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O Diário de Mogi

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O Diário de Mogi – Domingo, 17 de maio de 1998.   Caderno A – 3

VALMIR SANTOS

São Paulo – O diretor Oswaldo Gabrieli e seu grupo, o XPTO, já inscreveram o nome na história do teatro brasileiro com a marca da inventividade. Seus espetáculos são hipercoloridos com bonecos em formatos mais variados e estranhos, num exercício ­geométrico que tem mais a ver com o espírito lúdico do que propriamente com teorias.

“Buster, o Enigma do Minotauro”, um dos trabalhos mais premiados de 97, segue em cartaz no Teatro Popular do Sesi na­ Capital, com entrada franca. Até final de junho, dá tempo de assistir ao infanto-juvenil que prima pela beleza do cenário, dos figurinos e pelas atuações ­com ênfase na linguagem do cinema mudo.

O XPTO começa o espetáculo projetando numa tela trechos filmes do comediante americano Buster Keaton (1895-1966). As imagens, e branco, preparam o espírito do espectador – adulto ou mirim – para o que virá a seguir.

Trata-se da história do jovem Buster (Wanderley Piras), que se mete em várias confusões graças a um Minotauro, encarnado por dois atores (Sidnei Caria e Guto Togniazzolo), que vive  atravancando seu caminho.

Uma das passagens mais engraçadas é quando o pobre Buster é encarcerado. No presídio, ele acaba driblando os presos antigos, que se metem a espertos e tentam aproveitar-se do novo hóspede da cela.

A montagem foi muito feliz em dividir o personagem em três. Além de Piras, Buster ganha dois clones interpretados por Angelo Madureira e Ednaldo Eiras. O trio responde por momentos hilários, em que a própria Anabela não sabe distinguir quem é seu namorado.

Como não poderia deixar de ser, Gabrieli presta uma homenagem também a Charles Cha­plin, que abrilhanta ainda mais o universo cômico que “Buster” traduz no palco, recorrendo à técnica do clown.

São, ao todo, 12 atores em cena – desde jovens empenhados a nomes tarimbados, como Cleber Montanheiro e Dadá Cyrino, vindos de espetáculos musicais. Aliás, aqui o gênero é bastante explorado, com direito a coreografias, ainda que breves.

Predominam, no entanto, as aventuras de Buster, em formato que se aproxima bastante dos filmes em preto e branco – tudo – muito rápido, vapt-vupt, como num videoclipe -, apesar do colorido dos figurinos e do cenário, basicamente formado por painéis
móveis.

Em seus quase 15 anos de formação, o XPTO dá mais um exemplo de como a multiplicidade de linguagens (teatro, dança, música, bonecos e animação de objetos) pode ser concebida sem muito virtuosismo técnico. Em “Buster”, tudo flui com o rigor e a magia das caixas de soldados de chumbo. 

Buster, O Enigma do Minotauro – Concepção e direção: Oswaldo Gabrieli. Com Grupo XPTO (Gerson Esteves, Helzer Abreu, Márcio Branco, Roberto Camargo etc). Recomendado para crianças a partir de 8 anos. Sábado e domingo, 11h e 14h. Teatro Popular do Sesi (avenida Paulista, 1.313, tel. 284-9787). Grátis (ingressos distribuídos com uma hora de antecedência). Espetáculos para escolas: tel. 284-4473. Duração: 75 minutos. Até 28 de junho.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 10 de maio de 1998.   Caderno A – 4

VALMI
R SANTOS

São Paulo – Depois de romper a parceria de dez anos com Antunes Filho, no final do ano passado, J. C. Serroni, 47 anos,começou a tirar da prancheta seu sonho recorrente em 21 anos de palco: o Espaço Cenográfico.

Há três meses ele encontrou uma pizzaria abandonada anexa ao Teatro Eugênio Kusnet, a poucas quadras do Centro de Pes­quisa Teatral (CPT), no Sesc Consolação; investiu R$ 31 mil do próprio bolso para reformas no prédio; e inaugurou na última terça-feira o seu laboratório permanente de cenografia, figuri­no, arquitetura teatral e outros elementos visuais. “Poucas pessoas no Brasil estão dispostas a fazer o que estou fazendo”, afirma Serroni a O Diário. “E faço não por mim, mas pela ce­nografia brasileira.” A seguir, os principais trechos da sua entrevista.

 

Diário – Por que dei­xou o CPT?

J. C. Serroni – Coinci­diu, no ano passado, com a volta do Antunes para o seu método de ator. Eu não queria parar co­mo meu trabalho de cenografia e já havia experimentado muita coisa lá com ele. Claro, poderia experimentar mais. Mas com minha bagagem toda, achava que para a cenografia eu tinha que fazer uma coisa mais indivi­dual. Se o Antunes está voltando para o trabalho fechado de ator, eu queria voltar para o designer, para a cenografia. Então, resolvi me afastar.

Diário – No programa de “Prét-à-Porter”, o novo espe­táculo de Antunes, ele afirma que acabou a fase de “diretor de designer”. O que acha dessa definição?

Serroni – Eu não sei… O An­tunes sempre foi muito inquieto. Em todo esse tempo que estive lá, ele sempre se preocupou mu­ito com o trabalho do ator. Aí ele radicalizou mesmo. Antunes queria fechar seu método, um projeto que vem desde antes do CPT. A voz, o corpo, essa coisa toda… Não que eu queira fazer designer, decoração… Vou estar sempre preocupado com o ator também, uma coisa que aprendi com o Antunes. Só que existe também um outro mundo: a ce­notécnica, o figurino, a arquite­tura teatral. A minha formação é essa. Se eu deixar de fazer isso, que é o que sei fazer – dar aula de cenografia, fazer arquitetura de teatro, criar cenário, figurino -, vou entrar em conflito comi­go.

Diário – “Prét-à-Porter” fez uma “faxina” na cenogra­fia. Você se imagina traba­lhando assim com Antunes?
 

Serroni – E não foi só na ce­riografia. Radicalizou na ilumi­naçao, no som, no figurino e, segundo li, o Antunes radicali­zou até com o trabalho dele para ficar mais distante, dar liberda­de. Eu podia até continuar no CPT, de uma outra forma, mas não seria coerente. Lá é uma coisa do Antunes. A cenografia lá dentro vai ser sempre uma parte do todo. Eu preciso que a cenografia seja o todo. Neste momento, estou com a cabeça aqui no Espaço Cenográfico, esqueci um pouco o CPT. Mas continuo torcendo por ele, que afinal é o grande centro de pesquisa teatral no país.

Diário – Quando participou pela pri­meira vez da Quadrienal de Cenografia de Praga (87), você declarou que o Brasil estava pelo menos 20 anos atrasados. Evoluímos?

Serroni – A gente cresceu muito. Principalmente em rela­ção à luz e à arquitetura teatral. Hoje, está se dando muita im­portância aos projetos de cons­trução. Acabamos de ganhar três ótimos teatros: o Sesc Vila Mariana, o Alfa Real e o São Pedro, que foi reformado. E todos tiveram assessoria cênica.

Diário – Pode-se falar em uma linguagem cenográfica brasilei­ra?
 

Serroni – O que a gente ouve fora do país é que a nossa cenografia tem mu­ita liberdade, é sempre meio festiva. Cada espetáculo, cada autor traz um olhar diferente. Não é o caso da cenografia ale­mã, por exemplo, que tem uma linguagem muito fechada, ainda que boa; mas tudo é muito es­tanque. A brasileira não. Duas horas antes da estréia, o cenó­grafo está lá mexendo. Nosso trabalho é mais vivo. Também somos elogiados pelo uso de materiais simples, como jornal, sucata, sobra de cenários; a gen­te transforma muita coisa. Claro que o Brasil é enorme para se falar em uma linguagem brasi­leira. Mas, pelo que se vê em São Paulo, Rio, Recife ou João Pessoa, por exemplo, nosso pal­co não tem grandes maquinis­mos, aquela coisa pesada.

Diário Quais são as espe­cificidades do seu trabalho?

