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O Diário de Mogi

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O Diário de Mogi – Domingo, 22 de fevereiro de 1998.   Caderno A – 4

Livro enfoca carreira do célebre e tímido diretor das históricas montagens de “Hair” e “Marat/Sade”

VALMIR SANTOS

São Paulo – Ele era do tipo que tinha um nó na garganta quando via um ce­nário sendo desmancha­do, ao final de cada temporada. O diretor paulista Ademar Guerra (1933-1993) inscreveu seu nome na história do teatro brasileiro com paixão inco­mum.
Montagens como “Marat/Sade” (1967) e o musical “Hair” (1969) marcaram pela disciplina ferrenha e despreten­ção estética. O ator era alicerce de tudo e a ele Guerra devotava sua arte. O perfil instrospectivo, pouco chegado aos holofotes, o deixou como que à margem da geração seminal de diretores brasileiros, como Antunes, Bo­al, Zé Celso, Abujamra, Haddad etc. Quando o incenso é muito, o santo desconfia – bem que a máxima caberia nos 59 anos vi­vidos por Guerra.

O livro “Ademar Guerra: O Teatro de Um Homem Só”, do jornalista Oswaldo Mendes (Editora Senac), descortina toda a trajetória do diretor – desde a a­tuação como assistente de Antunes Filho, nos anos 50, até o seu último espetáculo, “O Vampiro e a Polaquinha”, que estreou em 1992, um ano antes de sua mor­te. E vem preencher, também, uma lacuna para as novas gera­ções, carentes de informações sobre o passado do teatro no País.

Não se trata propriamente de uma biografia. Quando muito, toca na forte ligação com a mãe. Mendes, amigo e parceiro em muitos trabalhos de Guerra, res­gata a memória do diretor atra­vés de depoimentos colhidos do próprio e dos inúmeros profissi­onais que conviveram com ele. Mendes ousa colocar o texto na primeira pessoa, demonstrando o grau de intimidade com o encenador, resultando numa nar­rativa póstuma. Essa ressuscita­ção, por assim dizer, recupera oralidade coloquial de Guerra e o aproxima ainda mais do presen­te.

Entre suas montagens histó­ricas, estão os musicais “Oh! Que Delícia de Guerra” (1966) e “Hair”, dois textos estrangei­ros que lhe valeram patrulha­mento à época, acusado de alie­nação política. Na opinião de Guerra, o bom texto era aquele que embutia um olhar universal. Capaz, por exemplo, de catali­sar a atenção do público brasi­leiro para a guerra do Vietnã (caso de “Hair”), independente da contextualização. Ele provou essa espécie de globalização de problemas e virtudes humanas muito antes de “Angels in America”, de Tony Kushner, nestes anos 90.

O formato editorial de “O Teatro de Um Homem Só” é cu­rioso. Nas pági­nas ímpares, Mendes segue contando a luta de Guerra para levar suas idéias adiante; as frus­trações com al­guns colegas; en­fim, a projeção afetiva com a qual o diretor fi­cou conhecido na classe teatral. Já nas páginas pa­res, o livro repro­duz depoimentos não menos passionais, de críticos, jornalis­tas e amigos de Guerra (Décio de Almeida Prado, Alberto Guzik, Jefferson del Rios, Bárbara Heliodora, Mári­ka Gidali, Maria Bonomi, Aracy Balabanian, Renata Pallotini etc).

É importante lembrar que A­demar Guerra trascendeu às fronteiras do teatro e também flertou com a dança e a música. Respondeu pelo roteiro de algu­mas coreografias do grupo Sta­gium, como “Quebradas do Mundaréu” (1975) – adaptação de “Navalha na Carne”, de Plí­nio Marcos – e “Paulistânias” (1994). Assinou ainda a direção de um dos shows mais impor­tantes da carreira de Elis Regi-na, “Saudade do Brasil” (1980). Aliás, no final do livro, ele se encontra coma cantora no céu, concessão um tanto permissiva de Mendes.

Didático sem ser enfadonho, “O Teatro de Um Homem Só” é um livro de memória fresca que, não fosse por ele, o livro, estaria mofando úa cuca de muitos que compartilharam da presença cativante de Guerra. Explorando, sem medo, a veia afetiva do “biografado”, dando voz a pessoas não menos especiais, ilustrando boa parte dos espetáculos dirigi­dos por Guerra, enfim, Mendes deu seu recado com um belo projeto.

Ademar Guerra – O Teatro de um Homem Só – De Oswaldo Mendes. Editora Senac (rua Dr. Vila Nova, 228, 4º andar, Consolação, tel. 236-2135). Preço médio: R$ 28,00.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 15 de fevereiro de 1998.   Caderno A – 4

Autor de “Vidros Partidos” expia inferno de casal na montagem de atuações tocantes

VALMIR SANTOS

São Paulo – Além do ata­que veemente ao regime nazista alemão, o drama­turgo norte-americano Arthur Miller, 82 anos, transfor­ma “Vidros Partidos” em um divã para a psicanálise. Situan­do a história da peça na Nova York de 1938, um ano antes da morte de Sigmund Freud, o au­tor deu contornos psicológicos tão fortes aos personagens do triângulo principal da história, que é impossível sair do teatro sem compartilhar de tanta an­gústia.

A relação do casal Philip Gellburg (Francarlos Reis) e Sylvia (Minam Mehler) é pura neurose. Ela está acomodada numa cadeira de rodas, vítima de uma “paralisia histérica”, co­mo diagnostica o médico e du­blê de psicólogo Herry Hyman (Luiz Serra).

Num primeiro momento, Sylvia atribui seu transtorno pessoal às notícias de guerra que chegam do outro lado do o­ceano. Como ela e o marido são judeus, se condói pelo massacre da etnia pelos carrascos de Hi­tler. Aos poucos, porém, o que se descortina são as mazelas de um casamento que agoniza há mais de 20 anos, desde o nascimento do único filho, hoje capi­tão das forças armadas dos Esta­dos Unidos e atuando no front.

Enfim, são personagens de perfis desafiadores. Felizmente, a montagem de “Vidros Parti­dos”, em cena no Teatro Cultura Inglesa desde a semana passada, conta com a presença tocante de dois grandes atores em cena.

Francarlos Reis catalisa atenção com seu Philip turrão, obsessivo com os negócios, cor­po sempre tenso, arqueado, do­no de um olhar que é esbugalha­do, de vigília, mas também é de peixe morto. O martírio de dar expediente como judeu 24 horas por dia, a âncora da culpa, o desconcerto da impotência sexual – Francarlos transmite a essência desse personagem que carrega sobre as costas todo o peso das obrigações que o mundo ociden­tal impõe sobre a masculinidade

– o mito do herói faz-tudo, pron­to para embarcar para a guerra.

Contundente é também a in­terpretação de Miriam Mehler. Sylvia é uma mulher de brio, mas que abdicou da vida e se a­nulou bastante em função do ca­samento. Ao sublimar o genocí­dio dos judeus, se apegando ao fio universal da história viva da humanidade, ela acaba somati­zando seu inferno na paralisia.

Nas cenas em que é impingida a voltar a andar, seja no aco­lhimento (leia-se calor humano) do médico, seja no embate com o marido, Miriam Mehler é puro arrebatamento. Ao exteriorizar a raiva de Sylvia, ao mesmo tempo em que a personagem re­encontra sua força interior, a atriz vai ao limite do drama e ex­põe ali, atirada ao chão ou fragi­lizada na cadeira de rodas, o ta­lento que cristaliza os 40 anos de carreira.

O diretor Iacov Hillel (“An­gels in America”), de descen­dência judia, soube equilibrar a­qui as duas vertentes temáticas de Arthur Miller (anti-nazismo, pró-psicologia). Para tanto, con­tou com um elenco que é a subs­tância da montagem.

Soma-se ao brilho de Fran­carlos Reis e Miriam Mehler a entrega de Luiz Serra em cena, como o médico e vértice do tri­ângulo, responsável pelos lam­pejos que iluminam a consciên­cia do casal – ainda que Miller não seja nenhum pouco conces­sivo no desfecho da peça. Miri­am Lins e Tuna Dwek cumprem bem as funções de válvula de escape para o quinhão de humor num drama psicológico que pe­de o envolvimento do especta­dor a todo instante. Denis Victo­razo, por fim, completa o elenco com tranquilidade.

Com “Vidros Partidos”, sua peça mais recente, Arthur Miller estilhaça as histórias univer­sal e pessoal, refletindo até que ponto este cruzamento afeta a todos. Para o bem e para o mal.

Vidros Partidos – De Arthur Miller. Direção: Iacov Hillel. Quinta e sexta, 29h30; sábado, 19h30; domingo, 19h. Teatro Cultural Inglesa (rua Deputado Lacerda Franco, 333, Pinheiros, tel. 814-0100). R$ 10,00. Até dia 28 de fevereiro.

 

“Entrevista” tem síntese de texto e interpretação

São Paulo – Foram apenas sete sessões no Sesc Pom­péia, no período de 4 a 8 deste mês. Mas “Entrevista” merece uma longa temporada. O texto de Fernando Moreira Salles é uma instigante discus­são sobre dois aspectos antigos e, ao mesmo tempo, extrema­mente atuais da humanidade: o amor e a criação.

Contextualizando para a nossa época, a peça enfoca o en­contro de um homem e uma mu­lher separados dois anos atrás, sabe-se lá porquê. É a chance de Paulo, dramaturgo, e Marta, jor­nalista e crítica teatral, coloca­rem os pontos nos “is”.

