17.5.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 17 de maio de 1998. Caderno A – 3
VALMIR SANTOS
São Paulo – O diretor Oswaldo Gabrieli e seu grupo, o XPTO, já inscreveram o nome na história do teatro brasileiro com a marca da inventividade. Seus espetáculos são hipercoloridos com bonecos em formatos mais variados e estranhos, num exercício geométrico que tem mais a ver com o espírito lúdico do que propriamente com teorias.
“Buster, o Enigma do Minotauro”, um dos trabalhos mais premiados de 97, segue em cartaz no Teatro Popular do Sesi na Capital, com entrada franca. Até final de junho, dá tempo de assistir ao infanto-juvenil que prima pela beleza do cenário, dos figurinos e pelas atuações com ênfase na linguagem do cinema mudo.
O XPTO começa o espetáculo projetando numa tela trechos filmes do comediante americano Buster Keaton (1895-1966). As imagens, e branco, preparam o espírito do espectador – adulto ou mirim – para o que virá a seguir.
Trata-se da história do jovem Buster (Wanderley Piras), que se mete em várias confusões graças a um Minotauro, encarnado por dois atores (Sidnei Caria e Guto Togniazzolo), que vive atravancando seu caminho.
Uma das passagens mais engraçadas é quando o pobre Buster é encarcerado. No presídio, ele acaba driblando os presos antigos, que se metem a espertos e tentam aproveitar-se do novo hóspede da cela.
A montagem foi muito feliz em dividir o personagem em três. Além de Piras, Buster ganha dois clones interpretados por Angelo Madureira e Ednaldo Eiras. O trio responde por momentos hilários, em que a própria Anabela não sabe distinguir quem é seu namorado.
Como não poderia deixar de ser, Gabrieli presta uma homenagem também a Charles Chaplin, que abrilhanta ainda mais o universo cômico que “Buster” traduz no palco, recorrendo à técnica do clown.
São, ao todo, 12 atores em cena – desde jovens empenhados a nomes tarimbados, como Cleber Montanheiro e Dadá Cyrino, vindos de espetáculos musicais. Aliás, aqui o gênero é bastante explorado, com direito a coreografias, ainda que breves.
Predominam, no entanto, as aventuras de Buster, em formato que se aproxima bastante dos filmes em preto e branco – tudo – muito rápido, vapt-vupt, como num videoclipe -, apesar do colorido dos figurinos e do cenário, basicamente formado por painéis
móveis.
Em seus quase 15 anos de formação, o XPTO dá mais um exemplo de como a multiplicidade de linguagens (teatro, dança, música, bonecos e animação de objetos) pode ser concebida sem muito virtuosismo técnico. Em “Buster”, tudo flui com o rigor e a magia das caixas de soldados de chumbo.
Buster, O Enigma do Minotauro – Concepção e direção: Oswaldo Gabrieli. Com Grupo XPTO (Gerson Esteves, Helzer Abreu, Márcio Branco, Roberto Camargo etc). Recomendado para crianças a partir de 8 anos. Sábado e domingo, 11h e 14h. Teatro Popular do Sesi (avenida Paulista, 1.313, tel. 284-9787). Grátis (ingressos distribuídos com uma hora de antecedência). Espetáculos para escolas: tel. 284-4473. Duração: 75 minutos. Até 28 de junho.
10.5.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 10 de maio de 1998. Caderno A – 4
VALMIR SANTOS
São Paulo – Depois de romper a parceria de dez anos com Antunes Filho, no final do ano passado, J. C. Serroni, 47 anos,começou a tirar da prancheta seu sonho recorrente em 21 anos de palco: o Espaço Cenográfico.
Há três meses ele encontrou uma pizzaria abandonada anexa ao Teatro Eugênio Kusnet, a poucas quadras do Centro de Pesquisa Teatral (CPT), no Sesc Consolação; investiu R$ 31 mil do próprio bolso para reformas no prédio; e inaugurou na última terça-feira o seu laboratório permanente de cenografia, figurino, arquitetura teatral e outros elementos visuais. “Poucas pessoas no Brasil estão dispostas a fazer o que estou fazendo”, afirma Serroni a O Diário. “E faço não por mim, mas pela cenografia brasileira.” A seguir, os principais trechos da sua entrevista.
Diário – Por que deixou o CPT?
J. C. Serroni – Coincidiu, no ano passado, com a volta do Antunes para o seu método de ator. Eu não queria parar como meu trabalho de cenografia e já havia experimentado muita coisa lá com ele. Claro, poderia experimentar mais. Mas com minha bagagem toda, achava que para a cenografia eu tinha que fazer uma coisa mais individual. Se o Antunes está voltando para o trabalho fechado de ator, eu queria voltar para o designer, para a cenografia. Então, resolvi me afastar.
Diário – No programa de “Prét-à-Porter”, o novo espetáculo de Antunes, ele afirma que acabou a fase de “diretor de designer”. O que acha dessa definição?
Serroni – Eu não sei… O Antunes sempre foi muito inquieto. Em todo esse tempo que estive lá, ele sempre se preocupou muito com o trabalho do ator. Aí ele radicalizou mesmo. Antunes queria fechar seu método, um projeto que vem desde antes do CPT. A voz, o corpo, essa coisa toda… Não que eu queira fazer designer, decoração… Vou estar sempre preocupado com o ator também, uma coisa que aprendi com o Antunes. Só que existe também um outro mundo: a cenotécnica, o figurino, a arquitetura teatral. A minha formação é essa. Se eu deixar de fazer isso, que é o que sei fazer – dar aula de cenografia, fazer arquitetura de teatro, criar cenário, figurino -, vou entrar em conflito comigo.
Diário – “Prét-à-Porter” fez uma “faxina” na cenografia. Você se imagina trabalhando assim com Antunes?
Serroni – E não foi só na ceriografia. Radicalizou na iluminaçao, no som, no figurino e, segundo li, o Antunes radicalizou até com o trabalho dele para ficar mais distante, dar liberdade. Eu podia até continuar no CPT, de uma outra forma, mas não seria coerente. Lá é uma coisa do Antunes. A cenografia lá dentro vai ser sempre uma parte do todo. Eu preciso que a cenografia seja o todo. Neste momento, estou com a cabeça aqui no Espaço Cenográfico, esqueci um pouco o CPT. Mas continuo torcendo por ele, que afinal é o grande centro de pesquisa teatral no país.
Diário – Quando participou pela primeira vez da Quadrienal de Cenografia de Praga (87), você declarou que o Brasil estava pelo menos 20 anos atrasados. Evoluímos?
Serroni – A gente cresceu muito. Principalmente em relação à luz e à arquitetura teatral. Hoje, está se dando muita importância aos projetos de construção. Acabamos de ganhar três ótimos teatros: o Sesc Vila Mariana, o Alfa Real e o São Pedro, que foi reformado. E todos tiveram assessoria cênica.
Diário – Pode-se falar em uma linguagem cenográfica brasileira?