Serroni – Eu sempre fui um cenógrafo preocupado com a in­fra-estrutura para a cenografia, para a iluminação, para o espaço teatral. Me preocupo muito com a formação, com a mão de obra. Mas o centro é a experimentação. O Espaço Cenográfico vem preencher isso: um lugar para juntar as pes­soas na descoberta de formas, materiais e novos caminhos pa­ra as artes cênicas. Uma das metas iniciais, por exemplo, é agre­gar mais a iluminação à ceno­grafia. Há uma certa distância entre os profissionais. Ainda encaramos a luz só como ilumi­nação e não como espaço, o que já ocorre em outros países.

 

Diário – Você já cria figuri­nos e agora acena com a luz. Seria o caso de uma cenogra­fia total?

Serroni – O ideal era que o cenógrafo fosse considerado um diretor de arte, coordenando toda a parte visual (cenografia, iluminação, figurino, maquia­gem). Mas no teatro isso é mui­to difícil. A dez, 15 dias da es­tréia, não dá para você se dividir em quatro. Se o cenógrafo fi­zesse também pelo menos a ilu­minação, já seria muito bom. Mas a maioria pende mais para a criação de figurinos.

Diário O próximo passo, então, é dirigir?

Serroni – Bem, pode ser um projeto para a quarta década da minha carreira [risos]. Eu tenho vontade, mas não quero ser ape­nas diretor de espetáculo. Seria fácil. Aprendi muito com o Antunes sobre a direção de atores e quero usar isso um dia.

 

Espaço Cenográfico tem caráter público (rua Teodoro Baima, 88, Centro, tel. 257-1115 ou 256-4619). Coordenação: J.C. Serroni. Curso – De agosto a dezembro, das 19h às 22h. Vagas: 15. Inscrições a partir de 1º de junho. Taxa: R$ 5,00 (mensalidade gratuita). Biblioteca – De terça a quinta, das 16h às 20h; sábado, das 14h às 18h. Exposição – Visitas aos sábados, das 14h às 18h.
 

Espaço Cenográfico tem caráter público

São Paulo – “É como um vi­deotape: vai para frente e para trás, vocês é quem mandam.” Na introdução para a platéia, o encenador Augusto Boal faz a ponte do seu “teatro fórum” com o efeito “você deci­de” que toma a televisão de as­salto. De certa forma, o encena­dor antecipou tudo isso.

Mas, ao contrário da partici­pação virtual pelos “0900” da vida, aqui o espectador inter­vém de fato. Entra em cena na hora que quiser, substitui o ator em questão e representa como acredita que faria na vida como ela é.

Segmento do “teatro do opri­mido” gestado pelo diretor cari­oca nos anos 70, o “teatro fó­rum” se distingue também por oferecer mais de duas opções. Se nove pessoas da platéia dis­cordam da ação do personagem, então elas ganham vez e voz no palco.

Foi o que Boal mostrou no i­nício da semana em São Paulo. Ele encerrou seu workshop de cinco dias no Teatro da USP com duas apresentações. Os 27 participantes criaram quatro ce­nas curtas abordando educação, violência urbana, solidão no meio do público e o padecimen­to de uma estrela clonada de Carla Perez, vítima da “ditadura do corpo”.

A platéia escolheu os temas educação e violência para inter­vir. Na primeira cena, o diretor de escola cobra da professora maior rigor na sala de aula e cumprimento do método clássi­co de ensino. Na segunda, dois meninos de rua praticam roubo e estupro de pessoas da classe média que, antes, tinham cons­ciência social quanto aos exclu­ídos.

O “teatro fórum” requer mí­nimos recursos,. O realismo pre­dominou nas apresentações sem cenário, iluminação, sono­plastia e tampouco grandes atu­ações.

Como Zé Celso, Boal gesti­cula muito, chega a “interpre­tar” para se fazer entender, conquistando a empatia da pla­téia. “O teatro do oprimido propõe várias portas em que to­do mundo é artista, queira ou não queira”, continua explican­do. “A gente pode, no presente, pensar o passado e inventar o futuro.” 

 

Augusto Boal cria seu “você decide” de fato

São Paulo – Para uma cidade que não possui curso superior de cenografia – no Rio existem dois -, a Capital e as cidades vizinhas vêem no Espaço Cenográfico um alento que faz par com o CPT. Só que a iniciativa de J.C. Serroni tem um caráter mais institucional coordenado por Antunes Filho, no Sesc Consola­ção.

De olho nos profissionais da área e nos jovens que manifes­tam, no mínimo, curiosidade sobre o mundo da cenografia, o Espaço vai oferecer cursos, exi­bir vídeos e permitir acesso a uma biblioteca com 500 títulos, entre livros e revistas especiali­zadas, nacionais e importadas.

O folheto mensal “Espaço Cenográfico News”, com tira­gem de 2 mil exemplares, distri­buído gratuitamente, vai preen­cher um pouco do vácuo editorial com informações sobre cenogra­fia. Cada edição trará, por exem­plo, o “cenógrafo do mês”. O pri­meiro perfil é de Tomás Santa Rosa Júnior, ou Santa Rosa. Ele assinou o “Vestido de Noiva”, de Ziembinski, em 1943, marco do moderno teatro brasileiro.

Uma exposição cenográfica vai ocupar permanentemente um dos corredores. Serroni dá a largada, mas depois abre para outros cenógrafos. As paredes do Espaço apresentam texturas, adereços e objetos suspensos o­riundos das montagens que ele participou dos 70 espetáculos do currículo, 11 foram no CPT.

A intenção, diz o cenógrafo, é situar o público visitantes, alunos – num ambiente “vivo”, com direito a iluminação e sonoplastia, como se todos estivessem sobre um palco.

Também está programado um ciclo de palestras no Teatro de Arena Eugênio Kusnet, ao lado do Espaço.

 

LIVRO

J. C. Serrom também escreve livros. Para o segundo semestre, ele prepara “História Visual da Cenografia Brasileira”, um pro­jeto da Funarte. Também dispõe de material suficiente para produzir uma história da cenogra­fia nacional mais acalentada, idéia a ser apresentada em breve para alguma editora.

Paralelo aos livros e, agora, ao Espaço Cenográfico, ele continua fazendo o que mais gosta: criar cenários e figurinos. Dois espetáculos infantis em cartaz levam sua assinatura: “Chimbirons e Chimbirins” e “No Reino das Águas Claras”. Daqui a duas semanas reestréia o infanto-juvenil “O Homem das Galochas”.

E os convites, depois da saí­da do CPT, não param de che­gar. Tem Ulysses Cruz com “Sá­bado, Domingo e Segunda”, do italiano Eduardo de Filippo. Vladimir Capella com “Clarão nas Estrelas”, do próprio, para o Teatro do Sesi. José Possí Neto com “O Evangelho Segundo Je­sus Cristo”, do português José Saramago, no Rio. Para o ano que vem, Fauzi Arap com “Gota D’Água”, de Paulo Pontes e Chico Buarque, estrelado por Bibi Ferreira.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 05 de abril de 1998.   Caderno A – 4

Companhia carioca trata erotismo com poesia e vê o corpo como veículo de prazer e afeto

VALMIR SANTOS

São Paulo – Como falar em erotismo nesse pre­núncio de milênio? Co­mo falar de toque, tocan­do, num tempo em que as pesso­as optam pelo sexo on linee e er­guem muros em volta de si? São questões assim, pertinentes, que vão pela cabeça do espectador depois da sessão de “Volúpia”. A montagem da carioca Cia. Te­atro do Movimento resgata o elo com o corpo enquanto instru­mento de prazer. E o faz, é claro, enfrentando o falso moralismo que insiste em desprezar o que Deus lhe deu.

Afinal, “Deus não me fez até a cintura para o diabo fazer o resto”, como deduz uma das personagens, numa das citações brilhantes que pululam no espe­táculo. O roteiro reúne trechos de obras de Adélia Prado, Hilda Hilst, James Joyce, Anaís Nin, Henry Miller, D. H. Lawrence, Sade, Verlaine, Cortázar, Moravia e outros nomes da literatura e do pensamento mundial que colocaram o sexo na pauta do dia e nem por isso o pintou com a tinta da publicidade que a tudo consome.

O objeto do desejo, aqui, é o corpo como veículo. O corpo “humilde”, despido de conceitos, idéias e couraças afins. “A indecência no cére­bro se torna obscena”, avisa um personagem. “A castida­de no cérebro é vício”, retruca um outro. E a língua passeia por aí afora, retratando o erotismo desde a mitologia grega até a filosofia moderna, sob o prisma da obscenidade e da pornografia.