A formalidade de uma entre­vista, onde se extrai informaçõ­es da fonte, descamba para a pessoalidade das lembranças. O passado ainda fresco no olhar, no toque, no desdém de um pelo outro.

Paulo estava pronto para o a­taque. Afinal, a despedida foi tão banal. Estavam em Veneza, cobrindo o festival internacio­nal de teatro, quando ela sim­plesmente escreveu um bilhete sucinto, dizendo que partiria as­sim, de chofre, para nunca mais dar o ar da graça.

As explicações passionais, recheadas de ironia, são interca­ladas por um exercício de metalinguagem que coloca em cheque sobretudo o teatro. Crítica e dramaturgo vão desde a busca do outro em Beckett, pas­sando por “esse teatri­nho feito de anaboli­zantes” até a franca re­taliação com a cultura da TV e seu nivelamento por baixo.

Finalmente, no seu depoimento aberta­mente sentimental, Marta explica as razões do coração que a levaram a deixar o companheiro. A bucó­lica imagem dele tomando ba­nho de mar em Veneza serviu-lhe de mola propulsora. Todo a­quele desalento demonstrou, enfim, que a incomunicabilida­de do casal era inevitável. Esta consciência, ainda que subjeti­va, motivou sua partida.

Dirigidos por Maria Lúcia Pereira, profunda conhecedora da arte do ator, Sérgio Mastro­pasqua (Paulo) e Élida Marques (Marta) têm uma atuação conci­sa, econômica nos gestos, movimentos. Há uma nítida valori­zação do verbo na montagem, como requer o texto e a curta duração do espetáculo (menos de uma hora). Warde Marx, co­mo o amigo comum do casal (Mário), testemunha ocular e si­lenciosa, cumpre seu papel sem comprometimento.

“Entrevista” tem, ainda, o mérito de trazer o diretor da Companhia das Letras, em seus primeiros passos, para o circui­to da dramaturgia brasileira. Salles demonstra conhecimento do ofício e não se aventura por causa pequena.
 

“Irmãs do Tempo” tira bruxas do estereótipo

 

São Paulo – Como o dra­maturgo inglês Tom Stop­pard, 60 anos, que pinçou os traiçoeiros de Hamlet da con­dição de personagens coadju­vantes para lhes dar vida em “Rosencrantz e Guildenstern Estão Mortos” (1966), a peça “Irmãs do Tempo” reporta às bruxas não menos shakespeari­anas que previram a ascensão e queda de Macbeth.

Os autores Cláudia Vascon­cellos e Marco Aurélio Pais es­creveram o texto mergulhando nos arquétipos das bruxas, para depois liberá-las dos estereóti­pos e desaguar numa pesquisa cênica de fôlego das intérpretes Raquel Ornellas e Neca Zaryos.

Tomando como base as ir­mãs Weird de “Macbeth”, as a­trizes desenvolveram uma atua­ção que prioriza o trabalho cor­poral. Dos gestos aos movimen­tos, passando pela extensão da voz e suas variantes onomato­paicas, ambas reinventam as no­ções de tempo, espaço e ação, transformando o palco em terri­tório livre para a imersão imagi­nária da caixa preta.

Com recursos que se aproxi­mam da linguagem do clown e passam necessariamente pela contato-improvisação, elemento recorrente da dança-teatro con­temporânea, Raquel e Neca se entregam à atuação prestando atenção aos mínimos detalhes. Apesar da formação acadêmica inerente das duas atrizes – a montagem é fruto de pesquisa de mestrado no Departamento de Artes Cênicas da USP -, fe­lizmente “Irmãs do Tempo” é despida de hermetismos afins.

Aqui, importa o jogo cênico entre Raquel e Neca, as nuanças que estabelecem a cada momento do espetáculo. Elas estão em cena por completo, interagem com os objetos cênicos, com os figurinos, adereços, de modo que “recriar” e o verbo que me­lhor define suas performances.

É engenhosa e instigante a forma como a interpretação e o texto se equilibram entre o hor­ror sangüinárío da história de Macbeth e a dimensão lúdica das histórias infantis. Assim, Rapunzel e Lady Macbeth sur­gem com o assombro e o onírico que lhes cabem – fio às vezes imperceptível.

Da temporada de estréia, no ano passado, para a reestréia a­gora, com sessões no Teatro Brincante, “Irmãs do Tempo” a­vançou bastante na sua comuni­cação com o público. Alcança síntese até quando cruza as bar­baridades da Inquisição com o episódio do índio pataxó quei­mado em Brasília.

O ex-secretário de Cultura em Mogi, Armando Sérgio da Silva, que dirigiu a peça na pri­meira fase, desta vez divide a di­reção com Regina Mendes, pro­fessora, dona de formação so­bretudo na dança. Daí a influên­cia na afinidade corporal.

A cenografia de Renato Cymbalista e Eduardo Canella corresponde à atmosfera sugerida pelo texto – os galhos suspen­sos contrastam com a moderni­dade high-tech. Também os fi­gurinos assinados por Christiane Gauche emprestam atemporali­dade às personagens ora capetas, ora anjos de ocasião. Bem e mal, outro diapasão para a monta­gem.

Nesta viagem – simbolica­mente, o espetáculo abre e fecha com um belo “barco” sugerido pelos corpos e vozes de Neca e Raquel -, o espectador tem a chance de penetrar o universo da bruxaria com introspecção e en­tretenimento garantidos. “Irmãs do Tempo” consegue ser experimental e acessível na medida certa. Sem concessão, sem redo­ma. Mas com leveza e muita in­ventividade. 

Irmãs do Tempo – De Cláudia Vasconcellos e Marco Aurélio Pais. Direção: Armando Sérgio da Silva e Regina Mendes. Com Raquel Ornellas e Neca Zarvos. Quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Teatro Brincante (rua Purpurina, 428, Vila Madalena, tel. 816-0575). R$ 10,00. Duração: 70 minutos. Até 1º de março.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 18 de janeiro de 1998.   Caderno A – 4

“Vida e Arte” traz memórias da atriz que debutou aos 47 anos e completa 87 em fevereiro 

VALMIR SANTOS

São Paulo – Você – permita-me dispensar o tratamento de se­nhora – descortina o passado com a matu­ridade que só o tempo vivido em sua plenitude pode dotar os seres humanos especi­ais. Embarcar na leitura de “Vi­da e Arte – Memórias de Lélia Abramo” é compartilhar conti­go, ao pé do ouvido, o curso de urna vida pautada pela forma­ção humanista, pela luta política e pelo ofício de atriz exercido nos palcos, na televisão no cine­ma.

Um casamento assim, em que a transcendência artística e a preocupação com o próximo se harmonizam, só pôde ser conquistado graças à coerência e perseverança da sua alma. Nascida no berço dos Abramos, você foi apresentada à literatu­ra, ao teatro, às artes, enfim, por obra dos pais, dona Yole e seu Vicente, eixos de uma família de imigrantes italianos, que chegaram ao Brasil em 1892.

Quinta da fieira de sete ir­mãos, você também manteve com eles uma relação de ternu­ra, de laços de cumplicidade que derrubavam distâncias con­tinentais. Ângela Maria, a Nenê, foi a meia-irmã e, claro, não menos querida que os demais, pois filha do primeiro casamen­to do seu pai, que ficou viúvo e conheceu sua mãe.

Lívio, o primogênito, acen­tuou a vocação de desenhista e artista plástico. Athos caminhou para o jornalismo e se especializou na crítica teatral. Beatriz foi a irmã com quem esteve mais próxima, compartilhando inclusive  os difíceis 12 anos de residência na Itália, em pleno espocar da Segunda Guerra Mundial, experiência que lhe deixaria sequelas para todo o sempre.

Fúlvio, o quinto mano, engajou-se na luta política, especificamente comunista, num Brasil dos anos 30 que passava pelo crivo ditatorial de Vargas. Mário, que  preenchia a casa com sua bondade e delicadeza, “desapareceu” aos 41 anos – sim, porque na sua família ninguém morre ou falece, mas desaparece. Ele estava fazendo um piquenique à margem de um então límpido Rio Tietê, quando foi passear de barco, este virou e o levou, afogado.

Cláudio, o caçula, tornou-se um dos principais nomes da história do jornalismo brasileiro, chegando a dirigir a redação da Folha de S. Paulo e sedimentar uma “escola” que faz eco em todos os jornais do País. O livro “A Regra do Jogo” (1988), escrito pelo filho, Cláudio Weber Abramo, conta sua trajetória e serve de parâmetro para os jo­vens que sonham merguhar na profissão.

No meio dos sete, você, Lé­lia, era o “abajurzinho” da farní­lia, como a defendeu carinhosamente o irmão Athos. Você divi­diu tristezas e alegrias com to­dos; aprendeu, ensinou. Hoje, prestes a completar 87 anos, mês que vem, você se vê sozi­nha no mundo. Foram-se os pais, os seis irmãos, sozinha, entre aspas, porque o destino lhe reservou um afeto de amizade, em várias frentes, que sedimentou seu caminho até aqui.

Lélia, são tocantes os relatos sobre a busca amorosa. Você, trotskista, namorou um militante leninista. Deixou-se levar pelo coração, escanteando um pouco a razão ideológica daqueles verdes anos de vida. Apaixonou-se pelo rapaz de inúmeras virtudes e um vício frenético: mulherengo à beça. Você, tão aguerrida, quem diria, fez vistas grossas, humana que é, porque as razões do coração pertencem a outra instância, sabe lá Deus qual. “Não sei se foi orgulho ou amor demais”, pondera em suas memórias.