Serroni – O que a gente ouve fora do país é que a nossa cenografia tem muita liberdade, é sempre meio festiva. Cada espetáculo, cada autor traz um olhar diferente. Não é o caso da cenografia alemã, por exemplo, que tem uma linguagem muito fechada, ainda que boa; mas tudo é muito estanque. A brasileira não. Duas horas antes da estréia, o cenógrafo está lá mexendo. Nosso trabalho é mais vivo. Também somos elogiados pelo uso de materiais simples, como jornal, sucata, sobra de cenários; a gente transforma muita coisa. Claro que o Brasil é enorme para se falar em uma linguagem brasileira. Mas, pelo que se vê em São Paulo, Rio, Recife ou João Pessoa, por exemplo, nosso palco não tem grandes maquinismos, aquela coisa pesada.
Diário – Quais são as especificidades do seu trabalho?
Serroni – Eu sempre fui um cenógrafo preocupado com a infra-estrutura para a cenografia, para a iluminação, para o espaço teatral. Me preocupo muito com a formação, com a mão de obra. Mas o centro é a experimentação. O Espaço Cenográfico vem preencher isso: um lugar para juntar as pessoas na descoberta de formas, materiais e novos caminhos para as artes cênicas. Uma das metas iniciais, por exemplo, é agregar mais a iluminação à cenografia. Há uma certa distância entre os profissionais. Ainda encaramos a luz só como iluminação e não como espaço, o que já ocorre em outros países.
Diário – Você já cria figurinos e agora acena com a luz. Seria o caso de uma cenografia total?
Serroni – O ideal era que o cenógrafo fosse considerado um diretor de arte, coordenando toda a parte visual (cenografia, iluminação, figurino, maquiagem). Mas no teatro isso é muito difícil. A dez, 15 dias da estréia, não dá para você se dividir em quatro. Se o cenógrafo fizesse também pelo menos a iluminação, já seria muito bom. Mas a maioria pende mais para a criação de figurinos.
Diário – O próximo passo, então, é dirigir?
Serroni – Bem, pode ser um projeto para a quarta década da minha carreira [risos]. Eu tenho vontade, mas não quero ser apenas diretor de espetáculo. Seria fácil. Aprendi muito com o Antunes sobre a direção de atores e quero usar isso um dia.
Espaço Cenográfico tem caráter público (rua Teodoro Baima, 88, Centro, tel. 257-1115 ou 256-4619). Coordenação: J.C. Serroni. Curso – De agosto a dezembro, das 19h às 22h. Vagas: 15. Inscrições a partir de 1º de junho. Taxa: R$ 5,00 (mensalidade gratuita). Biblioteca – De terça a quinta, das 16h às 20h; sábado, das 14h às 18h. Exposição – Visitas aos sábados, das 14h às 18h.
Espaço Cenográfico tem caráter público
São Paulo – “É como um videotape: vai para frente e para trás, vocês é quem mandam.” Na introdução para a platéia, o encenador Augusto Boal faz a ponte do seu “teatro fórum” com o efeito “você decide” que toma a televisão de assalto. De certa forma, o encenador antecipou tudo isso.
Mas, ao contrário da participação virtual pelos “0900” da vida, aqui o espectador intervém de fato. Entra em cena na hora que quiser, substitui o ator em questão e representa como acredita que faria na vida como ela é.
Segmento do “teatro do oprimido” gestado pelo diretor carioca nos anos 70, o “teatro fórum” se distingue também por oferecer mais de duas opções. Se nove pessoas da platéia discordam da ação do personagem, então elas ganham vez e voz no palco.
Foi o que Boal mostrou no início da semana em São Paulo. Ele encerrou seu workshop de cinco dias no Teatro da USP com duas apresentações. Os 27 participantes criaram quatro cenas curtas abordando educação, violência urbana, solidão no meio do público e o padecimento de uma estrela clonada de Carla Perez, vítima da “ditadura do corpo”.
A platéia escolheu os temas educação e violência para intervir. Na primeira cena, o diretor de escola cobra da professora maior rigor na sala de aula e cumprimento do método clássico de ensino. Na segunda, dois meninos de rua praticam roubo e estupro de pessoas da classe média que, antes, tinham consciência social quanto aos excluídos.
O “teatro fórum” requer mínimos recursos,. O realismo predominou nas apresentações – sem cenário, iluminação, sonoplastia e tampouco grandes atuações.
Como Zé Celso, Boal gesticula muito, chega a “interpretar” para se fazer entender, conquistando a empatia da platéia. “O teatro do oprimido propõe várias portas em que todo mundo é artista, queira ou não queira”, continua explicando. “A gente pode, no presente, pensar o passado e inventar o futuro.”
Augusto Boal cria seu “você decide” de fato
São Paulo – Para uma cidade que não possui curso superior de cenografia – no Rio existem dois -, a Capital e as cidades vizinhas vêem no Espaço Cenográfico um alento que faz par com o CPT. Só que a iniciativa de J.C. Serroni tem um caráter mais institucional coordenado por Antunes Filho, no Sesc Consolação.
De olho nos profissionais da área e nos jovens que manifestam, no mínimo, curiosidade sobre o mundo da cenografia, o Espaço vai oferecer cursos, exibir vídeos e permitir acesso a uma biblioteca com 500 títulos, entre livros e revistas especializadas, nacionais e importadas.
O folheto mensal “Espaço Cenográfico News”, com tiragem de 2 mil exemplares, distribuído gratuitamente, vai preencher um pouco do vácuo editorial com informações sobre cenografia. Cada edição trará, por exemplo, o “cenógrafo do mês”. O primeiro perfil é de Tomás Santa Rosa Júnior, ou Santa Rosa. Ele assinou o “Vestido de Noiva”, de Ziembinski, em 1943, marco do moderno teatro brasileiro.
Uma exposição cenográfica vai ocupar permanentemente um dos corredores. Serroni dá a largada, mas depois abre para outros cenógrafos. As paredes do Espaço apresentam texturas, adereços e objetos suspensos oriundos das montagens que ele participou – dos 70 espetáculos do currículo, 11 foram no CPT.
A intenção, diz o cenógrafo, é situar o público – visitantes, alunos – num ambiente “vivo”, com direito a iluminação e sonoplastia, como se todos estivessem sobre um palco.
Também está programado um ciclo de palestras no Teatro de Arena Eugênio Kusnet, ao lado do Espaço.
LIVRO
J. C. Serrom também escreve livros. Para o segundo semestre, ele prepara “História Visual da Cenografia Brasileira”, um projeto da Funarte. Também dispõe de material suficiente para produzir uma história da cenografia nacional mais acalentada, idéia a ser apresentada em breve para alguma editora.
Paralelo aos livros e, agora, ao Espaço Cenográfico, ele continua fazendo o que mais gosta: criar cenários e figurinos. Dois espetáculos infantis em cartaz levam sua assinatura: “Chimbirons e Chimbirins” e “No Reino das Águas Claras”. Daqui a duas semanas reestréia o infanto-juvenil “O Homem das Galochas”.
E os convites, depois da saída do CPT, não param de chegar. Tem Ulysses Cruz com “Sábado, Domingo e Segunda”, do italiano Eduardo de Filippo. Vladimir Capella com “Clarão nas Estrelas”, do próprio, para o Teatro do Sesi. José Possí Neto com “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, do português José Saramago, no Rio. Para o ano que vem, Fauzi Arap com “Gota D’Água”, de Paulo Pontes e Chico Buarque, estrelado por Bibi Ferreira.