Há espaço para tudo no jogo de palavras, gestos e movimentos: o lúdico, o escatológico, o onírico, o fantástico, enfim, variantes que dizem respeito à intimidade de cada um. O gozo é livre e honesto – eis uma bandeira possível para “Volúpia”.

Como em “A Lua Que Me Instrua” (1992), a diretora Ana Kfouri recorre à sensibilidade para ganhar o público. Mesmo nas passagens que poderiam fa­zer corar muita gente – palavrõ­es, relações homossexuais, e sa­domasoquistas, por exemplo -, tudo é conduzido com a “mão” do afeto sincero, da permissão para o encontro do outro (que também pode estar dentro de si).

Dispensando a narrativa li­near, os quadros são entremea­dos por breves blecautes. Os a­tores da Cia. Teatral do Movi­mento cometem verdadeiros contorcionismos. Como o pró­prio nome diz, uma perspectiva coreográfica domina a movi­mentação e chega a desembocar em canções entoadas pelo pró­prio elenco.

Heitor Martinez Mello, Isa­bel Cavalcanti, Manilha Martins, Nadya Thalji e Pedro Brício dão atenção em dobro ao seu princi­pal instrumento de trabalho: o corpo. Eles interagem com os contornos geométricos do cená­rio (orifícios, frestras) e redi­mensionam o olhar voyeur e pornô. Os figurinos – sim, eles existem! – foram inspirados na sensualidade das telas do pintor austríaco Klint.

Quando os atores simulam transas em cada espaço do ce­nário, explorando posições va­riadas, protagonizam um ver­dadeiro “Kama Sutra”. As ima­gens não chocam, mais uma vez, por causa do tratamento estético que não abre mão da poesia.

“Volúpia” é uma resposta à sociedade sexista de consumo. Dá um banho de interpretação nas montagens chínfrins que ainda insistem na gratuidade do nu como chamariz de bilheteria. Nos seus breves e consistentes sete anos, a Cia. Teatral do Movimento e sua diretora conquistaram lugar ao sol com muito suor e pesquisa. E, é claro, muita coragem.

Volúpia – Concepção e direção: Ana  Kfouri. Assessoria técnica: Leonardo Sá. Com Cia. Teatral do Movimento. Figurino: Charles Moeller. Cenário: Afonso Tostes, André Costa e Sônia Barreto. Quinta a sábado, 21h30; domingo, 20h30. Centro Cultural São Paulo/Sala Jardel Filho (rua Vergueiro, 1.000, Paraíso, tel. 277-3611). R$ 12,00. Duração: 60 minutos.

Espetáculo ri da incomunicabilidade

São Paulo – A surpresa co­meça já no espaço em que o espetáculo é encenado: uma piscina. Vazia e coberta, é lá que tudo se passa. E as sur­presas continuam, depois, pontuando do início ao fim. “La­drões de Metáfora (Não Importa o que Eu Falar, Você Entende o que Quiser)” poderia dizer tudo com este título quilométrico. Mas a montagem diz e diverte muito mais.

O diretor Gustavo Kurlat – nome associado à música para teatro desde o final dos anos 80, trabalhando principalmente com o Tapa – mostra que realmente é bom de ouvido. As 22 cenas que escreveu são pequenas criações em que a sonoridade da palavra soma com o silêncio e dá em di­álogos impagáveis.

É como se o espírito de Woo­d Allen baixasse na piscina d’A Casa, um dos novos espaços culturais da Capital. Com texto, direção e música em suas mãos, Kurlat tem pleno domínio lo espetáculo. Tomando como erferência a máxima de Ítalo Calvino de que “quem comanda o discurso é o ouvido”, ele desenvolve um amargo, ainda que cômico, inventário da incomunicabilidade.

Kurlat traça um painel das relações em todos os seus níveis: afetivo, familiar, amizade ou simplesmente individual, enquanto ser social. São persona­gens desnorteados, com seus pensamentos e códigos recepti­vos turvados pela poluição de i­déias – para ficar no ramerrão semiótico que também tem lá sua surdez implícita.

De volta ao espetáculo, são esquetes ou performances nas quais o poder de síntese é exigido o tempo todo. Os quatro atores – Flávia Ferraz, Fábio Herford, A­lexandre Edelstein e Vera Ferreira – dão conta do recado com mu­ita inventividade: quer no tom predominante de farsa, quer nas cenas dramáticas que beiram o dramalhão. (Vale lembrar, o ima­ginário brasileiro está impregnado das telenovelas). Herford e Flávia, em especial, destacam-se também pela interpretação musi­cal em números solos, provando que o talento de ambos se estende às cordas vocais.

Em certos momentos, a peça é um exercício de pura ironia. Como no qua­dro em que um homem e uma mulher, cada qual em sua vez, choram as pitangas na me­sa de um bar. Nesses “inter­valos” dramáti­cos, porém, a montagem titu­beia e deixa es­capar seu ritmo ideal – que é o do instalar dos dedos, estímulo e resposta, mes­mo quando não se ouve um pio.

Mas o gran­de barato está no inusitado das situações – e de como elas são solucionadas. Do corte de cabelo que dura 15 segundos (a cabeleireira corta dois dedos do cliente, literalmente), ao tapa na cabeça do sujeito que pede para o fotógrafo bater a foto; das re­ticências infinitesimais que dis­tanciam o casal em crise, à ver­borragia de boteco empregada pelos bêbados; do “portunhol” entre um galanteador argentino e uma moça brasileira, ao qui­procó semântico no qual maridos entediados explicam para suas mulheres o que vem a ser e­xatamente “impedimento” no futebol; enfim, é um desfile bem acabado da impossibilida­de de se fazer entender diante do outro.

E mesmo quando o que se ouve do interlocutor entra por um ouvido e sai pelo outro, Kur­lat insiste que é impossível que nada se assimile.

O ruído na comunicação in­terpessoal, como conseqüência da demanda tecnológica que a­vança a la Jetsons, está na or­dem do dia. Em sua síncope li­tero-sonoro-gestual, o diretor e seus ótimos atores nos fazem rir do ridículo e da desgraça em que estamos embrenhados a ca­da celular que toca, bip que vi­bra ou e-mail que chega. Para­doxalmente, é refletindo e fa­zendo blague do distanciamento que “Ladrões de Metáforas” ce­lebra a sua comunhão, o seu en­contro com o público. Dá seu toque numa boa, sem meta-me­táfora.

Ladrões de Metáforas (Não Importa o que Eu Quiser) – De Gustavo Kurlat. Figurinos: Isabela Teles. Terça e quarta, 21h30. A Casa (rua Coronel Irlandino Sandoval, 425, Pinheiros – altura do 1.754 da avenida Faria Lima, tel. 814-9711). R$ 15,00. Duração: 70 minutos. Até 6 de maio.


Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 05 de abril de 1998.   Caderno A – 3

VALMI
R SANTOS

São Paulo – Já virou bordão: “Einstein estava certo…”. Quase 43 anos depois da sua morte, em abril de 1955, a comunidade científica continua confirmando teses que o físico e matemático alemão elaborou em vida mas não dispunha de nenhum satélite potente para provar suas idéias. É por essas, e por outras, que o monólogo “Einstein – Um Ato de Gabriel Emanuel” ganha sabor especial.

O ator Carlos Palma interpreta o texto de Gabriel Emanuel – pseudônimo do canadense Gordon Wiseman. Seu primeiro contato com a peça foi em 1995, quando assistiu à montagem chilena. Em princípio, Palma pensava em adquirir os direitos do texto para outro intérprete. Mas acabou, ele mesmo, quarentão, vivendo Einstein aos 70 anos. O resultado é tocante.

Einstein está prestes a participar de mais um daqueles jantares protocolares. Entre os seus chamados pela secretária Helen, que nunca vem, o personagem rememora, aos poucos, sua infância e juventude. Conta, por exemplo, como a bússola que ganhou do pai aos 5 anos, acamado, influenciou seu pensamento pelo resto da vida. Da mesma forma, a paixão pela música foi herdada da mãe, que lhe deu um violino que, pouco tempo depois, já estava tocando.

A ironia lhe era frequente. “Como meu desenvolvimento era retardado, eu era um adulto com mente de criança”, tenta se explicar o personagem. Aos 9 anos, não prestava atenção em sala de aula e vivia isolado pelos cantos, sem falar com ninguém.