Conviver com a solidão foi como que um estigma em todos esses anos. Por conta da incompetência assombrosa de um médico italiano, você deitou numa mesa de operação, em Roma, para extrair o ovário esquerdo, mas o desastroso cirurgião extirpou-lhe justamente o ovário sadio. “Além disso, ‘alguém’ esqueceu de suturar um vaso, provocando um choque hemorrágico pós-operatório, percebi­do tardiamente quando meu es­tado já era desesperador”, relembra. Foi um episódio, como muitos outros, que a marcaram para sempre. Este, em particular, tirou-lhe o direito de gerar um filho.

Ninguém passa incólume aos anos de guerra. Sua estadia na Itália, entre 1938 e 1950, veio confirmar ainda mais sua veia humanista. Testemunhar, in toco, os desvarios de Hitler na Segunda Guerra fez de você uma mulher antenada com as causas sociais – nem que isso lhe demandasse duas pátrias. Não foi à toa que você levou a bandeira da profissionalização do ator brasileiro à frente do Sindicato dos Artistas, em São Paulo.

Seu envolvimento com o movimento sindical chegou ao poto de testemunhar o lançamento do Partido dos Trabalhadores, no início da década de 80, consequência das greves que mobilizaram os operários do ABC em 1979. Você serviu como interlocutora para convencer o metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva, o Lula, a tomar a dianteira naquela semente do PT. Poucos anos depois, você viria a trabalhar na gestão de outra mulher de força incomum, a ex-prefeita Luiza Erundina, canalizando sua energia teatral para projetos comunitários.

Ah, sim, a atriz. A maturidade, mais uma vez, se fez presente no início da carreira. Você só foi subir ao palco profissionalmente aos 47 anos, interpretando, sintomaticamente, a operária Romana de “Eles Não Usam Black-Tie” (1958), peça que Gianfrancesco Guarnieri escre­veu em sua juventude. Cinco anos depois, você tremia no palco em “Os Ossos do Barão”, de Jorde Andrade, quando notou que o grande ator italiano Vitto­rio Gassmann estava sentado na platéia.

No dia do golpe de 64, lº de abril, você ensaiava “Vereda da Salvação”, também de Andrade. Antunes Filho, em seus primei­ros passos de diretor, decidiu suspender os ensaios, A montagem chegou a cumpnr uma curta temporada no TBC. Você interpretava Durvalina no palco,       mas na versão da peça para o cinema, naquele mesmo ano, sob direção de Anselmo Duarte, você foi escalada para fazer Dolores, uma mãe arrebatadora.

Sua experiência com a televisão nunca foi uma maravilha. Dona de uma consciência social contumaz, era difícil se eximir de crítica ao veículo. Sobretudo à toda poderosa Rede Globo, surgida na esteira do regime mi­litar. Sua saída da emissora, como descreve, é a melhor prova desse confronto intelectual em que os interesses humanos e os capitais se chocam. Participavas da novela “Pai Herói” (1979), dirigida por Gonzaga Blota, quando sua personagem, Dona Januária, “morreu” subtamente e você foi parar no olho da rua, ficando desempregada.

Perseguida pelas armadilhas do destino ou pelas injustiças, você nunca se esquivou de enfrentá-las. Foram tantos os obs­táculos, de toda ordem, que é de admirar a força com que você chega até nós para rememorar as lembranças, força-motriz de qualquer história pessoal. “Mas a vida sempre nos prepara situações inesperadas e às vezes dolorosas que não podemos alterar ou impedir – só nos resta ter paciência, suportar e sofrer”, ensi­   na você, escolada na arte do bom senso.

Lançamento conjunto da E­ditora Fundação Perseu Abramo e Editora da Unicamp, com um alentado material ilustrativo, “Vida e Arte” é calcado nas reminiscências, com precisão de detalhes como o pôr-do-sol e a tonalidade dos céus. Você faz questão de costurar os fatos históricos – realidade que tanto sublimou para compensar as perdas e danos pessoais. Lélia, deambular é teu verbo vitorioso, porque fizestes da solidão um instrumento para se agarrar aos gestos essenciais da vida como ela lhe é. Muitas vezes gestos pequenos e, por isso, gigantes.

 

Vida e Arte – Memória de Lélia Abramo – De Lélia Abramo. Editora Fundação Perseu Abramo tel. 259-8024 e Editora da Unicamp tel. 19-788-2015. 272 páginas. R$ 27,00.

 

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 23 de novembro de 1997.   Caderno A – 4

Peça de José Vicente mantém atualidade dos enfoques social e religioso

VALMIR SANTOS

São Paulo – Num primeiro que plano, como quer José Vicente, “Santidade” expõe a vida de michê com a devida mácula cristã. A prostituição masculina está aquém da retidão divina. Mas o autor transcende o tema. A peça também expia a noção de pecado segundo o peso da crença católica. Mais: avança para dentro mas de uma juventude vivida das relações humanas no que elas têm de superfície e essência.

Há 30 anos, quando o então presidente Costa e Silva censurou “Santidade”, em seu ataque de moralidade cívica, ele provavelmente se ateve a algumas frases de impacto que, não necessariamente, refletem o âmago da história. Por exemplo: “O Cristo morreu sufocado; a Igreja matou Cristo!” – é uma das sentenças espulmantes que saem da boca de Arthur, o personagem-vértice da peça. “Eu não acredito em santo sem esperma!”, continua. Mais: “O Deus da juventude está morto!”.

O que José Vicente “pregou” em sua primeira peça, escrita aos 22 anos, era muito mais do que uma pichação à Igreja Cató­lica. Os diálogos entre Arthur, ex-seminarista, e seu irmão Nicolau, na iminência de se tornar padre, constituem o eixo do texto. Arthur e Nicolau, uma corruptela do autor para homenagear o poeta francês Arthur Rimbaud.

Num pequeno apartamento barato do centro de São Paulo, os três personagens despem seus medos, angústias, desejos, iras, virtudes. Arthur vai ao inferno. Como michê, morando com Ivo, ele exorciza os fantasmas de uma juventude vivida em nome de Deus. Quando seu irmão chega, surge então a oportunidade de enfrentamento; de botar para fora o que ficou engasgado na garganta.

Arthur joga no limite da vida. É quem mobiliza os demais. Na interpretação visceral de Mário Bortolotto, o personagem atinge uma dimensão caótica da existência que é traduzida pelo ator em gestos estridentes e movimentos expansivos – como a reivindicar um território maior que o pequeno palco do Crowne Plaza, para efetivamente explodir. É no Arthur de Bertolotto/José Vicente que “Santidade” rouba fôlego do espectador – parece arrancá-lo da cômoda poltrona e jogá-lo ao centro do palco, tamanha é a emoção que pede e dá.

Na sua terna e delicada presença, o Nicolau de Nívio Die­gues é o contraponto perfeito. “A tua inocência me faz mal”, chega a confidenciar Arthur, perplexo com a ingenuidade do irmão, ainda a fugir do sexo e reverbe­rar a utopia cristã. “Ainda tenho medo de possuir meu corpo”, re­signa-se Nicolau. O jovem Die­gues demonstra segurança con­tracenando com dois atores ex­perientes.

O Ivo de Antonio de Andrade quebra a densidade da peça com sua ligeireza. Dono de uma buti­que, sustentando Arthur e agora Nicolau, exerce uma forma de poder que lhe concede companhia na cama. Com Arthur nas mãos, tenta seduzir também o ir­mão, ainda que em vão. Andrade é afeminado sem carregar na afetação; sem camuflar a solidão da qual o personagem também padece.

Montada por Fauzi Arap, co­tado no final dos anos 60 para o papel de Arthur, “Santidade” ganha nesses anos 90 uma aura stanislavikiana que o tempo o­fuscou um pouco. Arap é um excelente diretor de ator. Sabe o que quer. Quando a matéria-pri­ma humana é de bom grado, o resultado é um espetáculo vigo­roso. A imagem é forte: cama e sofá puídos num cenário que se faz preencher sobretudo pela expressão dos atores, marca maior do diretor.

Trinta anos depois, a atuali­dade de “Santidade”, final­mente em cena, é o maior indí­cio do poder de fogo de José Vicente com o teatro (“O As­salto”, “Hoje é Dia de Rock”, etc.). Homenageado recente­mente em “Ventania”, texto de Alcides Nogueira, dirigido por Gabriel Villela, Vicente sai um pouco da reclusão manifesta para compartilhar da revisão histórica que se vê no palco com sua dramaturgia. E esperar agora por “José Vicente – Vir­tuose”, peça inédita que encer­raria o enfoque religioso em seu repertório.

Santidade – De José Vicente. Quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Teatro Clowne Plaza (rua Frei Caneca, 1360, Cerqueira César, tel. 289-0985). R$ 20,00. Duração: 90 minutos.

 

Mário Bortolotto está em três peças

São Paulo – Mário Bortolotto é um dos fundadores do grupo paranaense Cemitério de Automóveis, criado há 15 anos em Londrina (PR).

No momento, ele está envolvido em três trabalhos na Capital: atua nos espetáculo “Santidade” e em “Medusa de Ray Ban” – nesta, com o grupo paranaense, também é autor e diretor. Já no monólogo “Jordan”, ele dirige Lucimara Martins (leia crítica das montagens Medusa de Ray Ban” e “Jordan” nesta página),que tra o monólogo da americana Anna Reynolds.

 

TRABALHO

No ano passado, Bortolotto esteve em cartaz na Capital com “Leila Baby”, um dos 20 textos que assinou e montou com o Cemitério de Automóveis.