5.4.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 05 de abril de 1998. Caderno A – 4
Companhia carioca trata erotismo com poesia e vê o corpo como veículo de prazer e afeto
VALMIR SANTOS
São Paulo – Como falar em erotismo nesse prenúncio de milênio? Como falar de toque, tocando, num tempo em que as pessoas optam pelo sexo on linee e erguem muros em volta de si? São questões assim, pertinentes, que vão pela cabeça do espectador depois da sessão de “Volúpia”. A montagem da carioca Cia. Teatro do Movimento resgata o elo com o corpo enquanto instrumento de prazer. E o faz, é claro, enfrentando o falso moralismo que insiste em desprezar o que Deus lhe deu.
Afinal, “Deus não me fez até a cintura para o diabo fazer o resto”, como deduz uma das personagens, numa das citações brilhantes que pululam no espetáculo. O roteiro reúne trechos de obras de Adélia Prado, Hilda Hilst, James Joyce, Anaís Nin, Henry Miller, D. H. Lawrence, Sade, Verlaine, Cortázar, Moravia e outros nomes da literatura e do pensamento mundial que colocaram o sexo na pauta do dia e nem por isso o pintou com a tinta da publicidade que a tudo consome.
O objeto do desejo, aqui, é o corpo como veículo. O corpo “humilde”, despido de conceitos, idéias e couraças afins. “A indecência no cérebro se torna obscena”, avisa um personagem. “A castidade no cérebro é vício”, retruca um outro. E a língua passeia por aí afora, retratando o erotismo desde a mitologia grega até a filosofia moderna, sob o prisma da obscenidade e da pornografia.
Há espaço para tudo no jogo de palavras, gestos e movimentos: o lúdico, o escatológico, o onírico, o fantástico, enfim, variantes que dizem respeito à intimidade de cada um. O gozo é livre e honesto – eis uma bandeira possível para “Volúpia”.
Como em “A Lua Que Me Instrua” (1992), a diretora Ana Kfouri recorre à sensibilidade para ganhar o público. Mesmo nas passagens que poderiam fazer corar muita gente – palavrões, relações homossexuais, e sadomasoquistas, por exemplo -, tudo é conduzido com a “mão” do afeto sincero, da permissão para o encontro do outro (que também pode estar dentro de si).
Dispensando a narrativa linear, os quadros são entremeados por breves blecautes. Os atores da Cia. Teatral do Movimento cometem verdadeiros contorcionismos. Como o próprio nome diz, uma perspectiva coreográfica domina a movimentação e chega a desembocar em canções entoadas pelo próprio elenco.
Heitor Martinez Mello, Isabel Cavalcanti, Manilha Martins, Nadya Thalji e Pedro Brício dão atenção em dobro ao seu principal instrumento de trabalho: o corpo. Eles interagem com os contornos geométricos do cenário (orifícios, frestras) e redimensionam o olhar voyeur e pornô. Os figurinos – sim, eles existem! – foram inspirados na sensualidade das telas do pintor austríaco Klint.
Quando os atores simulam transas em cada espaço do cenário, explorando posições variadas, protagonizam um verdadeiro “Kama Sutra”. As imagens não chocam, mais uma vez, por causa do tratamento estético que não abre mão da poesia.
“Volúpia” é uma resposta à sociedade sexista de consumo. Dá um banho de interpretação nas montagens chínfrins que ainda insistem na gratuidade do nu como chamariz de bilheteria. Nos seus breves e consistentes sete anos, a Cia. Teatral do Movimento e sua diretora conquistaram lugar ao sol com muito suor e pesquisa. E, é claro, muita coragem.
Volúpia – Concepção e direção: Ana Kfouri. Assessoria técnica: Leonardo Sá. Com Cia. Teatral do Movimento. Figurino: Charles Moeller. Cenário: Afonso Tostes, André Costa e Sônia Barreto. Quinta a sábado, 21h30; domingo, 20h30. Centro Cultural São Paulo/Sala Jardel Filho (rua Vergueiro, 1.000, Paraíso, tel. 277-3611). R$ 12,00. Duração: 60 minutos.
Espetáculo ri da incomunicabilidade
São Paulo – A surpresa começa já no espaço em que o espetáculo é encenado: uma piscina. Vazia e coberta, é lá que tudo se passa. E as surpresas continuam, depois, pontuando do início ao fim. “Ladrões de Metáfora (Não Importa o que Eu Falar, Você Entende o que Quiser)” poderia dizer tudo com este título quilométrico. Mas a montagem diz e diverte muito mais.
O diretor Gustavo Kurlat – nome associado à música para teatro desde o final dos anos 80, trabalhando principalmente com o Tapa – mostra que realmente é bom de ouvido. As 22 cenas que escreveu são pequenas criações em que a sonoridade da palavra soma com o silêncio e dá em diálogos impagáveis.
É como se o espírito de Wood Allen baixasse na piscina d’A Casa, um dos novos espaços culturais da Capital. Com texto, direção e música em suas mãos, Kurlat tem pleno domínio lo espetáculo. Tomando como erferência a máxima de Ítalo Calvino de que “quem comanda o discurso é o ouvido”, ele desenvolve um amargo, ainda que cômico, inventário da incomunicabilidade.
Kurlat traça um painel das relações em todos os seus níveis: afetivo, familiar, amizade ou simplesmente individual, enquanto ser social. São personagens desnorteados, com seus pensamentos e códigos receptivos turvados pela poluição de idéias – para ficar no ramerrão semiótico que também tem lá sua surdez implícita.
De volta ao espetáculo, são esquetes ou performances nas quais o poder de síntese é exigido o tempo todo. Os quatro atores – Flávia Ferraz, Fábio Herford, Alexandre Edelstein e Vera Ferreira – dão conta do recado com muita inventividade: quer no tom predominante de farsa, quer nas cenas dramáticas que beiram o dramalhão. (Vale lembrar, o imaginário brasileiro está impregnado das telenovelas). Herford e Flávia, em especial, destacam-se também pela interpretação musical em números solos, provando que o talento de ambos se estende às cordas vocais.
Em certos momentos, a peça é um exercício de pura ironia. Como no quadro em que um homem e uma mulher, cada qual em sua vez, choram as pitangas na mesa de um bar. Nesses “intervalos” dramáticos, porém, a montagem titubeia e deixa escapar seu ritmo ideal – que é o do instalar dos dedos, estímulo e resposta, mesmo quando não se ouve um pio.
Mas o grande barato está no inusitado das situações – e de como elas são solucionadas. Do corte de cabelo que dura 15 segundos (a cabeleireira corta dois dedos do cliente, literalmente), ao tapa na cabeça do sujeito que pede para o fotógrafo bater a foto; das reticências infinitesimais que distanciam o casal em crise, à verborragia de boteco empregada pelos bêbados; do “portunhol” entre um galanteador argentino e uma moça brasileira, ao quiprocó semântico no qual maridos entediados explicam para suas mulheres o que vem a ser exatamente “impedimento” no futebol; enfim, é um desfile bem acabado da impossibilidade de se fazer entender diante do outro.
E mesmo quando o que se ouve do interlocutor entra por um ouvido e sai pelo outro, Kurlat insiste que é impossível que nada se assimile.