Num cenário simples, composto por uma escrivania, uma poltrona e uma lousa, Einstein/Palma intercala o presente com o passado, mesclando biografia e idéias. Judeu, ele cita sua mágoa com o regime nazista alemão, que praticamente o expulsou da pátria em plena juventude. O físico chegou a ser convidado para ser presidente do Estado de Israel, mas não aceitou.

O monólogo inclui até uma explicação didática da Teoria da Relatividade, que publicou aos 26 anos – o Nobel de Física viria 16 anos depois, em 1921. A peça acerta em equilibrar aula e drama. Ou seja, não é um espetáculo propriamente escolar. O que está sendo representado é a  vida e o pensamento de uma dos gênios da humanidade. Suas inquietudes sobre razão e intuição, em que ambas não se excluem, podem ser encaradas como verdadeiras lições de vida.

Em sua caracterização, que inclui a oxigenação dos cabelos e bigode, com o benefício da calva já proeminente, Carlos Palma é a incorporação perfeita de Einstein. É rigoroso na composição dos gestos, do corpo arqueado, do andar vagaroso, do olhar que brilha ansioso por desvendar os mistérios do mundo. A direção de Sylvio Zilber também acentua o trabalho do ator, vencendo o desafio do monólogo com tranquilidade.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 29 de março de 1998.   Caderno A – 3

VALMIR SANTOS

Curitiba – A melhor coisa do Fringe é o tiro no escuro, o sabor da aventura de ir ao teatro sem quaisquer expectati­va. A mostra paralela que o Fes­tival de Teatro de Curitiba inau­gurou em sua sétima edição conseguiu atingir a meta saudá­vel da diversidade. Houve espa­ço para tudo, como O Diário no­tou em pelo menos quatro das 32 peças que participaram do Fringe – nome importado do tra­dicional Festival de Edimburgo, que também abre suas portas para grupos que tenham coisas interessantes a dizer; ou melhor, a encenar.

A montagem de “Killer Dis­ney , por exemplo, trouxe para o palco brasileiro o primeiro texto do inglês Philip Ridley, es­crito em 1990. É uma história, no mínimo, perturbadora. Os jo­vens Presley (Ivan Cabral) e Ha­ley (Andressa Medeiros) são dois irmãos que vivem sozinhos depois da morte dos pais. Em casa, isolados na bolha que in­ventaram para si, eles se escon­dem do medo do mundo exteri­or. Para suprir a resistência, se alimentam quase que exclusivamente de chocolate.

Aos poucos, os irmãos vão desnudando seus horrores. A narrativa é escatológica, beira o teatro pânico do qual o drama­turgo espanhol Fernando Arra­bal é um dos expoentes (“Jovens Bárbaros de Hoje”). A doce e angelical Haley, por exemplo, conta sua escalada à estatua de Cristo, fugindo de uma matilha. Os cães rosnavam ao pé do monumento, enquanto ela beijava os lábios frios do Salvador.

Presley, por sua vez, descre­ve como comprou uma cobra verde, feito cor de grama, e a mastigou depois de fritá-la. As imagens de “Killer Disney” são poderosíssimas. O autor é devassador. Um terceiro perso­nagem, Cosmo Disney, surge para aumentar ainda mais o pe­sadelo dos irmãos. Entre os de­sejos mais primitivos, a sexua­lidade latente e prisão do ima­ginário, a peça é uma crítica fe­roz ao isolamento do homem moderno.

“Killer Disney” uniu a Com­panhia de Teatro Os Satyros, se­diada em Lisboa, e o grupo paranaense Resistência de Teatro. A direção é assinada por Marce­lo Marchioro. A montagem transmite a atmosfera etérea do texto; as interpretações são vis­cerais, no limite da loucura em que os personagens estão meti­dos.

Outro destaque do Fringe foi “A Perseguição ou O Longo Ca­minho Que Vai de Zero a Ene”, com a paranaense Cia. do Dra­ma 2. João Paulo Leão dirige e contracena com Hélio Barbosa no texto de Timochenco Wehbi.

E uma peça coerente com a abordagem existencial – e soci­al, por extensão – que Wehbi imprime em seus textos. Na rela­ção do outro com o mundo que o cerca, Zero e Ene fazem como Uroborus, a cobra mitológica que engole o próprio rabo. Leão e Barbosa estão à vontade no palco; estabelecem paralelismo nas falas, nos gestos, na ocupa­ção do palco que traz latões amontoados como cenário. O si­lêncio beckettiano, o mergulho no vazio das almas, transfor­mam o espetáculo em uma ex­periência intimista, na qual a palavra ecoa com dor e lirismo.

Em “Cara Metade”, o Caos & Acaso, outro grupo de Curi­tiba, encena um dos textos pou­co conhecidos de Flávio de Sou­za (“Fica Comigo Esta Noite”, “Repetition” e “De Pernas Pro Ar!”). Trata-se de uma incursão do autor pelo mesmo tema que atraiu o francês Roland Barthes no clássico “Fragmentos de um Discurso Amoroso”, livro que já recebeu algumas adaptações para o palco.

Estão lá as neuroses comuns dos enamorados, como a angús­tia da espera, o ciúme e a perda amorosa. “Cara Metade”, o títu­lo, é atribuído à dupla persona­lidade que acomete a todos; diapasão que abriga a disputa en­tre razão e intuição. O tratamen­to do diretor Chico Penafiel, que também encabeça o elenco, beira o do teatro infantil, com direito a figurinos coloridos e anjinhos saltitantes. É uma farsa descomprometida, que se não vai além do olhar raso do tema, deve-se muito ao texto pouco feliz de Souza.

Como se disse, Fringe tam­bém é susto. E um deles foi “Dois? Somente Um!”, de Pe­dro Pires, que também assina a direção e participa do elenco. O que se viu no festival foi um en­godo, um espetáculo distante do mínimo para se levar ao palco. Nas desilusões e embates de ca­sais em crise, a rotatividade dos seis atores se assemelha a um jogral escolar. As coreografias são preguiçosas, repetitivas.

Sob a justificativa de “falar com a maior simplicidade do mundo”, as interpretações são de um naturalismo fácil. Real­mente, os atores parecem que estão falando em um boteco ou numa sala de estar. Mas o palco, convenhamos, prescinde de bri­lho na fala, de verdade – o que falta em “Dois? Somente Um!”.

Enfim, o Festival de Teatro de Curitiba chega ao seu sétimo ano com a certeza de que o Frin­ge veio para ficar. O leque de estilos, de trabalhos experimen­tais, de grupos que ousam dar um passo além – pelo menos a maioria deles – resulta em rique­za maior da mostra paralela. Dá gosto participar da maratona (sessões às 18h e 24h), sobretu­do pelas gratas surpresas.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 29 de março de 1998.   Caderno A – 4

Montagem baiana dirigida pela alemã Nehle Franke traduz universalidade do autor Valle-Ínclan

VALMIR SANTOS

Curitiba – É inerente da arte do teatro transcender ao espaço no qual ele acontece. Depois do último sinal, importa o “vôo” dos espectadores. E isto só se dá quando a magia é de grande monta. Como em “Divinas Palavras”, uma das melhores atrações do 7º Festival de Teatro de Curitiba – e que poderá ser vista em São Paulo de amanhã até o dia 9, em temporada gratuita no SESC Consolação.

O texto do dramaturgo espanhol Ramón Del Valle-Inclán (1866-1936) ganhou adaptação de dois compositores expressivos da música regional brasileira: Xangai e Elomar. O elenco, por sua vez, é formado por atores baianos. E a direção é da jovem alemã Nehle Franke. Essa mistura de raízes contribui para o caráter universal da obra, destacado com beleza e espanto em cena.

A partir do texto amargo de Valle-Ínclan, no qual cada ser humano parece predestinado à dor, porque amor de perdição é armadilha e partilha de herança é ambição desmesurada, capaz de desgraçar toda uma família, enfim, a partir desse olhar impiedoso do autor, a montagem encontra a si mesma, incorporando seu filete de humor em pleno ritual.

“Divinas Palavras” tem o aleijadinho Laureano (Fábio Vidal) no centro da disputa dos tios. Ou melhor, nem tanto ele, Laureano, um “fardo” a grunir boa parte do tempo. O que se disputa, cruelmente, é o carrinho de mão, o “berço” no qual o pobre coitado é levado para cima e para baixo.