Depois de mudar de Londrina para Curitiba, o grupo está sediado em São Paulo.

“Jordan” instala um silêncio de crua poesia

São Paulo – Qual a gênese de um criminoso? Em que estágio do passado se manifesta o primeiro sinal de que tal ser humano é propenso a matar, roubar? São questões que vêm à baila depois da apresentação de “Jordan”, o monólogo cortante da americana Anna Reynolds, na interpretação su preendentemente segura de Lucimara Martins.

Na base da vida como ela é, temos a história de Shirley Jones, uma interiorana garota inglesa que na década passada se aventurou pela vida com um sujeito que transava com outras mulheres dentro de casa, lhe dava surras e se tornou pai do seu único filho, Jordan.

Quando consegue separar-se do brutamontes, ela vai morar sozinha com Jordan. Sobrevive vendendo seu corpo.

Meses depois, o camarada volta engravatado, garboso, acompanhado da sua nova mulher. Não bastasse ter desgraçado a vida de Shirley, ele agora quer retirar o que lhe é mais precioso: o filho.

Shirley se vê sozinha e incapaz de proteger Jordan do pai maldito e, de quebra, do Estado que também pede a guarda do filho.

Numa certa madrugada, sai a esmo com o bebê, compra uma garrafa de vodca e algumas aspirinas para dor de cabeça.

Volta para casa e, daí em diante, só guarda na memória o fato de ter engasgado ao ingerir comprimidos e bebida. Naquela noite, viria à tona depois, ela asfixiou seu filho com um travesseiro.

Duro, cruel, com um final arrebatador (Shirley se mata no dia em que é absolvida pela justiça), o monólogo vai transcorrendo como um labirinto. Tanta amargura e delicadeza são expressadas no corpo e na palavra da intérprete.

O texto de Anna Reynolds é uma navalha. “É preciso ser bom para ser cruel”, afirma a personagem.

A fábula da princesa que, ao contrário de Shirley, consegue fugir com seu filho, acaba estabelecendo um paralelo contundente.

A atriz preenche o palco com uma movimentação apoiada somente num banco móvel. Lucimara Martins traz à tona a criança e a mulher; a visionária e a      guerreira que cabem dentro de Shirley.

CAMINHO ESTREITO

Quando deixou soprar a vida dentro de si, naquele primeiro passeio de moto com o homem que a jogou no inferno, a personagem real não tinha a mínima idéia de que o “caminho estreito de água até a lua” fosse tão difícil de ser percorrido.

O diretor Mário Bortolotto deixa Lucimara fluindo no espaço cênico com a leveza que o peso de uma existência trágica pode ter. Não há desperdício.

O silêncio e os gestos são trabalhados com coerência. Ce­nografia e figurino, assinados por Fábio Namatame, são acinzentados, sim, mas com um tratamento dramático que leva em conta a poesia do espaço.

A sonoplastia (baladas folk e blues), também de Bortolotto, servem como “blecautes” a cada avanço de tempo do texto e se ajustam à atmosfera algo etérea do espetáculo.

“Jordan” não comporta aplauso esfuziante ao final. Aqui, a realidade dos descaminhos chega em estado bruto. É transe, nó na garganta.

Lucimara Martins nem vem para a boca de cena revelar-se como atriz que é; prefere recolher sua Shirley na penumbra sagrada do teatro a expô-la a mais uma violência – a violência da luz da sociedade. 

Jordan – De Anna Reynolds. Com Lucimara Martins. Direção: Mário Bortolotto. Quinta a sábado, 21h30; domingo, 20h30. Centro Cultural São Paulo/Sala Paulo Emílio (rua Vergueiro, 1.000, Paraíso, tel. 277-3611). Os ingressos custam R$ 12,00. Duração: 50 minutos. Até 14 de dezembro.

“Medusa de Ray Ban” vê do olho do furação

São Paulo – “Medusa de Ray Ban”, a montagem do grupo paranaense Cemité­rio de Automóveis, estiliza a vi­olência banalizada sem derrapar no sensacionalismo fácil ou na caricatura idem, tão comum nos meios de comunicação. O texto de Mário Bortolotto, aqui tam­bém dirigindo e atuando, faz troça das intenções pequeno-burguesas; ri literalmente dos medos de quem é vítima mas, no fundo, conspira para sê-la.

A partir do mito de Medusa, a qual petrifica o olhar, a peça discute a violência contemporâ­nea. Em xeque, a frieza dos as­sassinos de aluguel. Desde o ga­roto que deseja contratar um ca­ra para matar sua mãe, até o cú­mulo de uma entrevista de um assassino num talk-show a la Jô Soares, o humor negro dá o tom.

A crítica ácida deste “wes­tem spaguetti”, como define um dos personagens, apaga qual­quer rastro de esperança cega. “Excesso de amor pode ser mais violento do que um tiro na tes­ta”, observa um rei do gatilho.

Na sua desventura com seres desconectados do meio social, perambulando ao léu pelas ruas da urbe, o dramaturgo Mário Borto­lotto atira pa­ra todos os la­dos (a famí­lia, a televi­são, o ideal romântico etc).

Curiosa­mente, po­rém, não dá um tiro em cena, apesar das armas que aparecem aqui e ali.

À vontade no palco nu e decadente da sala do Teatro Bra­sileiro de Comédia, o lendário TBC, Everton Bortotti, Fernan­da D’Umbra, José Pimentel, Pe­dro Roberto Fiori (impagável o seu Jô) e Bortolotto atuam com desprezo total à convenção.

Vão sempre além, na gestua­lidade e na fala, reinventando ti­pos que se aproximam da comicidade dos quadrinhos ou do ci­nema.

“Quando você for visitar a Medusa, não vá de óculos de ray ban; vá de óculos espelhados”. A sentença final é a perspectiva de quem vê do olho do furação, e não de fora. Perseu se aproxi­mou de Medusa e atingiu seu objetivo: decaptou-a. Quem está disposto a tirar os óculos escu­ros ao invés de perder as asas para a violência, como a que so­freu a corujá na parábola final do texto?

Medusa de Ray Ban – De Mário Bortolotto. Com a Cia. Cemitério de Automóveis. Terça e quarta, 21h. Teatro Brasileiro de Comédia (rua Major Diogo, 165, Bela Vista, tel 606-4408). R$ 10,00. Duração: 70 minutos. Até 17 de dezembro.


 

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 26 de outubro de 1997.   Caderno A – 6

Tusp resgata 30 anos depois, o espírito de 1968 na peça histórica de Consuelo de Castro 

VALMIR SANTOS

São Paulo – Passaram-se quase 30, anos, e 1968 continua dando o que fa­lar. “Prova de Fogo”, a primeira peça de Cansuelo de Castro, foi escrita naquele ano. O texto, a­gora encenado pelo grupo Tea­tro da Universidade de São Pau­lo (Tusp), soa datado em boa parte do seu conteúdo ideológi­có. Bill Clinton visitou o Brasil há poucos dias e não se viu grandes mobilizações anti-im­perialismo ianque, como se rotulava o bicho-papão capitalista em tempos idos.

Descontado o blablablá infi­nitesimal sobre os papéis hístó­ricos da esquerda e da pequena burguesia, o que realmente con­tinua chamando atenção em “Prova de Fogo” é a inconformação pungente dos seus perso­nagens. Três décadas atrás, os estudantes não precisavam de minissérie televisiva para sair às ruas.

A força da união, com per­dão do clichê, é a essência da peça de Consuelo de Castro. Seu olhar é coletivo. Quando cria atalhos para os relacionamentos amorosos, os diálogos perdem o brilho. Os paralelos pessoais, mesmo resvalando no comportamento da geração 68 (virgindade, aborto e fidelidade, remas recorrentes), são ofusca­dos pelo eixo político-social.

Nesta seara, Consuelo revela domínio pleno. Ela tinha 22 a­rios quando deu à luz sua primeira peça. Engajada no movimento estudantil à época, a au­tora escreveu do olho do fura­cão. A montagem do Tusp, sob direção de Abílio Tavares, privi­legia esta tensão e centra fogo no coletivo.

São 28 atores, boa parte de­les universitários sequer nasci­dos em 1968. No geral, de­monstram pouca intimidade com a arte da representação. As marcações de cena são visí­veis; toda a movimentação é rí­gida, “dura”, inclusive nas pou­cas coreografias.

A “moldura”, que esconde muito da espontaneidade, é compensada pela energia bruta do “coro”. É ali que Tavares explora toda a potencialidade des­ses jovens aguerridos. A rebel­dia juvenil como conteúdo hu­manista está na intenção dos gestos; nos gritos de guerra; na disparada pelo palco-corredor do prédio da rua Maria Antonia, mesmo local onde se deu o con­flito em 1968.

Um grupo de estudantes o­cupa a Faculdade de Filosofia e Letras da USP (hoje endereço do Centro Universitário Maria Antonia). Protestam contra a re­forma educacional do governo e endossam o descontentamento dos operários no País. A polícia dá ultimato de três dias para o prédio ser abandonado. “Prova de Fogo” se passa nesses eter­nos três dias, cruzando ficção e realidade.

Os universitários não cedem. A polícia, truculenta ao dobro naquela épo­ca, porque balizada pelo regime totalitário dos militares, invade o prédio e prende pelo menos 80 estudantes. Antes do cerco, a re­pressão havia matado um estudante que par­ticipava de uma passe­ata.