O ruído na comunicação interpessoal, como conseqüência da demanda tecnológica que avança a la Jetsons, está na ordem do dia. Em sua síncope litero-sonoro-gestual, o diretor e seus ótimos atores nos fazem rir do ridículo e da desgraça em que estamos embrenhados a cada celular que toca, bip que vibra ou e-mail que chega. Paradoxalmente, é refletindo e fazendo blague do distanciamento que “Ladrões de Metáforas” celebra a sua comunhão, o seu encontro com o público. Dá seu toque numa boa, sem meta-metáfora.
Ladrões de Metáforas (Não Importa o que Eu Quiser) – De Gustavo Kurlat. Figurinos: Isabela Teles. Terça e quarta, 21h30. A Casa (rua Coronel Irlandino Sandoval, 425, Pinheiros – altura do 1.754 da avenida Faria Lima, tel. 814-9711). R$ 15,00. Duração: 70 minutos. Até 6 de maio.
5.4.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 05 de abril de 1998. Caderno A – 3
VALMIR SANTOS
São Paulo – Já virou bordão: “Einstein estava certo…”. Quase 43 anos depois da sua morte, em abril de 1955, a comunidade científica continua confirmando teses que o físico e matemático alemão elaborou em vida mas não dispunha de nenhum satélite potente para provar suas idéias. É por essas, e por outras, que o monólogo “Einstein – Um Ato de Gabriel Emanuel” ganha sabor especial.
O ator Carlos Palma interpreta o texto de Gabriel Emanuel – pseudônimo do canadense Gordon Wiseman. Seu primeiro contato com a peça foi em 1995, quando assistiu à montagem chilena. Em princípio, Palma pensava em adquirir os direitos do texto para outro intérprete. Mas acabou, ele mesmo, quarentão, vivendo Einstein aos 70 anos. O resultado é tocante.
Einstein está prestes a participar de mais um daqueles jantares protocolares. Entre os seus chamados pela secretária Helen, que nunca vem, o personagem rememora, aos poucos, sua infância e juventude. Conta, por exemplo, como a bússola que ganhou do pai aos 5 anos, acamado, influenciou seu pensamento pelo resto da vida. Da mesma forma, a paixão pela música foi herdada da mãe, que lhe deu um violino que, pouco tempo depois, já estava tocando.
A ironia lhe era frequente. “Como meu desenvolvimento era retardado, eu era um adulto com mente de criança”, tenta se explicar o personagem. Aos 9 anos, não prestava atenção em sala de aula e vivia isolado pelos cantos, sem falar com ninguém.
Num cenário simples, composto por uma escrivania, uma poltrona e uma lousa, Einstein/Palma intercala o presente com o passado, mesclando biografia e idéias. Judeu, ele cita sua mágoa com o regime nazista alemão, que praticamente o expulsou da pátria em plena juventude. O físico chegou a ser convidado para ser presidente do Estado de Israel, mas não aceitou.
O monólogo inclui até uma explicação didática da Teoria da Relatividade, que publicou aos 26 anos – o Nobel de Física viria 16 anos depois, em 1921. A peça acerta em equilibrar aula e drama. Ou seja, não é um espetáculo propriamente escolar. O que está sendo representado é a vida e o pensamento de uma dos gênios da humanidade. Suas inquietudes sobre razão e intuição, em que ambas não se excluem, podem ser encaradas como verdadeiras lições de vida.
Em sua caracterização, que inclui a oxigenação dos cabelos e bigode, com o benefício da calva já proeminente, Carlos Palma é a incorporação perfeita de Einstein. É rigoroso na composição dos gestos, do corpo arqueado, do andar vagaroso, do olhar que brilha ansioso por desvendar os mistérios do mundo. A direção de Sylvio Zilber também acentua o trabalho do ator, vencendo o desafio do monólogo com tranquilidade.
29.3.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 29 de março de 1998. Caderno A – 3
VALMIR SANTOS
Curitiba – A melhor coisa do Fringe é o tiro no escuro, o sabor da aventura de ir ao teatro sem quaisquer expectativa. A mostra paralela que o Festival de Teatro de Curitiba inaugurou em sua sétima edição conseguiu atingir a meta saudável da diversidade. Houve espaço para tudo, como O Diário notou em pelo menos quatro das 32 peças que participaram do Fringe – nome importado do tradicional Festival de Edimburgo, que também abre suas portas para grupos que tenham coisas interessantes a dizer; ou melhor, a encenar.
A montagem de “Killer Disney , por exemplo, trouxe para o palco brasileiro o primeiro texto do inglês Philip Ridley, escrito em 1990. É uma história, no mínimo, perturbadora. Os jovens Presley (Ivan Cabral) e Haley (Andressa Medeiros) são dois irmãos que vivem sozinhos depois da morte dos pais. Em casa, isolados na bolha que inventaram para si, eles se escondem do medo do mundo exterior. Para suprir a resistência, se alimentam quase que exclusivamente de chocolate.
Aos poucos, os irmãos vão desnudando seus horrores. A narrativa é escatológica, beira o teatro pânico do qual o dramaturgo espanhol Fernando Arrabal é um dos expoentes (“Jovens Bárbaros de Hoje”). A doce e angelical Haley, por exemplo, conta sua escalada à estatua de Cristo, fugindo de uma matilha. Os cães rosnavam ao pé do monumento, enquanto ela beijava os lábios frios do Salvador.
Presley, por sua vez, descreve como comprou uma cobra verde, feito cor de grama, e a mastigou depois de fritá-la. As imagens de “Killer Disney” são poderosíssimas. O autor é devassador. Um terceiro personagem, Cosmo Disney, surge para aumentar ainda mais o pesadelo dos irmãos. Entre os desejos mais primitivos, a sexualidade latente e prisão do imaginário, a peça é uma crítica feroz ao isolamento do homem moderno.
“Killer Disney” uniu a Companhia de Teatro Os Satyros, sediada em Lisboa, e o grupo paranaense Resistência de Teatro. A direção é assinada por Marcelo Marchioro. A montagem transmite a atmosfera etérea do texto; as interpretações são viscerais, no limite da loucura em que os personagens estão metidos.
Outro destaque do Fringe foi “A Perseguição ou O Longo Caminho Que Vai de Zero a Ene”, com a paranaense Cia. do Drama 2. João Paulo Leão dirige e contracena com Hélio Barbosa no texto de Timochenco Wehbi.
E uma peça coerente com a abordagem existencial – e social, por extensão – que Wehbi imprime em seus textos. Na relação do outro com o mundo que o cerca, Zero e Ene fazem como Uroborus, a cobra mitológica que engole o próprio rabo. Leão e Barbosa estão à vontade no palco; estabelecem paralelismo nas falas, nos gestos, na ocupação do palco que traz latões amontoados como cenário. O silêncio beckettiano, o mergulho no vazio das almas, transformam o espetáculo em uma experiência intimista, na qual a palavra ecoa com dor e lirismo.
Em “Cara Metade”, o Caos & Acaso, outro grupo de Curitiba, encena um dos textos pouco conhecidos de Flávio de Souza (“Fica Comigo Esta Noite”, “Repetition” e “De Pernas Pro Ar!”). Trata-se de uma incursão do autor pelo mesmo tema que atraiu o francês Roland Barthes no clássico “Fragmentos de um Discurso Amoroso”, livro que já recebeu algumas adaptações para o palco.