O nonsense em torno da herança culmina na morte do aleijadinho, na interpretação ao mesmo tempo assustadora e encantadora de Vidal, traduzindo em desespero e ódio cada músculo retesado do corpo, mais o olhar esbugalhado, a voz esgarniçante. Em estando morto, Laureano não perde a condição de “moeda”.

“Três dias na porta da igreja rendem mais do que o dinheiro do enterro”, dispara a garota Simoniña (Cibele de Sá), carregando ligeiro o falecido no carrinho para esmolar. A miséria em seu grau mais elevado; a exploração não cessa nem depois do último respiro.

A peça confronta ainda a noção de pecado com a traição de Mari-Gaila (Andréia Elia). Depois de conseguir parte da “herança”, ela se deixa seduzir pelo saltimbanco Sétimo Miau (caco Monteiro) e trai o seu marido, o sacristão da aldeia. Como Madalena, Mari-Gaila é perseguida pela comunidade e o espetáculo termina com a frase bíblica, desafiando àquele que não cometeu pecado a atirar a primeira pedra.

“Divinas Palavras” é um espetáculo que comove pela sua sinceridade. Há uma riqueza corporal, uma inventividade constante que brota do corpo dos atores. Como nos personagens construídos por Elydia Freire (Poca Pena) e Evelyn Buchegger (Marica del Reino), em que a caracterização é minuciosa, de conteúdo ancestral, antropológico.

Tal perfil também se enquadra nos figurinos e adereços de Moacyr Gramacho, nos bonecos de Olga Gomez e na cenografia de Ayrson Heráclito e Haroldo Garay, que integra a tudo e a todos com fluência rara.

A platéia giratória conduz o olhar do espectador como uma câmara cinematográfica. Numa das sequências mais impressionantes, o giro acompanha um grupo que persegue Mari-Gaila por entre as cercas. A rusticidade do espaço, com vários ambientes – ora uma tenda, ora um descampado, por exemplo – alcança também a expressão oral. As falas pertencem à tradição de quem vive nos confins dos sertões, com seus códigos específicos, na maioria das vezes evocando a natureza. Daí, a remissão imediata à peça-irmã “Vau da Sarapalha”, do grupo paraibano Piollin, baseada na obra homônima de Guimarães Rosa.

Xangai, Elomar, Nehle Franke e os vibrantes atores baianos captaram de Valle-Inclán a universalidade pungente. É um espetáculo que coliga o sofrimento brasileiro, de ontem e de hoje, com o sofrimento de vários povos. O choro da sanfona e o cantochão da cantora que costura as cenas representam o lamento de uma humanidade que beija o rosto da morte ao mesmo tempo em que foge dela. Os artifícios para viver são muitos. “Divinas Palavras” não prega juízo de valores, não quer transmitir mensagens. Faz, de bom tamanho, o seu recorte lírico e cruel da pequenez que habita os corações dos mortos-vivos que perambulam por aí, Brasil adentro.

 

Divinas Palavras – De Ramón del Valle-Inclán. Tradução: Carlos Roberto Franke. Adaptação: Elomar e Xangai. Direção: Nehle Franke. Com Ana Paula Bouzas, Caica Alves, Katia Leal, Rino de Carvalho Inácio e outros. Estréia amanhã, 21h. Terça a sábado, 21h; domingo, 19h. Sesc Consolação/Salão Verde (rua Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, tel. 256-2322). 90 lugares. Grátis (retirar convites com antecedência). Até 9 de abril.

 

Matheus acentua humor em “Orgulho”

Curitiba – Co­mo em “Deadly”, apresen­tada no ano passado, a Cia. do Circo Míni­mo – leia-se Rodrigo Matheus – voltou ao Festival de Teatro de Curitiba com um espetáculo no qual o ator passa boa parte do tempo suspenso no ar. Matheus segue na sua pesquisa do espaço aéreo, que vem desde “Prome­teu Acorrentado”, cerca de dois anos atrás. Agora, é a vez de “Orgulho”, dividindo a cena com o músico e ator Thibaut Delor.

E a presença deste, aliás, o diferencial em relação às mon­tagens anteriores. A presença de Delor coincide com maior espa­ço para o humor. Em “Orgu­lho”, aquela densidade recor­rente do drama e da tragédia ce­dem espaço para o lúdico, sob direção de Cala Candioto.

Matheus surpreende ao explorar sua veia cômica, brincan­do com o ego inflado do seu personagem. A caricatura gay é o á­pice da ruptura que o ator insi­nua em seu novo trabalho.

O texto de “Orgulho” tem como eixo o conto homônimo de Rubem Fonseca. A impotên­cia do homem diante de Deus – este sim, onipotente, como quer seus seguidores – espelha o es­forço do trapezista na missão de alcançar o status de herói.

Enquanto ele (Matheus) mostra seu virtuosismo no ar, retorcendo músculos aqui e ali, com muito suor, o violoncelista (Delor) e seu inseparável instrumento servem como contrapon­to. A coreografia assinada por Sandro Borelli faz uso sobretu­do do contato improvisado entre os corpos. A música que ecoa das cordas, ao vivo, constitui ela também um elemento da narra­ção.

Muito mais do que um retra­to da ambição humana diante da construção do mito, do herói -cita-se, por exemplo, a carta de Getúlio Vargas que “saiu da vi­da para entrar para a história” – o que se destaca em “Orguho” são os seus momentos cômicos.

Neles, a interpretação combina com o espaço e dinamiza a rela­ção com o público. Um caminho que Rodrigo Matheus e sua Cia. Circo Mínimo já provaram que têm cacife para investir muito mais.

Fringe veio para ficar, garante diretor

São Paulo – Num balanço prévio da 7ª edição do Festi­vai de Teatro de Curitiba (FTC), o diretor de comunica­ção, Leandro Knopfholz, 24 anos, avalia positivamente os re­sultados da primeira mostra pa­ralela. O Fringe, como foi bati­zada a mostra, inspirada no Festival de Edimburgo (Ingla­terra), reuniu 32 peças e teve desde platéia reduzida a três, quatro pessoas, até casas lotadas (40, 50 pessoas). Ou seja, a fre­qüência do público reflete a pró­pria diversidade do painel que foi apresentado (leia na página 3 a crítica de alguns espetáculos acompanhados por O Diário).

“O Fringe veio para ficar”, garante Knopfholz. Ele destaca principalmente o empenho dos próprios grupos em cuidar das apresentações com esmero – al­guns chegando a produzir programas de invejar os participan­tes da mostra oficial. Com uma taxa de R$ 50,00, os grupos interessados tiveram direito ao te­atro e à divulgação da monta­gem.

A partir do próximo ano, o diretor quer ampliar a faixa do horário alternativo (sessões às 18h e 24h) para o período da manhã. A intenção é descon­gestionar as noites, que regis­traram quatro espetáculos se­guidos, entre mostra oficial e paralela. O diretor estima que, em seus 11 dias, o festival atraiu um público de cerca de 60 mil pessoas.

Knopffiolz concorda que foi um equívoco a apresentação de “Arlechino, Servidor de Dois Patrões”, pela Cia. Teatro Di Stravaganza (RS), na abertura do festival deste ano, “O talento da companhia é inegável, tanto que foi selecionada para a mos­tra oficial.

Mas o espaço não foi adequado”, reconhece o diretor. Na sua opinião, para uma peça funcionar na Ópera de Arame é necessário que utilize muitos recursos visuais e seja expansiva. “Arlechino”, ao contrário, era intimista e foi diminuída pelo gigantismo do espaço.

Para o próximo ano, a única certeza é a inclusão de mais uma atração internacional na programação. “Agulhas e Opio” (Needles and Opium), que in­troduziu o teatro do diretor canadense Robert Lepage no Bra­sil, foi uma das grandes sensa­ções do festival.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 28 de março de 1998.   Caderno A – capa

“O Crime do Dr. Alvarenga” reflete o talento de seu autor para cair no gosto do público

VALMIR SANTOS

Curitiba – “O Crime do Dr. Alvarenga” foi a única monta¬gem que teve sessão extra durante o 8º Festival de Teatro de Curitiba (FTC), que termina hoje. O sucesso reflete o talento do autor Mauro Rasi para cair no gosto do público, sobretu¬do de classe média.
 