Abílio Tavares foi muito feliz na abertu­ra e fechamento do es­petáculo, com Luis (Milton Gruppo Jr.), o estudante assassina­do. Primeiro, ele sur­ge ingressando na es­cola. Depois, se des­pede para, em segui­da, morrer estirado no chão. Nas duas ocasi­ões, sempre com o “testemunho ocular” da bandeira do Brasil. Passado e presente se encontram com recur­sos cênicos simples e eficientes.

A história de Con­suelo de Castro parece um roteiro de filme, tanto impõe-se a ação, do início ao fim. Na montagem, destacam-se o cortejo das mães e a cena da invasão, com o corre-corre, gritos, tiros e bombas de gás simulados pela coreografia e pelo espocar de bombinhas.

Não há grandes intepretaçõ­es. Álvaro Franco (Zé Freitas) tem o melhor desempenho, colocando bem a palavra, fazendo conciliar os lados Don Juan e re­volucionário do líder dos estudantes. Dar peso e cadência às falas é o que falta a Cléuma Nu­nes Argolo (Júlia). O papel de a­mante e opositora em causa comum constitui, em si, um desa­fio que não é vencido em sua plenitude, por causa do desperdício das pausas. Boa surpresa Marília de Santis (Vilma) cantando ao violão. Idem para o bêbado de Regis Salvarani (Alberto), bambean­do com segurança, sem fazer uso da caricatura. Quando atira sua arma imaginária contra as mazelas, apontando para a pia­téia, esta engasga o sorriso com um silêncio pertubador.

Em 1993, Aimar Labaki montou a mesma peça, no mes­mo local. O público seguia os a­tores em algumas salas do pré­dio. Com elenco maduro, por assim dizer, o espetáculo inves­tia mais na interpretação. Havia densidade nas cenas.

Aqui, na “Prova de Fogo” do Tusp e Abílio Tavares, importa mais o trânsito, a “ponte” de uma geração reprimida, mas inquieta, para uma geração Coca-Cola, “livre” mas amorfa. Caíram os muros, os “ismos”. E os 28 atores que picham a parede, urram e aplaudem-se ao som de Legião Urbana estão a reivindi­car todo o tempo do mundo. In­felizmente, a urgência dos tempos está aí. Por um instante, movido pelo impulso daqueles estudantes, a utopia parece se instalar. Contudo, é sair do teatro e lá vêm as imagens da exposição, no próprio saguão, das fotos terríveis de corpos de judeus mortos pelo regime nazista… Ontem, hoje e sempre?

Prova de Fogo – De Consuelo de Castro. Direção: Abílio Tavares. Com Tusp (Mariana Voos, Pedro Luis Sanches, Alexandre Lima, Anderson Silva Lins, Andréa Reis etc). Segunda a sábado, 21h; domingo, 20h. Centro Universitário Maria Antonia (rua Maria Antonia, 294, Santa Cecília, tel. 255-5538) R$ 10,00 e R$ 8,00 (sexta) 100 minutos.

 

“Peep Show” diverte sem compromisso

São Paulo – O descompro­misso é a própria razão de ser de “Peep Show”. Um musical? Uma revista? Um show? Todos. O espetáculo pa­rece o tempo todo em cena aber­ta. As 17 moças e os três rapazes dão conta de entreter com pouco samba no pé e muitas gags em torno do universo dos peep shows – cabines onde as garotas fazem striptease mediante de­pósito de ficha no caça-níquel (“Paris Texas”, 1976, o filme de Win Wenders, propagou este í­cone voyeur).

Os diretores Maurício Mo­rais e Marcos Botassi instalam um clima de boate no palco. Melhor, estendem o agito até às poltronas. Entra-se no Teatro Hilton e lá estão as peeps, as dançarinas voluptuosas em suas plumas e peças diminutas.

A história trata das tentativas ingratas de um cliente, Joel Ju­bileu (Antonune Nakhle), na escolha da moça que se encaixe no seu objeto do desejo: aquela que saiba sambar com molejo origi­nal.

Quem comanda a casa é Tâ­nia Tubarão (Eliete Cigarini). Sob suas ordens, as garotas en­carnam fantasias para atender ao menu de homens exigentes. Assim, Rose Rímel (Adriana Mattos), Pamela Power (Cibele Cavalli), Priscila Pistache (Cláudia Cavalheiro), Tina Thinner (Heloísa Nur), entre outras, vão desfilando suas “qualidades” para um insaciável Joel Jubileu.

Em meio ao périplo do cliente, desenrola-se a disputa pelo “ponto” das garotas, a chegada de “carne nova”, Fifi Frontal (Christina Guimarães) e o galentaio do soldado Rigobelo; (Tico D’Godoy).
 

Peep Show – De Maurício Morais e Marcos Botassi. Com Andréa Duque, Paula Miroe, Paulo Mendes, Veridiana Toledo e outros. Sexta e sábado, meia-noite. Teatro Hilton (rua Ipiranga, 165, Centro) R$ 20,00.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 12 de outubro de 1997.   Caderno A – 3

VALMI
R SANTOS

Maisuma Mostra Escolar de Teatro. A quarta edição do evento representa o esforço do diretor de Cultura, Denerjanio Tavares de Lyra, no exercício da manutenção da cena mogiana. Infelizmente, a realidade conspira sem muito alento para este que é mais um dos eventos temporões aos quais a cidade se acostumou nos últimos anos.

O projeto Oficinas de Inverno, sempreem julho, o carro-chefe da Cultura, é o melhor exemplo desta concentração que não aponta nenhum caminho, a não ser o da fragmentação, do estilhaçamento de qualquer processo criativo.

Ou alguém ainda acredita que um oficina de iniciação teatral de um mês torna qualquer pessoa capacitada para subir ao palco e dizer a que veio? Falta, e sempre este crítico insistiu na tecla, um trabalho efetivo que fundamente o ofício de ator. Na cidade, temos um esboço do TEM e do Tumc. Cada um a seu modo, Clarice Jorge e Adamilton Andreucci Torres disseminam suas utopias possíveis – ou não.

Para a consolidação de um grupo teatral, de escritores, de artistas plásticos, de músicos, enfim, qualquer que seja o chão de estrelas, o tempo é precioso. O amadurecimento criativo por vezes dura uma geração. Nada surge do acaso.

Teatro escolar raramente dá em bom teatro. O que se espera de uma mostra como a que começa quarta-feira é justamente o mínimo da aventura do palco, do mergulho artístico para trazer à baila a magia da comunicação ator-público. Um pouco desta aventura foi proporcionado em mostras anteriores, com destaque para os trabalhos ancorados por Robson Santos e de Eliene Rodrigues.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 12 de outubro de 1997.   Caderno A – 4

Berliner Ensemble questiona a canonização do mito, seus herdeiros e a falta de verba

VALMIR SANTOS

São Paulo – Problemas, problemas, problemas… Quer na boca do primeiro-ator do grupo, Martin Wuttke, 35 anos, quer na boca do as­sistente de direção, Stephan Suschke, 36, trata-se da palavra mais repetida quando o assunto diz respeito ao Berliner Ensem­ble. Da “sombra” do seu funda­dor e ideólogo, Bertolt Brecht (1897-1956), passando pela marcação cerrada dos herdeiros, pelo patrulhamento político-ideológico após a queda do Mu­ro de Berlim (1989), até o recor­rente aperto financeiro, enfim, vários são os obstáculos enfren­tados pela lendária trupe alemã criada há 48 anos.

São notas destoantes tocadas sem constrangimento, aliás com muita transparência, por Wuttke e Suschke, na conversa com os jornalistas brasileiros na quarta-feira passada, véspera da estréia de “A Resistível Ascensão de Arturo Ui”. A montagem foi en­cenada quinta e sexta, no Teatro Sesc Anchieta, e marcou a primeira turnê do Berlilner Ensem­ble pelo País, com apoio do Ins­tituto Goethe.

Wuttke fala dos problemas com conhecimento de causa. Ele foi diretor artístico da com­panhia durante nove meses, lo­go depois da morte de Heiner Müller, no final de 1995, que in­clusive assina a direção do espe­táculo apresentado em São Pau­lo. Wuttke abdicou do cargo jus­tamente por causa da “canoni­zação” que ainda cerca a obra do dramaturgo alemão.

“Os herdeiros da família de Brecht e muitos políticos ainda vêem a obra como se fosse um museu. Quem tem idéias novas encontra muita resistência”, ar­gumenta o ator.

No contexto ideológico, o entrave é a revisão histórica pela qual o mundo geo-político vem passando nos anos 90. Para Wuttke, o teatro político como instrumento revolucionário não se sustenta mais com o panora­ma atual. Uma alternativa, des­taca o ator, seria encontrar uma terceira via, fiem à esquerda, nem à direita, que permita um novo ponto de vista.

Por trás dos seus óculos es­curos, com pinta de ator cine­matográfico, Wuttke aprofunda sua análise. Na cena alemã, o Berliner Ensenble constitui uma das últimas resistências ao cha­mado “teatrão”, aquele que reza segundo o lucro comercial. “Hoje, nossos palcos correm atrás dos sucessos da TV e do ci­nema”, critica.

Conseqüentemente, mudou também a percepção do público. Antes do Muro cair, predomina­vam os espectadores do lado o­riental da cidade. Hoje, a platéia é formada basicamente por gen­te que tem o olhar ocidental co­mo parâmetro de espetáculo. “Antes, comprava-se cinco in­gressos com o valor de uma camiseta. Hoje, o custo de cinco camisetas equivale a um ingres­so”, compa­ra o assis­tente de di­reção, Stephan Suschke. Ao que pa­rece, o péri­plo para se levar uma montagem ao palco, nos tempos que correm, é tão co­mum aqui quanto lá fora.