Estão lá as neuroses comuns dos enamorados, como a angústia da espera, o ciúme e a perda amorosa. “Cara Metade”, o título, é atribuído à dupla personalidade que acomete a todos; diapasão que abriga a disputa entre razão e intuição. O tratamento do diretor Chico Penafiel, que também encabeça o elenco, beira o do teatro infantil, com direito a figurinos coloridos e anjinhos saltitantes. É uma farsa descomprometida, que se não vai além do olhar raso do tema, deve-se muito ao texto pouco feliz de Souza.
Como se disse, Fringe também é susto. E um deles foi “Dois? Somente Um!”, de Pedro Pires, que também assina a direção e participa do elenco. O que se viu no festival foi um engodo, um espetáculo distante do mínimo para se levar ao palco. Nas desilusões e embates de casais em crise, a rotatividade dos seis atores se assemelha a um jogral escolar. As coreografias são preguiçosas, repetitivas.
Sob a justificativa de “falar com a maior simplicidade do mundo”, as interpretações são de um naturalismo fácil. Realmente, os atores parecem que estão falando em um boteco ou numa sala de estar. Mas o palco, convenhamos, prescinde de brilho na fala, de verdade – o que falta em “Dois? Somente Um!”.
Enfim, o Festival de Teatro de Curitiba chega ao seu sétimo ano com a certeza de que o Fringe veio para ficar. O leque de estilos, de trabalhos experimentais, de grupos que ousam dar um passo além – pelo menos a maioria deles – resulta em riqueza maior da mostra paralela. Dá gosto participar da maratona (sessões às 18h e 24h), sobretudo pelas gratas surpresas.
29.3.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 29 de março de 1998. Caderno A – 4
VALMIR SANTOS
Curitiba – É inerente da arte do teatro transcender ao espaço no qual ele acontece. Depois do último sinal, importa o “vôo” dos espectadores. E isto só se dá quando a magia é de grande monta. Como em “Divinas Palavras”, uma das melhores atrações do 7º Festival de Teatro de Curitiba – e que poderá ser vista em São Paulo de amanhã até o dia 9, em temporada gratuita no SESC Consolação.
O texto do dramaturgo espanhol Ramón Del Valle-Inclán (1866-1936) ganhou adaptação de dois compositores expressivos da música regional brasileira: Xangai e Elomar. O elenco, por sua vez, é formado por atores baianos. E a direção é da jovem alemã Nehle Franke. Essa mistura de raízes contribui para o caráter universal da obra, destacado com beleza e espanto em cena.
A partir do texto amargo de Valle-Ínclan, no qual cada ser humano parece predestinado à dor, porque amor de perdição é armadilha e partilha de herança é ambição desmesurada, capaz de desgraçar toda uma família, enfim, a partir desse olhar impiedoso do autor, a montagem encontra a si mesma, incorporando seu filete de humor em pleno ritual.
“Divinas Palavras” tem o aleijadinho Laureano (Fábio Vidal) no centro da disputa dos tios. Ou melhor, nem tanto ele, Laureano, um “fardo” a grunir boa parte do tempo. O que se disputa, cruelmente, é o carrinho de mão, o “berço” no qual o pobre coitado é levado para cima e para baixo.
O nonsense em torno da herança culmina na morte do aleijadinho, na interpretação ao mesmo tempo assustadora e encantadora de Vidal, traduzindo em desespero e ódio cada músculo retesado do corpo, mais o olhar esbugalhado, a voz esgarniçante. Em estando morto, Laureano não perde a condição de “moeda”.
“Três dias na porta da igreja rendem mais do que o dinheiro do enterro”, dispara a garota Simoniña (Cibele de Sá), carregando ligeiro o falecido no carrinho para esmolar. A miséria em seu grau mais elevado; a exploração não cessa nem depois do último respiro.
A peça confronta ainda a noção de pecado com a traição de Mari-Gaila (Andréia Elia). Depois de conseguir parte da “herança”, ela se deixa seduzir pelo saltimbanco Sétimo Miau (caco Monteiro) e trai o seu marido, o sacristão da aldeia. Como Madalena, Mari-Gaila é perseguida pela comunidade e o espetáculo termina com a frase bíblica, desafiando àquele que não cometeu pecado a atirar a primeira pedra.
“Divinas Palavras” é um espetáculo que comove pela sua sinceridade. Há uma riqueza corporal, uma inventividade constante que brota do corpo dos atores. Como nos personagens construídos por Elydia Freire (Poca Pena) e Evelyn Buchegger (Marica del Reino), em que a caracterização é minuciosa, de conteúdo ancestral, antropológico.
Tal perfil também se enquadra nos figurinos e adereços de Moacyr Gramacho, nos bonecos de Olga Gomez e na cenografia de Ayrson Heráclito e Haroldo Garay, que integra a tudo e a todos com fluência rara.
A platéia giratória conduz o olhar do espectador como uma câmara cinematográfica. Numa das sequências mais impressionantes, o giro acompanha um grupo que persegue Mari-Gaila por entre as cercas. A rusticidade do espaço, com vários ambientes – ora uma tenda, ora um descampado, por exemplo – alcança também a expressão oral. As falas pertencem à tradição de quem vive nos confins dos sertões, com seus códigos específicos, na maioria das vezes evocando a natureza. Daí, a remissão imediata à peça-irmã “Vau da Sarapalha”, do grupo paraibano Piollin, baseada na obra homônima de Guimarães Rosa.
Xangai, Elomar, Nehle Franke e os vibrantes atores baianos captaram de Valle-Inclán a universalidade pungente. É um espetáculo que coliga o sofrimento brasileiro, de ontem e de hoje, com o sofrimento de vários povos. O choro da sanfona e o cantochão da cantora que costura as cenas representam o lamento de uma humanidade que beija o rosto da morte ao mesmo tempo em que foge dela. Os artifícios para viver são muitos. “Divinas Palavras” não prega juízo de valores, não quer transmitir mensagens. Faz, de bom tamanho, o seu recorte lírico e cruel da pequenez que habita os corações dos mortos-vivos que perambulam por aí, Brasil adentro.
Divinas Palavras – De Ramón del Valle-Inclán. Tradução: Carlos Roberto Franke. Adaptação: Elomar e Xangai. Direção: Nehle Franke. Com Ana Paula Bouzas, Caica Alves, Katia Leal, Rino de Carvalho Inácio e outros. Estréia amanhã, 21h. Terça a sábado, 21h; domingo, 19h. Sesc Consolação/Salão Verde (rua Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, tel. 256-2322). 90 lugares. Grátis (retirar convites com antecedência). Até 9 de abril.
Matheus acentua humor em “Orgulho”
Curitiba – Como em “Deadly”, apresentada no ano passado, a Cia. do Circo Mínimo – leia-se Rodrigo Matheus – voltou ao Festival de Teatro de Curitiba com um espetáculo no qual o ator passa boa parte do tempo suspenso no ar. Matheus segue na sua pesquisa do espaço aéreo, que vem desde “Prometeu Acorrentado”, cerca de dois anos atrás. Agora, é a vez de “Orgulho”, dividindo a cena com o músico e ator Thibaut Delor.
E a presença deste, aliás, o diferencial em relação às montagens anteriores. A presença de Delor coincide com maior espaço para o humor. Em “Orgulho”, aquela densidade recorrente do drama e da tragédia cedem espaço para o lúdico, sob direção de Cala Candioto.
Matheus surpreende ao explorar sua veia cômica, brincando com o ego inflado do seu personagem. A caricatura gay é o ápice da ruptura que o ator insinua em seu novo trabalho.