Como em “Pérola”, Rasi bebe da fonte autobiográfica. Dessa vez, partiu de uma pe¬ça escrita pelo pai, seu Oswaldo, morto em dezembro passado, para cometer um e¬xercício metateatral. Toma como base a história original de “O Crime do Dr. Alvaren¬ga”, vertida pelo pai na forma de um policial noir. Para¬lelamente, ele, Rasi, coloca-se no enredo ficcional con¬tracenando com sua família, ou seja, o pai, a irmã, o genro e a tia.
 
Rasí assume a história empolada do pai, tragicomé¬dia. Nos anos 40, o velho ci¬entista Dr. Alvarenga (Paulo Autran) envolve-se com a be¬la estagiária Olívia (Drica Moraes). A mulher Helena (Marilu Bueno) descobre o romance e vai tirar satisfaçõ¬es. Desenha-se então o crime passional no qual a mulher morre e o marido é o principal suspeito.
 
O viés autobiográfico, em que pese a insistência do au¬tor no gênero, constitui o principal foco do texto. Rasi exorciza de forma impressio¬nante a relação com o pai, a quem devota influência no trato com a escrita e, ao mes¬mo tempo, a herança da cul¬pa pelo “insucesso” do pai dramaturgo.
 
Essa situação conflitante, contudo, é relegada a segun¬do plano na comédia. Mergulhasse um pouco mais e Rasi disporia de bom material pa¬ra um drama. Não fez isso, é claro, comprometido que es¬tá com um teatro de entretenimento pré-pizza, como convém à mediana classe média. “‘Uma comédia ele¬gante”, define Autran.
 
Ernani Moraes, principalmente como o genro, e Marilu Bueno, uma tia im¬pagável, puxam o humor bronco. São comediantes que conquistam o público desde o início, aplaudidos em cena aberta. Drica Mo¬raes e Guilherme Piva (Emí¬lio, alterego de Rasi) estão corretos. E Autran encaixa¬-se como o pai da história de forma convencional, sem maiores desafios para um a¬tor de bagagem única.

Falta autocrítica no Festival de Curitiba
Curitiba – O oitavo ano do FTC consolida a mostra paralela Fringe, em sua segunda edição, co¬mo balão de ensaio e proje¬ção para novos grupos e, ao mesmo tempo, pede um redi¬recionamento da mostra.
 
Foi um evento atípico, sem os medalhões do teatro nacional (José Celso Marti¬nez, Antunes Filho, Gerald Thomas), o que abriu a janela para outros encenadores: Nehle Franke (Bahia), Regina Bertola, Chico Pelúcio (Minas), Bete Coelho, Sandro Borelli, Jorge Takla, Ros¬sela Terranova e Cláudia Schapira (São Paulo).
 
São, cada um a seu modo, diretores livres para a experi¬mentação, sem compromisso com uma estética definida. Esse leque preencheu as ex¬pectativas da programação e, de quebra, incorporou o cha¬mado “teatrão” (Paulo Au¬tran, Raul Cortez). O FTC, como “festival de estréias”, atingiu sua meta.
 
Quanto à mostra Fringe, não foram poucas as boas surpresas. A começar justamente pela montagem de “A Boa”, de Aimar Labaki, nu¬ma encenação impactante de Ivan Feijó, superior a algu¬mas peças que constaram da grade oficial. “Carta Aber¬ta”, do francês Denis Gué¬noun, traduzida e dirigida por Fernando Kinas, com o ator Lori Santos, também foi outro grande momento.
 
O redirecionamento do FTC deveria ficar por conta dos eventos paralelos. Numa edição em que despontaram vários caminhos e lingua¬gens, para melhor ou pior, falta um painel que sonde ou amarre tais tendências. O FTC precisa assumir o com¬promisso com o contéúdo, com a autocrítica do que leva ao palco.
 
É triste constatar que mu¬ita coisa cairá no esqueci¬mento já no dia seguinte ao encerramento. E, pior, sem nenhum canal estabelecido entre artistas e criadores.
 
A organização do FTC estima que 90 mil pessoas assistiram às peças de rua e de sala até quinta última. 

“Juventude” destoa no casal protagonista
Curitiba – Mais dois bons espetáculos do Fringe, a mostra paralela homônima à do Festival de Edimburgo. Em “Juventude”, o diretor Felipe Hirsch, carioca que mora em Curitiba, adaptou “Ah, Ju¬ventude!”, do dramaturgo norte-americano Eugene O’Neill (1888-1953).
É um belo texto sobre a fase mais transgressora e so¬nhadora de nossas vidas. O’Neill o escreveu em 1933, aos 45 anos. Richard é um a¬dolescente sintonizado com grandes autores da literatura, como Bernard Shaw e Jac¬ques Tati.
 
Na sua livre adaptação, Hirsch dá uma pincelada pop para “Juventude”, sobretudo na trilha (Morrisey, por e¬xemplo). A composição visu¬al é competente, com recur¬sos de projeção, mais cenário e luz acurados. Falta, porém, o eixo de tudo: o casal prota¬gonista não dá às palavras a força que demandam.
 
E o pernambucano Ariano Suassuna também se fez re¬presentar no Fringe com “Coração Dilacerado”, sua peça de teatro de mamulen¬gos dirigida e adaptada por Ailton Silva Carú, que tam¬bém frequenta a cena para¬naense. Com um elenco afi¬nado com a cultura popular, sua oralidade e inventividade na manipulação de bonecos.


Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

Embriaguez pelo outro

24.3.1998  |  por Valmir Santos

O Diário de Mogi – Domingo, 24 de março de 1998.   Caderno A – capa

Walderez de Barros e Luís Melo em seus monólogos emocionam o público no FTC

VALMIR SANTOS

Curitiba – Waiderez de Barros (“Tu e Eu”) e Luís Meio (“Nijinsky”) inter­pretam monólogos neste 8º Festival de Teatro de Curiti­ba. A programação traz ain­da Iara Jamra (“O Caderno Rosa de Lori Lamby”), que estreou ontem. O formato costuma receber críticas, quer pela suposta facilidade em montá-lo em tempos de crise econômica, quer pela exigência maior da entre­ga/atenção do público, esse ser flutuante cada vez mais acostumado à fácil digestão de entretenimento.

 

Mas tudo isso ainda é mu­ito pouco para relegar o mo­nólogo. Enfrentar persona­gem e platéia sozinho é dos maiores desafios que um ator pode registrar no currículo. Walderez de Barros e Luís Melo, cada um a seu modo, fazem um libelo à interpretação solitária nos espetáculos que chegam a São Paulo no mês que vem.

 

Em “Tu e Eu”, Walderez traz à cena a palavra do afe­gão Rumi (1207-1273), um mestre versado em filosofia e poesia que legou para a hu­manidade uma obra repleta de lampejos líricos e espiri­tuais. “Apenas somos quan­do em nada nos tornamos” – eis um exemplo da reflexão que Rumi propõe na reve­rência a seu interlocutor, que pode ser um deus, uma mu­lher, um homem, não impor­ta. Embriagado pelo outro, o personagem evoca a energia solar ou lunar para declarar seu amor universal e incon­dicional.

 

Walderez de Barros recu­pera o olho no olho do espec­tador, um gesto cotidiano tão elementar quanto distante dos palcos contemporâneos. O prazer da palavra, da trova, toma conta do espaço. Vesti­da em terno e calça cinzas, divagando entre as pedras, a atriz cativa o espectador com um encanto arrebatador.

 

O diretor Jorge Takla de­posita tudo na atriz, suavi­zando cenário e luz em favor da poesia. Quem viu Walde­rez em outro monólogo re­cente, interpretando e cantando versos do poeta francês Jacques Pri­vet, sabe do poço de energia que ela é. Em “Tu e Eu”, temos sim­plesmente uma intér­prete que faz jus à po­derosa mensagem de Rumi em sua espe­rança na força transformadora do homem  e – do teatro, por que não?

 

Já em “Nijinsky”, a cenografia, a ilumi­nação e a música fun­cionam mais do que elementos de apoio – elas dialogam o tem­po todo com Luís Melo, dirigido pela dupla Rosella Terra­nova e Ciáudia Scha­pira.

 

O monólogo é baseado nos cadernos que o bailarino russo escreveu compulsivamente, por volta dos 29 anos, antes de ser internado na “ca­sa de loucos”, como diz o texto. Não é propriamente uma biografia (pinçela o relacionamento com a mu­lher, o rompimento com Di­aghilev, seu professor).