E por fa­lar em di­nheiro, os represen­tantes do BE não re­velam o va­lor, mas ga­rantem que o subsídio do governo alemão re­duziu consi­deravelmente nas últimas temporadas. Para man­ter uma equipe média de 30 pessoas, incluindo o elenco de 22 atores, é preciso muito fôle­go administrativo. O que Wutt­ke provavelmente percebeu, de­cidindo canalizar toda sua ener­gia para o palco – o empreendi­mento, no caso, é de grande montagem, mas condizente com sua condição de artista maior, co­rno os críticos do seu país reco­nheceram quando da estréia de “Arturo Ui”, em 1995, outogan­do-lhe o prêmio de melhor ator daquele ano.

Wuttke, é claro, não chegou a conhecer Brecht. Ele não mitifica tanto as teorias do ho­mem que catalisou a revolução teatral na Alemanha pós-guer­ra. Na sua opinião, a técnica do distanciamento se tornou lugar comum em qualquer montagem nos quatro cantos do planeta, como uma incorporação ele­mentar. “Um personagem mau tem que ter algo de bom tam­bém, e vice-versa. Se for uma, coisa só, fica muito chato”, explica. Ele faz bagle das milha­res de toneladas de papéis gas­tos em livros que mais teorizam sobre o distanciamento do que realmente o levaram à sua prá­tica.

Peça adapta gângster para o regime nazista

São Paulo – “A Resistível Ascensão de Arturo Ui” foi escrita por Brecht em 1941, durante o exílio na Finlândia. Ele se inspirou na Chicago de Al Capone e suas guerras de gansters para reproduzir sua época e o período nazista. Go­ebbels, o homem que ascendeu Hitler, por exemplo, é um dos personagens mais explícitos.

A crítica de Brecht, porém, transcende o nazismo. O dramaturgo quer desacreditar também a sociedade sem es­crúpulos, dominada por egoís­tas e arrivistas, o mundo sem solidariedade do capitalismo.

“Arturo Ui é um papel fas­cinante. Ele é um bom entretai­ner”, observa o intérprete Mar­tin Wuttke. A turnê brasileira do Berliner Ensenble foi des­falcada pelo ator veterano Ber­nhard Minetti, 90 anos,com problemas de saúde. Sua per­formance no papel de Ator (dentro da peça) é uma das mais elogiadas pela crítica tea­tral alemã.

O BE foi fundadopor Helena Weigel e Brecht em 1949. Após a morte do autor, em 1956, Helene continuou seu trabalho. Como sucessores dela, passaram pelo grupo Ruth Berghaus e Manfred Wekwerth – até que no início da temporada 1992/93 o BE foi transformado de teatro municipal em companhia limitada. 


Wuttke comanda espetáculo

São Paulo – Não foi por acaso que Charies Chaplin associou o seu célebro personagem Carlitos à figura de Adolf Hitler. Há muito de cômico na expressão gestual do ditador. A começar pelo bigodinho indefectível. Pois o ator Martin Wuttke e a encarnação dos dois no papel de “A Resistível Ascensão e de Arturo Ui”.

E ele, Wuttke, o dono do es­petáculo. Nas apresentações do Berliner Ensemble no Teatro ­Sesc Anchieta, quinta e sexta-feira passadas, o que se viu foi um trabalho esmerado de ator.

Wuttke traduz em trejeitos, cacoetes e andar manco a personalidade esquizofrênica do mafioso criado por Bertold Brechet. Um texto interpretado em alemão, com tradução simultânea, e ainda assim o ator vence a barreira da língua para ter o público em suas mãos. Não foram poucas as gargalhadas em quase três horas de encenação.

A montagem de “Arturo Ui” por Heiner Müller é estupenda pela matéria-prima humana. Em cena, 22 atores tarimbados, de técnica apurada, com destaque para Hermann Beyer (Roma), Stefan Lisews ki (Dogsborough) e Michael Altmann (ator).

 

Espetáculo abençoa a imagem como ela é

São Paulo – “Uma contradi­ção dialética, sem síntese”.

A frase que o Papa/Zé Cel­so diz no canto 2 dos seus “solu­ços” capta muito bem a alma deste artista seminal e controver­so da cena teatral brasileira. Seu espetáculo mais recente, “Ela”, expõe um ator e encenador em plena forma, a sustentar sua arte no corpo quebradiço pelos 60 anos, humano que é, mas alicerce do Teatro Oficina.

Expõe não, escancara. É na porralouquice, na quebra de qualquer resquício de organiza­ção, de ordem, num alheamento ímpar, que a companhia Uzyna Uzona conspira para fazer valer a energia bruta da atuação. A marca dionisíaca, como em “Ham-let” ou “Bacantes”, está lá no “corredor” arquitetado por Lina Bo Bardi. Qual espetáculo deixaria o público esperando do lado de fora, cerca de 50 minutos, enquanto atores e cenógrafos estão a pendurar no teto do teatro os retratos gigantes de Cacilda Becker e João Paulo 20, ambos decorados com bexigas douradas, reluzentes? Claro, não há nada de vanguarda nisso. Ao contrário. Na estréia houve gente que até reclamou. Assim que abriram-se as portas, porém, o que importava então era a festa.

“Ela” começa, enfim. A sensação de faxina que a cenografia imprime condiz com a “limpeza”, o “enxugamento” do elenco. Não está em cena o jogo coletivo, a ocupação desesperada do espaço, mas a fluência requerida de cada um dos intérpretes. A exigência é maior.

José Celso Martinez Corrêa, Zé Celso, serviu de epicentro no mesmo dia em que seu personagem real beijava o solo do Rio de Janeiro. Sob o signo de Jean Genet, ou São Genet, dramaturgo francês morto em 1986 (“O Balcão”, “As Criadas”, “Pombas Fúnebres”), o ator surge vitalizado, senhor absoluto do espetáculo.

Em suas vestes papais, alvas; em sua máscara facial que equilibra a expansão de um Marcel Marceau (Bip) ou a introspecção de um Kazuo Ohno, Zé Celso canta, dança e domina o verbo com envolvimento. De onde quer que se sente, mesmo quando a visão é prejudicada pela estrutura da arquibancada, é impossível não prestar atenção nele.

O Mestre de Cerimônias (Marcelo Drummond) recepcina o Fotógrafo (Fransérgio Araújo) para tomar imagens do Papa (Zé Celso). Um Cardeal (Vadim Nikitin), um doidivanas, chega a ser confundido com Sua Excelência. Os quatros, sobretudo os três primeiros, estabelecem diálogos em que predomina o tom filosófico, existencial.

“Se são meus olhos, não será Ela. Se é Ela, não serão meus olhos”, divaga o Mestre de Cerimônias, numa performance segura de Drummond, um cecerone diante da platéia. “Só porque sou Papa não passo de pose?”, dispara Zé Papa, preocupado em encontrar um ângulo que o aproxime mais de Deus – de olho nos 15 milhões de “selvagens” que esperam pela graça dos santinhos. A imagem, Ela, só é atingida quando Zé Papa senta no penico. Mas “papa não tem c…”, desconsola-se.

As melhores passagens acontecem nos “soluços” divididos em cinco cantos. Os três declamados por Zé Papa destacam-se pela presença cativa do ator – movimentos leves, inclusive tocando ao piano, como num musical da Broadway nos anos 50.

Bastante oportuna a montagem. “Ela” destoa do coro hipócrita da Imprensa em torno do poder do Vaticano. “Ela” celebra Genet em seu corte mais uma vez profundo de um modelo hegemôni­co de sociedade que tanto desprezou em vida, sob a perspectiva do porão, do subsolo. “Ela” faz as pazes de Zé Celso com a cena aberta em grande estilo, com o público nas mãos, sem necessariamente tangenciá-lo.

“Ela” é o risco equilibrado de quem perscruta os assim chamados deuses do teatro. Atirando-se contra a falta de dinheiro, o desamparo do Estado. Aventu­rando-se na maravilhosa contribuição dos erros e acertos que fazem de cada apresentação uma experiência única. Nesse terreno, Zé Celso é a benção em pessoa. 

Ela – De Jean Genet. Direção: José Celso Martinez Corrêa. Com Cia. Uzina Uzona. Quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Teatro Oficina (rua Jaceguai, 520, Bela Vista, tel. 604-0678). R$ 20,00. Às quintas, todos pagam meia. No próximo, excepcionalmente, não haverá sessão. 90 minutos.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 05 de outubro de 1997.   Caderno A – 4

Atriz é destaque da montagem dirigida por Jorge Takla e centrada no mito datragédia grega

VALMIR SANTOS

São Paulo – Começa o es­petáculo e Medéia respi­ra fundo, arranhando o silêncio que é quebrado logo em seguida, com uma se­quência verborrágica de tirar fôlego, literalmente. O prólogo de Walderez de Barros, no pa­pel-título, escancara para o público, de chofre, que estamos diante de uma avalanche de emoção de estado bruto – e la­pidar.

Uma verdadeira dama do teatro brasileiro, a fazer páreo com uma Fernanda Montene­gro, uma Marília Pêra, Walde­rez é o álibi mais convincente do diretor Jorge Takla para a abordagem do mito na adaptação que fez para a tragédia grega. Takla visita os textos de Eurípe­des e Sêneca para singrar o ho­mem moderno e iluminar suas vicissitudes.

A Medéia que Walderez mostra é menos a mãe assassi­na, capaz de pôr fim à vida de seus filhos em nome do amor. Expõe, sim, a permissividade da alma em sua queda. Mata para punir Jasão, o marido que a troca por uma princesa. “Quero que eles sejam filhos de rei”, justifica um Jasão cal­culista, frio até à medula no seu invólucro de sábio. No trânsito entre os limites da loucura e da razão, Medéia é mo­vida pelo coração que bate em seu peito.