O texto de “Orgulho” tem como eixo o conto homônimo de Rubem Fonseca. A impotência do homem diante de Deus – este sim, onipotente, como quer seus seguidores – espelha o esforço do trapezista na missão de alcançar o status de herói.
Enquanto ele (Matheus) mostra seu virtuosismo no ar, retorcendo músculos aqui e ali, com muito suor, o violoncelista (Delor) e seu inseparável instrumento servem como contraponto. A coreografia assinada por Sandro Borelli faz uso sobretudo do contato improvisado entre os corpos. A música que ecoa das cordas, ao vivo, constitui ela também um elemento da narração.
Muito mais do que um retrato da ambição humana diante da construção do mito, do herói -cita-se, por exemplo, a carta de Getúlio Vargas que “saiu da vida para entrar para a história” – o que se destaca em “Orguho” são os seus momentos cômicos.
Neles, a interpretação combina com o espaço e dinamiza a relação com o público. Um caminho que Rodrigo Matheus e sua Cia. Circo Mínimo já provaram que têm cacife para investir muito mais.
Fringe veio para ficar, garante diretor
São Paulo – Num balanço prévio da 7ª edição do Festivai de Teatro de Curitiba (FTC), o diretor de comunicação, Leandro Knopfholz, 24 anos, avalia positivamente os resultados da primeira mostra paralela. O Fringe, como foi batizada a mostra, inspirada no Festival de Edimburgo (Inglaterra), reuniu 32 peças e teve desde platéia reduzida a três, quatro pessoas, até casas lotadas (40, 50 pessoas). Ou seja, a freqüência do público reflete a própria diversidade do painel que foi apresentado (leia na página 3 a crítica de alguns espetáculos acompanhados por O Diário).
“O Fringe veio para ficar”, garante Knopfholz. Ele destaca principalmente o empenho dos próprios grupos em cuidar das apresentações com esmero – alguns chegando a produzir programas de invejar os participantes da mostra oficial. Com uma taxa de R$ 50,00, os grupos interessados tiveram direito ao teatro e à divulgação da montagem.
A partir do próximo ano, o diretor quer ampliar a faixa do horário alternativo (sessões às 18h e 24h) para o período da manhã. A intenção é descongestionar as noites, que registraram quatro espetáculos seguidos, entre mostra oficial e paralela. O diretor estima que, em seus 11 dias, o festival atraiu um público de cerca de 60 mil pessoas.
Knopffiolz concorda que foi um equívoco a apresentação de “Arlechino, Servidor de Dois Patrões”, pela Cia. Teatro Di Stravaganza (RS), na abertura do festival deste ano, “O talento da companhia é inegável, tanto que foi selecionada para a mostra oficial.
Mas o espaço não foi adequado”, reconhece o diretor. Na sua opinião, para uma peça funcionar na Ópera de Arame é necessário que utilize muitos recursos visuais e seja expansiva. “Arlechino”, ao contrário, era intimista e foi diminuída pelo gigantismo do espaço.
Para o próximo ano, a única certeza é a inclusão de mais uma atração internacional na programação. “Agulhas e Opio” (Needles and Opium), que introduziu o teatro do diretor canadense Robert Lepage no Brasil, foi uma das grandes sensações do festival.
28.3.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 28 de março de 1998. Caderno A – capa
“O Crime do Dr. Alvarenga” reflete o talento de seu autor para cair no gosto do público
VALMIR SANTOS
24.3.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 24 de março de 1998. Caderno A – capa
Walderez de Barros e Luís Melo em seus monólogos emocionam o público no FTC
VALMIR SANTOS
Curitiba – Waiderez de Barros (“Tu e Eu”) e Luís Meio (“Nijinsky”) interpretam monólogos neste 8º Festival de Teatro de Curitiba. A programação traz ainda Iara Jamra (“O Caderno Rosa de Lori Lamby”), que estreou ontem. O formato costuma receber críticas, quer pela suposta facilidade em montá-lo em tempos de crise econômica, quer pela exigência maior da entrega/atenção do público, esse ser flutuante cada vez mais acostumado à fácil digestão de entretenimento.
Mas tudo isso ainda é muito pouco para relegar o monólogo. Enfrentar personagem e platéia sozinho é dos maiores desafios que um ator pode registrar no currículo. Walderez de Barros e Luís Melo, cada um a seu modo, fazem um libelo à interpretação solitária nos espetáculos que chegam a São Paulo no mês que vem.
Em “Tu e Eu”, Walderez traz à cena a palavra do afegão Rumi (1207-1273), um mestre versado em filosofia e poesia que legou para a humanidade uma obra repleta de lampejos líricos e espirituais. “Apenas somos quando em nada nos tornamos” – eis um exemplo da reflexão que Rumi propõe na reverência a seu interlocutor, que pode ser um deus, uma mulher, um homem, não importa. Embriagado pelo outro, o personagem evoca a energia solar ou lunar para declarar seu amor universal e incondicional.
Walderez de Barros recupera o olho no olho do espectador, um gesto cotidiano tão elementar quanto distante dos palcos contemporâneos. O prazer da palavra, da trova, toma conta do espaço. Vestida em terno e calça cinzas, divagando entre as pedras, a atriz cativa o espectador com um encanto arrebatador.
O diretor Jorge Takla deposita tudo na atriz, suavizando cenário e luz em favor da poesia. Quem viu Walderez em outro monólogo recente, interpretando e cantando versos do poeta francês Jacques Privet, sabe do poço de energia que ela é. Em “Tu e Eu”, temos simplesmente uma intérprete que faz jus à poderosa mensagem de Rumi em sua esperança na força transformadora do homem e – do teatro, por que não?
Já em “Nijinsky”, a cenografia, a iluminação e a música funcionam mais do que elementos de apoio – elas dialogam o tempo todo com Luís Melo, dirigido pela dupla Rosella Terranova e Ciáudia Schapira.
O monólogo é baseado nos cadernos que o bailarino russo escreveu compulsivamente, por volta dos 29 anos, antes de ser internado na “casa de loucos”, como diz o texto. Não é propriamente uma biografia (pinçela o relacionamento com a mulher, o rompimento com Diaghilev, seu professor).
“Nijinsky” expõe o homem por trás do mito, a loucura sã por trás da fachada de “bobo da corte” que o personagem assumiu para como que despistar os desafetos burgueses do início do século. Um Van Gogh, um Arthur Bispo do Rosário.
Impossível não enxergar na interpretação de Melo os resquícios da fase com Antunes Filho. Está lá impregnado, por exemplo, um ensandecido Macbeth. O ator encontra no seu Nijinsky terreno propício para uma expressão corporal mais acurada afinal, estamos falando de um dos gênios da dança mundial.
É assim que Melo vai preenchendo todo o espaço do palco, se enlaçando nos panos do cenário, saltitando nos quatro cantos, sempre no limite da consciência que precede a loucura. Ao contrário da imobilidade e parcimônia de “Sonata Kreutzer”, pulsa aqui o devaneio, o instinto, a porção anima que referenda Kazuo Ohno – não à toa, ele surge com um vestido rendado que remete ao dançarino japonês na célebre coreografia “La Argentina”. Enfim, um Melo como nos bons tempos.