 

“Nijinsky” expõe o ho­mem por trás do mito, a lou­cura sã por trás da fachada de “bobo da corte” que o perso­nagem assumiu para como que despistar os desafetos burgueses do início do sécu­lo. Um Van Gogh, um Arthur Bispo do Rosário.

 

Impossível não enxergar na interpretação de Melo os resquícios da fase com Antu­nes Filho. Está lá impregna­do, por exemplo, um ensan­decido Macbeth. O ator en­contra no seu Nijinsky terreno propício para uma expressão corporal mais acu­rada afinal, estamos falando de um dos gênios da dança mundial.

 

É assim que Melo vai pre­enchendo todo o espaço do palco, se enlaçando nos pa­nos do cenário, saltitando nos quatro cantos, sempre no li­mite da consciência que precede a loucura. Ao contrário da imobilidade e parcimônia de “Sonata Kreutzer”, pulsa aqui o devaneio, o instinto, a porção anima que referenda Kazuo Ohno – não à toa, ele surge com um vestido renda­do que remete ao dançarino japonês na célebre coreogra­fia “La Argentina”. Enfim, um Melo como nos bons tempos.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 15 de março de 1998.   Caderno A – 4

Ator atinge limite da inconsciência e ainda faz rir no drama “Diário de Um Louco”, de Gogol

VALMIR SANTOS

São Paulo O “laboratório”, como é definido no meio teatral o período em que o ator sai à cata de conteúdos internos e externos para compor seu personagem, não raras vezes proporciona bons momentos no palco. Nesse exercício de decantação, é im­perativo sondar os confins da alm­a, peregrinar por caminhos d’antes não percorridos, trazer à superfície da consciência – ou não – a emoção em seu estado bruto. Considerando a interpretação de Diogo Vilela em “Diá­rio de Um Louco”, sua viagem pessoal foi de uma riqueza tre­menda. Única, intransferível, trata-se de uma dádiva dos deu­ses do teatro, reservada àqueles jque se atiram sem rede na fase de pré-montagem.

Na pesquisa sobre o personagem do conto do escritor russo Nikolai Gogol (1809-1952), Vilela foi visitar manicômios. Sentiu na pele a lida de seres hu­manos com a irrealidade cotidi­ana. Numa entrevista recente, a psiquiatra Nise da Silveira, fundadora do Museu de Imagens do Inconsciente, no Rio de Janeiro, se questionava: “Quem sabe o que acontece no imenso mar do inconsciente? Quem dizer que sabe, este sim é louco”. Pois Vilela chegou bem perto na busca da insanidade e do carisma de Popritchitchine um funcionário público do século passado, angustiado numa repartição kafki­ana.

Em suas anotações, o sujeito, vai relatando as mazelas do seu chefe, que goza do poder. Popritchtchine queria ser um gene­ral, um governador, um inten­dente, quem sabe. Mas não. Está ali, metido na “fauna de buro­cráticos fétidos”, como ele define os coleguinhas de repartição.

Não bastasse a submissão social, o personagem amarga um amor platônico pela filha do chefe. O sentimento é tão desconcertante que o leva a estabelecer uma relação afetuosa com o cachorrinho da moça. Sem título de nobreza, sem dinheiro, só lhe resta o diálogo imaginá­rio com o cachorrinho para quem declara seu amor incondi­cional por Sofia.

A solidão com o papel, no qual “deita sua pena”, culmina com sua elevação a rei da espanha. A despeito da autoproclamação, em que sobe na mesa do escritório e encara os demais como seus súditos, Popritchit­chine é encaminhado para um manicômio. Aos poucos, o grau de esquizofrenia é proporcional ao seu estado de consciência.

Preso à camisa-de-força, a­quele mero empregado, ainda assim, traduz a surra nas costas, com pauladas, como se fosse ação de um inquisidor. Nem a crua dor de um bastão o demove da liberdade imaginária.

Diogo Vilela perpassa a via crúcis de Popritchitchine expon­do a leveza e agudeza com que a loucura dota os visionários. Cita-se Van Gogh ou Artaud, por exemplo. Aliás, paira em “Diário de um Louco” o espectro do monólogo histórico de Rubens Corrêa, já falecido, para o francês que deu à luz o “teatro da crueldade”. Não se compa­ram, mas se ligam pelo tema.

Entre a dor da impossibilida­de humana diante de algumas forças da vida, e a dor do grito infinito da alma, Vilela não su­cumbe ao drama total. Há bre­chas para o humor e ele aprovei­ta muito bem esses momentos. Como nas confissões entre o personagem e o “sr.” cachorrinho.
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Mas o Gogol que surge aqui não é o mesmo da comédia po­lítica (pós-revoluçãO russa) “O Inspetor Geral” (1936), sua o­bra-prima, escrita quatro anos antes de “Diário de Um Louco”. Este é um texto perturbador. E um espetáculo tanto quanto.

Adornado pela coroa de gar­fos, uma referência ao artista plástico Arthur Bispo do Rosá­rio, outro que transcendeu à lou­cura, Diogo Vilela constrói ges­tos e movimentos dissociados de seus trabalhos anteriores – notadamente “Solidão, a Comé­dia”.

Seu suporte está no olhar, no corpo que ocupa o espaço cênico dilatando a sua expressão. Parece olhar a loucura nos o­lhos. Neste monólogo, compete a ele, ator, dar conta também dos desenhos físico e orgânico projetados pelo texto. “Enxer­gamos” o cachorrinho ao seu la­do, sim, quando ele fica de qua­tro e estabelece uma “conversa” de igual para igual. O cenário subjetivo e extemporâneo de Beli Araújo também não faz su­gestão ao escritório, estimulan­do o leque imaginário.

O diretor Marcus Alvisi não dilui a dureza do drama e tam­pouco o florea. Como Diogo Vi­lela é um ator com forte apelo cômico, a montagem não des­prezou esse quinhão. Entre as concessões, de um lado e de ou­tro, o resultado é um monólogo que consegue dar seu recado po­ético, sem o cerco literário.

No silêncio introspectivo da platéia, magnetizada pela pre­sença de Vilela/Popritchitchine, conduzida ainda por uma trilha musical fabulosa (Tchaikovsky, Bruck), enfim, a cena compartilha também se reveste de um pouco da experiência que o ator viveu antes de chegar ao seu per­sonagem. Em pouco mais de uma hora, somos atingidos pelos devaneios daquele funcionário que ousou ir além numa socieda­de de parasitas. É atordoante.

 

Diário de um Louco – De Nikolai Gogol. Tradução: Luis de Lima. Dramaturg: Robert de Cleto. Direção: Marcus Alvisi. Com Diogo Vilela. Figurinos: Kalma Martinho. Quinta a sábado, 21h; domingo, 18h. Teatro Cultura Artística (rua Nestor Pestana, 196, Centro, tel.258-3616). R$ 25,00 e R$ 30,00 (sábado). Duração: 70 minutos.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 08 de março de 1998.   Caderno A – 4

Texto de Juca de Oliveira traz ele e Fúlvio Stefanini em cena, sob direção de Fauzi Arap

VALMIR SANTOS

São Paulo – Espanta a ava­lanche de denúncias es­tampadas ultimamente em manchetes. São proporcionais à impunidade. O Brasil está repleto de casos in­solúveis – de Brasília aos “bra­sis”. Essa overdose de falcatru­as poderia até depor contra a pe­ça “Caixa 2”. Por um momento, o espectador, entuchado da rea­lidade política, não agüenta mais falar de Collor, CPI dos precatórios, enfim, dessa ciran­da que não dá em nada. Mas es­tamos numa comédia de Juca de Oliveira, com um bom elenco, estrelado pelo próprio e por Fúl­vio Stefanini e Cláudia Mello. E aí, não tem jeito: o talento reina absoluto.

Juca de Oliveira foi buscar em outra peça sua, “Motel Para­diso”, nos anos 80, a inspiração para retomar a comédia de fun­do político-social. Espécie de raio-X do País, “Caixa 2” vai a­lém da perspectiva história em que vivemos. Oliveira constrói personagens que têm carisma, densidade psicológica, se sus­tentam por si só. A despeito da concretude dos mecanismos bancários, financeiros, a peça diz a que veio com os sonhos frustrados, os ideais vendidos, a sem-cerimônia de quem dá as cartas no jogo do poder.