Sabe-se que clássicos não são para qualquer um. Paulo Autran esperou anos a fio para chegar aos pés de Rei Lear, le­vado à cena em temporada re­cente. Claro, Walderez não a­braçou Medéia por acaso. No palco do Sesc Anchieta, cada gesto, cada olhar, cada palavra a propagar pelo ar, tudo reverte em esplendor, em arrebatamen­to. Walderez é vibrante. Com seu corpo entranhado na perso­nagem, resta o desequilíbrio a­tordoante, o transe diante do ho­rizonte finito. Nada é desperdi­çado.

Na “Medéia” de Takla, ela é epicentro. O determinismo mas­culino da tragédia é como que dissimulado pela presença da a­triz. Jasão (Francarlos Reis), Creonte (Oswaldo Mendes) e o Coro (seis rapazes) giram em torno da mãe-esposa-abandona­da, depois expatriada, desolada. E tamanha a presença e a força de Walderez em cena, que a me­mória pesca a “Des-Medéia” de Denise Stoklos, aquela que dá a volta por cima e vira o jogo. Mas os mitos são mitos…

Como diretor de óperas, também, Jorge Takla dá um tratamento etéreo à montagem que confere com uma perspectiva contemporânea da tragédia. A luz que assina ao lado de Davi de Brito, imprime um visual di­fuso no tempo e no espaço. O cenário de Charles Moeller, com suas portinholas e paredes de re­boco, também acentuam essa distensão. O deslocamento do Coro e sua interação com os per­sonagens centrais tangencia a a­ção com fluência.

A montagem de “Medéia” conquista pela sua limpidez e concomitante visceralidade. Consegue ser funcional sem a­borrecer. Emociona pelo que há de mais sagrado no teatro: o ator. A diva Walderez de Bar­ros, esbanjando maturidade, le­va nas costas a grandiosidade do papel e a responsabilidade de ter o público nas mãos, do i­nício ao fim. Melhor: transcen­de, porque sua Medéia é me­morável.

 

Medéia – De Eurípedes e Sêneca. Adaptação e direção: Jorge Takla. Tradução: Mário da Gama Kury. Com Carlos Teixeira, César de Castro, Eliézer de Souza, Kao Monteiro, Otávio Juliano, Rodrigo Lombardi e outros. Quinta a sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Sesc Anchieta (rua Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, tel. 256-2281). R$ 20,00 e R$ 10,00 (comerciários e estudantes). Até 2 de novembro.

  

“Noturno” quer expurgar a modernidade

São Paulo – Nos seis anos de intervalo da estréia do musical “Noturno”, as mu­danças pessoais não foram me­nos aceleradas do que as glo­bais. Em 1991, a bandeira da paz e amor a la anos 70 já se mostrava defasada com os tem­pos de individualização sem fim. Agora, na reestréia, a sen­sação é de que o roteiro assina­do e dirigido por Oswaldo Mon­tènegro continua navegando contra a corrente.

Na cruzada contra “a moder­nidade clara”, contra “o mundo conformado”, o cantor e compositor de “Bandolins” faz um libelo à existência poética. Ou sseja, quer através da música transmitir toda uma filosofia de vida canalizada para o prazer.

“Noturno” exorciza a veloci­dade com o que resta de utopia possível. Desacelera para dar espaço ao sonho, à arte por ex­tensão.

É uma pretensão e tanta pa­ra uma platéia que beira o his­terismo a cada canção, urrando e aplaudindo como se num au­ditório de programa de TV.

A contradição, que se dá também dentro do palco, no e­lenco gigante de 60 jovens bas­tante esforçados – e empolgados – enfim, a contradição reflete o próprio estado de coisas a que chegamos: centenas de adoles­centes assistem ao que não têm condições de colocar em prática na vida real, por impotência, que seja, diante do “sistema”.

Como numa das falas do tex­to, os espectadores de “Notur­no” são jovens que, em sua mai­oria, saem à noite para procurar o que nunca vão encontrar. Não é à toa que o espetáculo lembra, em algumas passagens, o simi­lar que marcou época pelo seu conteúdo revolucionário: “Hair”, que chacoalhou o status quo norte-americano na década de 60, em oposição à Guerra do Vietnã.

Mas a “revolução” de “No­turno” não é tanto de ordem po­lítica ou estrutural; é iminente­mente pessoal, interior, de den­tro para fora.

Quanto à montagem, de vol­ta ao cartaz no Teatro Dias Go­mes, mantém muito da concep­ção original. Não há, como nos últimos musicais que vêm sendo apresentados nos palcos bra­sileiros, aquele virtuosismo téc­nico ou mesmo exarcebação es­tética.

Pelo despojamento das cenas e pela exploração dos espaços a­lém-palco, “Noturno” se assemelha a um trabalho circense, onde a performance física dos a­tores é exigida a todo instante.

 

LEITURA

Os quadros não seguem, a­parentemente, uma narrativa u­niforme. São músicas/histórias independentes, em que a leitura se dá mais pela interpretação vocal e pela movimentação coreográfica – esta muitas vezes “poluída” e ainda presa a uma marcação mecânica.

Quando se deixa levar pela dramatização, sempre recorren­do à comédia aberta, como em “Surfistas de Cristo”, o resulta­do é regular.

Falta um processo mais pro­fundo nas atuações. Sobra cari­catura gratuita, porém cara à hegemonia do projeto. A Oficina dos Menestréis, comandada por Deto Montenegro (irmão) e Candé Brandão, explora nos cursos de ator o reflexo, a per­cepção e a intuição.

No palco, em nome do que pode ser uma valorização ob­sessiva do gesto e do movimen­to, dá a impressão de que “ma­lhar” importa mais do que “atu­ar”, quando deveria ser o con­trário.

“Noturno” se sustenta mes­mo pela música. Maior evidên­cia disto é o lançamento do CD com as 19 canções do espetá­culo, com letras de Oswaldo Montenegro, Peter Gabriel, U2 e Prince (ops, ex), entre outros.

As interpretações de Tania Maya, Estela Cassilatti, Débora Reis, Eduardo Costa e Marcelo Palma traduzem na voz o espíri­to libertador proposto pelos au­tores. Em especial o trio femini­no arrebatador – Tania Maya, ressalta-se, é a Enya brasileira, com toda a sua peculiaridade preservada, como se viu em re­cente participação no show do “padrinho” Oswaldo Montene­gro. 

Noturno – Direção: Oswaldo Montenegro. Com grupo Oficina dos Menestréis. Segunda a terça, 21h. Teatro Dias Gomes (rua Domingos de Moraes, 348, próximo ao metrô Ana Rosa, tel. 571-6177). R$ 15,00. 75 minutos.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 14 de setembro de 1997.   Caderno A – 4

Nelson de Sá lança coletânea de textos sobre a cena teatral na metade dos anos 90

VALMIR SANTOS

São Paulo – Em cerca de nove anos de crítica, Nelson de Sá conseguiu imprimir um estilo bastante adverso dos seus contem­porâneos e predecessores na a­nálise jornalística do teatro. Sua atitude pouco condecendente cóm a chamada classe teatral, esquivo ao paternalismo macar­rônico, é um diferencial que de­põe em favor de uma ética mais do que jornalística, pessoal.

Se Frank Rich, o crítico do “New York Times”, é conhecido como “o açougueiro da Broadway, como Sá gosta de lem­brar, este seria então o equiva­lente no jornalismo brasileiro, guardado o devido tom sensaci­onalista. A contundência e a sem-cerimônia com que assina suas críticas na “Folha de S. Paulo” lhe rendeu, como se pra­xe, muitos “inimigos”. Mas, por outro lado, o respeito também fundamentou-se.

O distanciamento do perso­nalismo afetado de autores, di­retores e atores, laureados até final dos anos 80, permitiu ao crítico se ater somente ao objeto artístico, ao espetáculo em si. A troco de muitas réplicas, de mu­itas cartas desaforadas, de muita bílis destilada, o jornalista da “Folha” acabou diluindo um pouco da cultura protecionista em relação aos artistas de teatro. Chega de piedade e vamos à arte, que é o que interessa, parece ter exclamado.

Quando começou a escrever sobre teatro, Sá estava na casa dos 27, 28 anos. Em função da idade, trazia um desprendimen­to para transmitir ao leitor, alvo confesso, o que pressupunha verdade, por mais que às vezes subjetiva. Escrever para um jor­nal que endeusa a objetividade também foi – e continua sendo – desafio e tanto.

Teatro é arte de uma humani­dade infinita. Sintetizar a apre­sentação de uma peça com olhar hermético é sacrificar sua es­sência. Nelson de Sá surge na platéia sempre munido de blo­quinho, anotando falas/falhas. Se deixa respaldar pela técnica, obviamente, mas a percepção a­guda está lá, antenada com a emoção.

Não faz o gosto não gosto. Mas não tem pudor algum em concluir que uma peça é chata. Tampouco se esquiva da beleza de uma Bete Coelho, elogiando-a ­como bela, sim. Conceitos subjetivos, vale lembrar de novo, sobrepostos ao padrão jor­nalístico. Ele, crítico, também se permite um pouco especta­dor. Sentimento e razão, eis a dupla via.