15.3.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 15 de março de 1998. Caderno A – 4
VALMIR SANTOS
São Paulo O “laboratório”, como é definido no meio teatral o período em que o ator sai à cata de conteúdos internos e externos para compor seu personagem, não raras vezes proporciona bons momentos no palco. Nesse exercício de decantação, é imperativo sondar os confins da alma, peregrinar por caminhos d’antes não percorridos, trazer à superfície da consciência – ou não – a emoção em seu estado bruto. Considerando a interpretação de Diogo Vilela em “Diário de Um Louco”, sua viagem pessoal foi de uma riqueza tremenda. Única, intransferível, trata-se de uma dádiva dos deuses do teatro, reservada àqueles jque se atiram sem rede na fase de pré-montagem.
Na pesquisa sobre o personagem do conto do escritor russo Nikolai Gogol (1809-1952), Vilela foi visitar manicômios. Sentiu na pele a lida de seres humanos com a irrealidade cotidiana. Numa entrevista recente, a psiquiatra Nise da Silveira, fundadora do Museu de Imagens do Inconsciente, no Rio de Janeiro, se questionava: “Quem sabe o que acontece no imenso mar do inconsciente? Quem dizer que sabe, este sim é louco”. Pois Vilela chegou bem perto na busca da insanidade e do carisma de Popritchitchine um funcionário público do século passado, angustiado numa repartição kafkiana.
Em suas anotações, o sujeito, vai relatando as mazelas do seu chefe, que goza do poder. Popritchtchine queria ser um general, um governador, um intendente, quem sabe. Mas não. Está ali, metido na “fauna de burocráticos fétidos”, como ele define os coleguinhas de repartição.
Não bastasse a submissão social, o personagem amarga um amor platônico pela filha do chefe. O sentimento é tão desconcertante que o leva a estabelecer uma relação afetuosa com o cachorrinho da moça. Sem título de nobreza, sem dinheiro, só lhe resta o diálogo imaginário com o cachorrinho para quem declara seu amor incondicional por Sofia.
A solidão com o papel, no qual “deita sua pena”, culmina com sua elevação a rei da espanha. A despeito da autoproclamação, em que sobe na mesa do escritório e encara os demais como seus súditos, Popritchitchine é encaminhado para um manicômio. Aos poucos, o grau de esquizofrenia é proporcional ao seu estado de consciência.
Preso à camisa-de-força, aquele mero empregado, ainda assim, traduz a surra nas costas, com pauladas, como se fosse ação de um inquisidor. Nem a crua dor de um bastão o demove da liberdade imaginária.
Diogo Vilela perpassa a via crúcis de Popritchitchine expondo a leveza e agudeza com que a loucura dota os visionários. Cita-se Van Gogh ou Artaud, por exemplo. Aliás, paira em “Diário de um Louco” o espectro do monólogo histórico de Rubens Corrêa, já falecido, para o francês que deu à luz o “teatro da crueldade”. Não se comparam, mas se ligam pelo tema.
Entre a dor da impossibilidade humana diante de algumas forças da vida, e a dor do grito infinito da alma, Vilela não sucumbe ao drama total. Há brechas para o humor e ele aproveita muito bem esses momentos. Como nas confissões entre o personagem e o “sr.” cachorrinho.
Mas o Gogol que surge aqui não é o mesmo da comédia política (pós-revoluçãO russa) “O Inspetor Geral” (1936), sua obra-prima, escrita quatro anos antes de “Diário de Um Louco”. Este é um texto perturbador. E um espetáculo tanto quanto.
Adornado pela coroa de garfos, uma referência ao artista plástico Arthur Bispo do Rosário, outro que transcendeu à loucura, Diogo Vilela constrói gestos e movimentos dissociados de seus trabalhos anteriores – notadamente “Solidão, a Comédia”.
Seu suporte está no olhar, no corpo que ocupa o espaço cênico dilatando a sua expressão. Parece olhar a loucura nos olhos. Neste monólogo, compete a ele, ator, dar conta também dos desenhos físico e orgânico projetados pelo texto. “Enxergamos” o cachorrinho ao seu lado, sim, quando ele fica de quatro e estabelece uma “conversa” de igual para igual. O cenário subjetivo e extemporâneo de Beli Araújo também não faz sugestão ao escritório, estimulando o leque imaginário.
O diretor Marcus Alvisi não dilui a dureza do drama e tampouco o florea. Como Diogo Vilela é um ator com forte apelo cômico, a montagem não desprezou esse quinhão. Entre as concessões, de um lado e de outro, o resultado é um monólogo que consegue dar seu recado poético, sem o cerco literário.
No silêncio introspectivo da platéia, magnetizada pela presença de Vilela/Popritchitchine, conduzida ainda por uma trilha musical fabulosa (Tchaikovsky, Bruck), enfim, a cena compartilha também se reveste de um pouco da experiência que o ator viveu antes de chegar ao seu personagem. Em pouco mais de uma hora, somos atingidos pelos devaneios daquele funcionário que ousou ir além numa sociedade de parasitas. É atordoante.
Diário de um Louco – De Nikolai Gogol. Tradução: Luis de Lima. Dramaturg: Robert de Cleto. Direção: Marcus Alvisi. Com Diogo Vilela. Figurinos: Kalma Martinho. Quinta a sábado, 21h; domingo, 18h. Teatro Cultura Artística (rua Nestor Pestana, 196, Centro, tel.258-3616). R$ 25,00 e R$ 30,00 (sábado). Duração: 70 minutos.
8.3.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 08 de março de 1998. Caderno A – 4
VALMIR SANTOS
São Paulo – Espanta a avalanche de denúncias estampadas ultimamente em manchetes. São proporcionais à impunidade. O Brasil está repleto de casos insolúveis – de Brasília aos “brasis”. Essa overdose de falcatruas poderia até depor contra a peça “Caixa 2”. Por um momento, o espectador, entuchado da realidade política, não agüenta mais falar de Collor, CPI dos precatórios, enfim, dessa ciranda que não dá em nada. Mas estamos numa comédia de Juca de Oliveira, com um bom elenco, estrelado pelo próprio e por Fúlvio Stefanini e Cláudia Mello. E aí, não tem jeito: o talento reina absoluto.
Juca de Oliveira foi buscar em outra peça sua, “Motel Paradiso”, nos anos 80, a inspiração para retomar a comédia de fundo político-social. Espécie de raio-X do País, “Caixa 2” vai além da perspectiva história em que vivemos. Oliveira constrói personagens que têm carisma, densidade psicológica, se sustentam por si só. A despeito da concretude dos mecanismos bancários, financeiros, a peça diz a que veio com os sonhos frustrados, os ideais vendidos, a sem-cerimônia de quem dá as cartas no jogo do poder.
O empresário Luiz Fernando (Juca de Oliveira) e o gerente Roberto (Fulvio Stefanini) possuem caráter distintos. O primeiro é movido pelo vil metal. Pouco lhe importa o outro. Quer o lucro, a vantagem a qualquer custo. Roberto, não. Ele acredita na dignidade do trabaiho, veste a camisa da empresa, faz o seu arroz-com-feijão e se dá por feliz – até ser despedido depois de 22 anos de suor.
