a se espremer entre o público para se deslocar.
Ademais, “Auto da Paixão” é um deleite para olhos e alma. O repertório é composto de toadas populares que Lima escutava na casa do tio Ariano Suassuna, mentor do movimento Armorial na década de 70. O clima barroco (cenários, iluminação, figurino) transporta a um estado delicado do ser, a uma contemplação do divino de perto. Um espetáculo imperdível.
Auto da Paixão – De Romero de Andrade Lima. Com As Pastorinhas. De quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Cr$ 200 mil (quinta a sábado) e Cr$ 250 mil (domingo). Teatro Brincante (rua Purpurina, 428, tel. 816-0575). Até dia 15 de agosto.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Quarta-feira, 21 de julho de 1993.   Caderno A – capa

Romero de Andrade Lima reflete brasilidade religiosa ao lado de suas 12 pastorinhas

 

VALMIR SANTOS 

 

Quem assistiu ao espetáculo “Brincante”, que fez temporada em São Paulo ano passado e agora está em cartaz no Rio de Janeiro, conferiu um dos trabalhos mais bonitos do teatro nacional contemporâneo. O pernambucano Antônio Nóbrega encantou com a brasilidade mostrada no palco: um cadinho do folclore nordestino em meio à dura realidade de um povo, acostumado a sobreviver combatendo principalmente a fome.
“Brincante” já se mostrava com potencial religioso. O personagem de Nóbrega, o funâmbulo Tonheta, antes de mais nada, tinha fé na alegria de viver. O amor lhe movia montanhas. Um dos responsáveis pelo sucesso de “Brincante”, o artista plástico Romero de Andrade Lima, autor do belo cenário, agora brinda o público com uma montagem própria, “Auto da Paixão”, onde mistura teatro, artes plásticas e canto.
A idéia de “Auto da Paixão” surgiu quando Lima teve de criar uma encenação para a vernissage de uma exposição sua, realizada em maio. As três noites de apresentação se transformaram em sete, por causa da grande procura. Limam, então, decidiu montar uma companhia com As Pastorinhas, um coro formado por 12 meninas.
Elas percorrem 12 retábulos/esculturas de lima que representam a Paixão de Cristo, com narração (feita pelo próprio autor) e cânticos sobre a vida de Jesus. O espetáculo recria procissões, reisados e pastoris, resgatando o espírito da festa popular nordestina, combinando sagrado e profano.
“Auto da Paixão” é como uma procissão. O público acompanha o coro que percorre as obras de Lima, instaladas em pontos diferentes do galpão Brincante, uma cria de Nóbrega, em plena Capital. Guardadas as devidas proporções, a polêmica peça encenada na Igreja Santa Ifigênia.
O espetáculo de Romero de Andrade Lima só é prejudicado pelo excesso de espectadores. As cem pessoas tornam a movimentação das pastorinhas um tanto tensa. A cada cena, elas são obrigadas a se espremer entre o público para se deslocar.
Ademais, “Auto da Paixão” é um deleite para olhos e alma. O repertório é composto de toadas populares que Lima escutava na casa do tio Ariano Suassuna, mentor do movimento Armorial na década de 70. O clima barroco (cenários, iluminação, figurino) transporta a um estado delicado do ser, a uma contemplação do divino de perto. Um espetáculo imperdível.
Auto da Paixão – De Romero de Andrade Lima. Com As Pastorinhas. De quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Cr$ 200 mil (quinta a sábado) e Cr$ 250 mil (domingo). Teatro Brincante (rua Purpurina, 428, tel. 816-0575). Até dia 15 de agosto.

Quem assistiu ao espetáculo “Brincante”, que fez temporada em São Paulo ano passado e agora está em cartaz no Rio de Janeiro, conferiu um dos trabalhos mais bonitos do teatro nacional contemporâneo. O pernambucano Antônio Nóbrega encantou com a brasilidade mostrada no palco: um cadinho do folclore nordestino em meio à dura realidade de um povo, acostumado a sobreviver combatendo principalmente a fome.“Brincante” já se mostrava com potencial religioso. O personagem de Nóbrega, o funâmbulo Tonheta, antes de mais nada, tinha fé na alegria de viver. O amor lhe movia montanhas. Um dos responsáveis pelo sucesso de “Brincante”, o artista plástico Romero de Andrade Lima, autor do belo cenário, agora brinda o público com uma montagem própria, “Auto da Paixão”, onde mistura teatro, artes plásticas e canto.A idéia de “Auto da Paixão” surgiu quando Lima teve de criar uma encenação para a vernissage de uma exposição sua, realizada em maio. As três noites de apresentação se transformaram em sete, por causa da grande procura. Limam, então, decidiu montar uma companhia com As Pastorinhas, um coro formado por 12 meninas. Elas percorrem 12 retábulos/esculturas de lima que representam a Paixão de Cristo, com narração (feita pelo próprio autor) e cânticos sobre a vida de Jesus.

O espetáculo recria procissões, reisados e pastoris, resgatando o espírito da festa popular nordestina, combinando sagrado e profano.“Auto da Paixão” é como uma procissão. O público acompanha o coro que percorre as obras de Lima, instaladas em pontos diferentes do galpão Brincante, uma cria de Nóbrega, em plena Capital. Guardadas as devidas proporções, a polêmica peça encenada na Igreja Santa Ifigênia.O espetáculo de Romero de Andrade Lima só é prejudicado pelo excesso de espectadores. As cem pessoas tornam a movimentação das pastorinhas um tanto tensa. A cada cena, elas são obrigadas a se espremer entre o público para se deslocar.Ademais, “Auto da Paixão” é um deleite para olhos e alma. O repertório é composto de toadas populares que Lima escutava na casa do tio Ariano Suassuna, mentor do movimento Armorial na década de 70. O clima barroco (cenários, iluminação, figurino) transporta a um estado delicado do ser, a uma contemplação do divino de perto. Um espetáculo imperdível.

Auto da Paixão – De Romero de Andrade Lima. Com As Pastorinhas. De quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Cr$ 200 mil (quinta a sábado) e Cr$ 250 mil (domingo). Teatro Brincante (rua Purpurina, 428, tel. 816-0575). Até dia 15 de agosto.