O empresário Luiz Fernando (Juca de Oliveira) e o gerente Roberto (Fulvio Stefanini) possuem caráter distintos. O pri­meiro é movido pelo vil metal. Pouco lhe importa o outro. Quer o lucro, a vantagem a qualquer custo. Roberto, não. Ele acredi­ta na dignidade do trabaiho, ves­te a camisa da empresa, faz o seu arroz-com-feijão e se dá por feliz – até ser despedido depois de 22 anos de suor.

Nessa gangorra entre bem e mal, “Caixa 2” perfila, aos pou­cos, os demais tipos da história. Cláudia Mello é a mulher de Roberto. Aliás, é a “mulher” da peça. Cabe a ela furar o blo­queio masculino do mundo dos negócios e ditar as regras – O dinheiro é meu!”, brada a certa altura. Depois vem o seu filho (Petrônio Gontijo), que também joga no seu time para driblar os vilões. E tem ainda o assessor não menos inescrupuloso do empresário (Cassiano Ricardo) e a secretária do patrão (Suzy Rêgo).

O corre-corre é por conta dos R$ 10 milhões que o empre­sário captou em suas negociatas (o manjado caixa dois). Para se desviar dos olhos da Justiça, ele deposita o dinheiro na conta da sua secretária, depois de tam­bém lhe prometer algum. O azar é que o dinheiro vai parar na conta corrente negativa da mu­lher de Roberto, então despedi­do pelo mesmo Luiz Fernando.

Na tentativa de reaver sua pequena fortuna, o empresário tenta subornar Deus e o mundo. Mas a família de Roberto, tipo classe média baixa, não arreda pé. Só devolve o dinheiro se o ex-patrão deixar pelo menos 40%. Como pano de fundo, sur­gem os pequenos dramas pesso­ais.

É uma comédia de atores. Fulvio Stefanini faz um Roberto típico das comédias italianas -felliniano até. Já virou marco da temporada a cena em que o per­sonagem refastela-se na poltro­na e, ainda assim, sem ação al­guma, sem dar um pio, faz a pla­téia gargalhar. Sua expressão sempre dissimulada, como se a história não fosse com ele, lhe garante a empatia.

O empresário de Juca de Oliveira também é de um sarcasmo atroz com suas sentenças lapidares, tais como: “Se a Justiça não autorizar a minha candida­tura, só me restam a Casa Branca ou a casa de Collor em Miami” e “Ninguém vai preso neste País por dinheiro”. É histriônico na medida certa.

Comediante nata, Cláudia Mello desfila à vontade no palco. Vai à forra na condução dos seus homens – marido e filho. Petrônio Gontijo, Suzy Rêgo e ­Cassiano Ricardo completam um time coeso, onde todos têm espaço para fazer valer seu dote de bom intérprete.

E são eles, os atores, que o di­retor Fauzi Arap mais uma vez privilegia em cena. Em cartaz também com “Santidade”, ele tem pleno domínio ao tratar o drama ou a comédia com isenção incomum. Arap tem o mérito de diluir a figura do diretor, de se “esconder” no palco, para deixar vir à luz o teatro em sua essência. É uma virtude dos grandes homens do teatro.

Mais simples e funcionais ainda, em se tratando de um es­petáculo nos moldes do chamado “teatrão”, são os cenários e os figurinos de Márcio Medina. A cenografia, junto com a iluminação de Laura Figueiredo e Arap solucionam o espaço cênico – a divisão do escritório e da casa – com um tratamento perfeito. Não há o blecaute constante, mas uma exigente e perfeita simultaneidade de cena.

Na sua perspectiva às vezes ingênua, às vezes contundente, sem nunca perder o fio do hu­mor desbragado, sem culpa e sem medo de ser feliz, cutucan­do os donos do poder que cons­troem prédios como castelo de areia. “Caixa 2” resulta num dos melhores momentos da comédia brasileira nos anos 90.

Caixa 2 – De Juca de Oliveira. Direação: Fauzi Arap. Com Oliveira, Fulvio Stefanini, Suzy Rêgo, Cassiano Ricardo, Petrônio Gontijo e Cláudia Mello. Quinta, 21h; sexta, 21h30; sábado, 20h e 22h; domingo, 19h. Teatro Jardel Filho (avenida Brigadeiro Luis Antônio, 884, Bela Vista, tel. 605-8433 ou 607-3364). R$ 20,00 (quinta), R$ 25,00 (sexta e domingo) e R$ 30,00 (sábado). Duração: 90 minutos. Temporada por tempo indeterminado.

 

“Espumas Flutuantes” voa, mas não consegue achar equilíbrio

São Paulo – O retrato de Castro Alves, quando jo­vem, lembra o de Oscar Wil­de. Mas as semelhanças po­dem ser mais profundas. Tal qual o dândi inglês, o escritor baiano também fez da sua e­xistência uma eferveção poéti­ca literal. Suas inquietações estimularam muitos corações e mentes – da época e de hoje. O musical “Espumas Flutuan­tes – O Vôo do Gênio” vai de encontro ao espírito libertário desse homem que viveu no sé­culo passado e continua fazen­do suas palavras se apodera­rem dos nossos sentidos com intensidade incomum.

Musical talvez não seja a definição correta. Um reci­tal, quem sabe. O certo é que a montagem moldura o verbo com tanto esmero que a poe­sia de Castro Alves chega es­talando, fluindo na boca e nos corpos libidinosos do e­lenco. O lirismo é tocante.

Francamente aberto à infini­ta contribuição das sensaçõ­es humanas – leia-se Dioní­sio até à medula -, o espetá­culo é visionário na medida em que pode. Ou seja, trans­cendendo aos limites do pal­co e, paradoxalmente, se perdendo nas várias possibilida­des que isso implica.

Os 13 poemas extraídos do único livro publicado em vida, “Espumas Flutuantes”, são cantados e interpretados com pungência. Há momentos bri­lhantes, como nas cenas inici­ais, quando o elenco é um car­dume em dispersão, uniformi­zando seus contrastes, jogando com o público, incitado-o a di­gerir a poesia como se fosse o mel que desce macio pela gar­ganta.

Mas o espetáculo desanda depois. Estreou sem estar pron­to. Falta-lhe o ritmo. Os altos e baixos ainda são gritantes, in­clusive entre os atores. Escorre­gões na fala, na sonoplastia, na iluminação, enfim, minam aos poucos a beleza cênica que se tenta construir.

A vantagem do ator e diretor Pascoal da Conceição, presença ativa nas peças de José Celso Martinez e seu grupo Uzyna U­zona, é de que “Espumas Flutu­antes”, o espetáculo, já encon­trou sua razão de ser. A narrati­va que entremea dramatizações, por exemplo, funciona sem ne­nhum prejuízo. Ao contrário, os quadros seguem uma coerência autobiográfica.

Há a liberdade para o vôo, que passa pela percussão musical (Luiz Gayotto), em simbiose com os objetos de cena – e de platéia -; passa pelos figurinos criativos e bem desenhados (Val Barreto); passa pela evocação feminina de Elis e Janis (aliás, ressalta-se a força conjunta das sete mulheres do elen­co); passa pela celebração do espaço e do corpo que nele atua. O rito está garantido. E, com ele, a poesia das pala­vras, que insistem: “Como um pássaro, o coração do morto volta para o ninho”.

O problema da montagem é de ordem puramente técni­ca. De outro modo, é difícil entender por quê tanta ener­gia é empregada em vão. Já que se chegou à cristalização dramática da poesia de Cas­tro Alves, seria o caso de se voltar, agora, para as arestas que estão aí, por vezes ex­postas grosseiramente. Às vezes, é preciso ter os pés no chão para voar. 

 

Espumas Flutuantes – De Castro Alves. Roteiro e direção: Pascoal da Conceição. Com Monica Henriques, Dulcinéia Dibo, Vanessa Frigo, Daniela Jaime-Smith, Lucia Helena Gayotto, Fabiana Serroni, Ronaldo Silva e Paula Kill. Terças, 20h30. Teatro Bibi Ferreira (avenida Brigadeiro Luis Antônio, 931, Bela Vista, tel. 605-3129). R$ 25,00. Duração: 80 minutos. Até maio.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.