Nessa gangorra entre bem e mal, “Caixa 2” perfila, aos poucos, os demais tipos da história. Cláudia Mello é a mulher de Roberto. Aliás, é a “mulher” da peça. Cabe a ela furar o bloqueio masculino do mundo dos negócios e ditar as regras – “O dinheiro é meu!”, brada a certa altura. Depois vem o seu filho (Petrônio Gontijo), que também joga no seu time para driblar os vilões. E tem ainda o assessor não menos inescrupuloso do empresário (Cassiano Ricardo) e a secretária do patrão (Suzy Rêgo).
O corre-corre é por conta dos R$ 10 milhões que o empresário captou em suas negociatas (o manjado caixa dois). Para se desviar dos olhos da Justiça, ele deposita o dinheiro na conta da sua secretária, depois de também lhe prometer algum. O azar é que o dinheiro vai parar na conta corrente negativa da mulher de Roberto, então despedido pelo mesmo Luiz Fernando.
Na tentativa de reaver sua pequena fortuna, o empresário tenta subornar Deus e o mundo. Mas a família de Roberto, tipo classe média baixa, não arreda pé. Só devolve o dinheiro se o ex-patrão deixar pelo menos 40%. Como pano de fundo, surgem os pequenos dramas pessoais.
É uma comédia de atores. Fulvio Stefanini faz um Roberto típico das comédias italianas -felliniano até. Já virou marco da temporada a cena em que o personagem refastela-se na poltrona e, ainda assim, sem ação alguma, sem dar um pio, faz a platéia gargalhar. Sua expressão sempre dissimulada, como se a história não fosse com ele, lhe garante a empatia.
O empresário de Juca de Oliveira também é de um sarcasmo atroz com suas sentenças lapidares, tais como: “Se a Justiça não autorizar a minha candidatura, só me restam a Casa Branca ou a casa de Collor em Miami” e “Ninguém vai preso neste País por dinheiro”. É histriônico na medida certa.
Comediante nata, Cláudia Mello desfila à vontade no palco. Vai à forra na condução dos seus homens – marido e filho. Petrônio Gontijo, Suzy Rêgo e Cassiano Ricardo completam um time coeso, onde todos têm espaço para fazer valer seu dote de bom intérprete.
E são eles, os atores, que o diretor Fauzi Arap mais uma vez privilegia em cena. Em cartaz também com “Santidade”, ele tem pleno domínio ao tratar o drama ou a comédia com isenção incomum. Arap tem o mérito de diluir a figura do diretor, de se “esconder” no palco, para deixar vir à luz o teatro em sua essência. É uma virtude dos grandes homens do teatro.
Mais simples e funcionais ainda, em se tratando de um espetáculo nos moldes do chamado “teatrão”, são os cenários e os figurinos de Márcio Medina. A cenografia, junto com a iluminação de Laura Figueiredo e Arap solucionam o espaço cênico – a divisão do escritório e da casa – com um tratamento perfeito. Não há o blecaute constante, mas uma exigente e perfeita simultaneidade de cena.
Na sua perspectiva às vezes ingênua, às vezes contundente, sem nunca perder o fio do humor desbragado, sem culpa e sem medo de ser feliz, cutucando os donos do poder que constroem prédios como castelo de areia. “Caixa 2” resulta num dos melhores momentos da comédia brasileira nos anos 90.
Caixa 2 – De Juca de Oliveira. Direação: Fauzi Arap. Com Oliveira, Fulvio Stefanini, Suzy Rêgo, Cassiano Ricardo, Petrônio Gontijo e Cláudia Mello. Quinta, 21h; sexta, 21h30; sábado, 20h e 22h; domingo, 19h. Teatro Jardel Filho (avenida Brigadeiro Luis Antônio, 884, Bela Vista, tel. 605-8433 ou 607-3364). R$ 20,00 (quinta), R$ 25,00 (sexta e domingo) e R$ 30,00 (sábado). Duração: 90 minutos. Temporada por tempo indeterminado.
“Espumas Flutuantes” voa, mas não consegue achar equilíbrio
São Paulo – O retrato de Castro Alves, quando jovem, lembra o de Oscar Wilde. Mas as semelhanças podem ser mais profundas. Tal qual o dândi inglês, o escritor baiano também fez da sua existência uma eferveção poética literal. Suas inquietações estimularam muitos corações e mentes – da época e de hoje. O musical “Espumas Flutuantes – O Vôo do Gênio” vai de encontro ao espírito libertário desse homem que viveu no século passado e continua fazendo suas palavras se apoderarem dos nossos sentidos com intensidade incomum.
Musical talvez não seja a definição correta. Um recital, quem sabe. O certo é que a montagem moldura o verbo com tanto esmero que a poesia de Castro Alves chega estalando, fluindo na boca e nos corpos libidinosos do elenco. O lirismo é tocante.
Francamente aberto à infinita contribuição das sensações humanas – leia-se Dionísio até à medula -, o espetáculo é visionário na medida em que pode. Ou seja, transcendendo aos limites do palco e, paradoxalmente, se perdendo nas várias possibilidades que isso implica.
Os 13 poemas extraídos do único livro publicado em vida, “Espumas Flutuantes”, são cantados e interpretados com pungência. Há momentos brilhantes, como nas cenas iniciais, quando o elenco é um cardume em dispersão, uniformizando seus contrastes, jogando com o público, incitado-o a digerir a poesia como se fosse o mel que desce macio pela garganta.
Mas o espetáculo desanda depois. Estreou sem estar pronto. Falta-lhe o ritmo. Os altos e baixos ainda são gritantes, inclusive entre os atores. Escorregões na fala, na sonoplastia, na iluminação, enfim, minam aos poucos a beleza cênica que se tenta construir.
A vantagem do ator e diretor Pascoal da Conceição, presença ativa nas peças de José Celso Martinez e seu grupo Uzyna Uzona, é de que “Espumas Flutuantes”, o espetáculo, já encontrou sua razão de ser. A narrativa que entremea dramatizações, por exemplo, funciona sem nenhum prejuízo. Ao contrário, os quadros seguem uma coerência autobiográfica.
Há a liberdade para o vôo, que passa pela percussão musical (Luiz Gayotto), em simbiose com os objetos de cena – e de platéia -; passa pelos figurinos criativos e bem desenhados (Val Barreto); passa pela evocação feminina de Elis e Janis (aliás, ressalta-se a força conjunta das sete mulheres do elenco); passa pela celebração do espaço e do corpo que nele atua. O rito está garantido. E, com ele, a poesia das palavras, que insistem: “Como um pássaro, o coração do morto volta para o ninho”.
O problema da montagem é de ordem puramente técnica. De outro modo, é difícil entender por quê tanta energia é empregada em vão. Já que se chegou à cristalização dramática da poesia de Castro Alves, seria o caso de se voltar, agora, para as arestas que estão aí, por vezes expostas grosseiramente. Às vezes, é preciso ter os pés no chão para voar.
Espumas Flutuantes – De Castro Alves. Roteiro e direção: Pascoal da Conceição. Com Monica Henriques, Dulcinéia Dibo, Vanessa Frigo, Daniela Jaime-Smith, Lucia Helena Gayotto, Fabiana Serroni, Ronaldo Silva e Paula Kill. Terças, 20h30. Teatro Bibi Ferreira (avenida Brigadeiro Luis Antônio, 931, Bela Vista, tel. 605-3129). R$ 25,00. Duração: 80 minutos. Até maio.