São considerações prelimi­nares de quem acompanhou, na primeira metade desta década, boa parte das críticas publicadas na “Folha”. Elas estão agora compiladas em “Divers/Idade – Um Guia para o Teatro dos Anos 90”, lançamento da editora Hucitec. Aqui, Nelson de Sá reúne seus principais textos e produz um instantâneo do que se está levando nos palcos do Brasil e do mundo. A “orelha” é assinada por José Celso Marti­nez, enquanto a fotógrafa Leni­se Pinheiro responde pelo rico material ilustrativo.

De 90 a 96, o exercício da crítica representou também o amadurecimento do jornalista. Antes, Sá conheceu Miroel Sil­veira, trabalhou com Paulo Francis. Se angustiou pela in­fluência “avassalado­ra” de Décio de Almeida Prado, 80 anos, o pai da crítica tea­tral brasilei­ra. Essa formação é descrita no último texto do volume, adaptação de palestra sua no Festi­val Internacional de Londrina.

Em 479 páginas, a­companha­se o esforço obsessivo de Sá em inter­pretar para onde estão soprando os ventos do te­atro. Esta ânsia pelo novo, pelo crítico-ante­na a que se propõe, bali­za o trabalho do jornalista na “Folha”.

Algumas questões lhe são pertinen­tes. Na vira­da dos anos 80 para os 90, a estética visual cedeu espaço também para o verbo, numa valorização da dramatur­gia. Como sintoma maior, o crítico cita a morte do encenador polonês Tadeuz Kantor, em de­zembro de 1990, fonte da qual Gerald Thomas bebeu até a úl­tima gota.

Nessa guinada para a drama­turgia, portanto, despontam re­vival de Shakespeare e Nelson Rodrigues. Na esteira, surgem nomes na cena brasileira, como Luís Alberto de Abreu, Fernan­do Bonassi, Beatriz Azevedo, Hugo Passolo, Bráulio Tavares.

O critico também identifica a retomada de um teatro popular calcado no rito religioso. Encenadores como o pernambucano Romero de Andrade Lima (“Au­to da Paixão”), o mineiro Gabri­el Villela (“Rua da Amargura”), e o paraibano Luiz Carlos Vas­concelos (“Vau da Sarapalha”) catalisam uma simbiose entre o erudito e o po­pular. E o acento religio­so, cristão, transcende o regional e che­ga à cultura ur­bana nas mon­tagens do jo­vem diretor Antonio Araú­jo (“O Livro de Jó”).

“Divers/Ida­de” reflete ou­tro aspecto marcante na crítica de Sá. Trata-se de uma preocupa­ção com o teatro que estã sendo feito lá fora. Ele cos­tuma acompa­nhar tempora­das em Lon­dres e Nova Iorque e acaba servindo como introdutor de muitos nomes até então des­conhecidos por aqui. Nes­ta era globali­zada, nada mais pertinen­te.

Foi assim que “Angels in America”, a peça do americano Tony Kushner, começou a ga­nhar espaço no Brasil. Sá consi­dera este o espetáculo-síntese dos anos 90, com sua forte te­mática social, política, sexual, enfim, demasiada humana. E se leu sobre o diretor canadense Robert Lapage, sobre a diretora americana Elizabeth LeCompte (que depois veio ao Brasil com seu Wooster Group). E se leu sobre o escritor e dramaturgo caribenho Derek Walcott, de­pois Nobel de Literatura, que reivindica a volta dos poetas ao teatro, expurgados pela cena moderna (ou pós).

Além das críticas, propria­mente, o livro apresenta entre­vistas e panoramas. Sá, por e­xemplo, costuma “visitar” a temporada carioca uma vez por ano, estabelecendo a ponte num eixo normalmente picha­do pelo preconceito em relação ao “teatrão”, comercial. No Rio, como se sabe, existem óti­mos trabalhos com gente como Aderbal Freire Filho, Amir Haddad, Moacyr Góes e Enri­que Diaz, para citar alguns di­retores.

Como o próprio intertítulo sugere, “Divers/Idade” resulta exatamente num guia para o que vem sendo feito nos palcos brasileiros e internacio­nais. É claro, não se po­de abarcar tudo. Sá até que tenta. De quando em vez assiste a algum espetáculo “à mar­gem”, como o fez em “Boca de Lobo”, com garotos de periferia que verteram a linguagem do rap para o teatro.

O livro constitui, por extensão, uma aprecia­ção crítica da crítica. A coletânea de textos ex­põe um Nelson de Sá passional, que pulsa pe­lo teatro diante de tanta adversidade – há o cinema, a música e a televisão, do­nos do mercado cultural. A dis­tância jornalística não bloqueia a veia teatral. Peças amadoras, cursos de dramaturgia, assistên­cia com José Celso Martinez (“As Boas”), enfim, Sá não pas­sa incólume. Pode-se descordar das suas interpretações, com certeza, mas “Divers/Idade” é a resposta de quem cumpre o e­xercício da crítica com paixão e entrega diária.

 

Divers/Idade – Um guia para o teatro dos anos 90 – De Nelson de Sá. 479 páginas. Fotos de Lenise Pinheiro. Lançamento da editora Hucitec (rua Gil Eanes, 713, São Paulo, CEP 04601-042, tel. 530-4532). R$ 38,00.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 31 de agosto de 1997.   Caderno A – 4

Monólogo traz escritor na prisão repudiando a sociedade que o condenou

VALMIR SANTOS

São Paulo – O fantasma do irlandês Oscar Wilde (1854-1900) continua puxando a coberta das seciedades hipócritas e ditas pu­ritanas. Há 102 anos, o escritor irlandês foi julgado e condena­do a trabalhos forçados por comportamento “pervertido e homossexual”. Até os dias de hoje, a sentença histórica serve como símbolo da luta pela liber­dade sexual. “Oscar Wilde”, o monólogo interpretado por Eli­as Andreato, expõe uma “carta” do autor de “O Retrato de Dori­an Gray” despachada ao seu a­mante e, mais abrangentemente, à sociedade que condenou.

Despachada entre aspas. Wilde nunca a enviou. Lorde Alfred Douglas, ou Bosie, como tratava o jovem por quem se a­paixonou, faltou com a recipro­cidade quando o caso desse “a­mor que ousa dizer seu nome” veio à tona. Chegaram ao co­nhecimento do marquês de Queensberry, pai daquele belo rapaz, correspondências na qual o remetente tecia loas ao desti­natário do tipo “Tu és a coisa di­vina que eu desejo”.

Foi um escândalo para a épo­ca. Julgado numa Londres mo­narca, meca do conservadoris­mo de então, Wilde não teve a­tenuante. Ainda mais porque dono de língua afiadíssima, tão cruel e espantosamente sensata com as vicissitudes humanas (leia, nesta página, diálogo in­defectível com o promotor). Custou-lhe dois anos vendo o sol nascer quadrado, submetido a trabalho forçado.

No monólogo em cartaz na ironicamente intitulada Sala Vi­toriana, do Stúdio Cristina Mutarelli – um novo, pequeno e a­conchegante espaço na Capital -, temos a palavra de Wilde embalsamada pelo corte refratá­rio às regras de uma falsa moral.

Em menos de uma hora, as frases se amontoam e parecem não caber mais no palco/cela diminuto. O público de cerca de 20 pessoas, lotação máxima, es­pia as deduções cristalinas de Wilde quanto ao que há de mais comezinho numa relação opres­sora.

Frasista contumaz, o autor de “A Importância de Ser Pru­dente” e “Salomé”, estilhaça com lascívia e sem complacên­cia. Exemplos:

“Nunca adorei ninguém, a não ser a mim mesmo.”

“Porque todos os homens matam o que amam mas nem to­dos morrem por amor?”

“A arte só começa onde ter­mina a imitação.”

“Estamos no país dos hipó­critas.”

“A arte não deve aspirar ao público; é o público quem deve aspirar à arte.”

“Eis o resultado de tê-lo en­viado uma carta.”

São algumas das muitas fra­ses jorradas por uma interpreta­ção intensa de Elias Andreato. Ele domina o timming de cada fala. Se relaciona tranqüilamen­te com o pouco espaço que divi­de com uma poltrona, uma taça de alumímo, um varal… O ator, que vem de outro monólogo im­placável, “Van Gogh”, no qual mergulhava fundo na loucura sã, volta a atingir o equilíbrio neste “Oscar Wilde”, desta vez não necessariamente com tanta introspecção. Afinal, Oscar Wilde era de uma elegância de um dândi.

Viven Buckup, a preparado­ra corporal que vem se dando muito bem na direção (“Para Sempre” e “Cenas de Um Casamento”), consegue aqui, mais uma vez, desfocar a montagem da figura predominante do dire­tor. Quanto menos aparece, mais se percebe o trabalho de Vivien, que parece dialogar com tranqüilidade com seus atores.

Atuação e texto harmonizam de tal forma que resta a limpi­dez do verbo ecoando nas quatro paredes – contando a imaginária. Quando mede o tempo pelo “latejar da dor”; quando condena a superficialidade das relações, sejam heteros (o casa­mento com Constance, aos 30 anos, foi para ele uma decepção) ou homossexuais; quando condena a unanimidade burra da o­pinião pública; quando ridicula­riza a imprensa sensacionalista; enfim, quando raspa lá dentro de si para transformar bílis em poesia, Oscar Wilde, via Andre­ato, não reivindica outra coisa que não a supremacia do belo sobre o sofrimento – aquele como conseqüência deste.

Uma ode à condição de artis­ta numa época tão adversa – é­poca que se reproduz em novos códigos, de quando em quando -, “Oscar Wilde”, o monólogo, lapida a emoção com poder arrebatador de transferência. O autor, o ator e a cenografia do talentoso Namatame suspen­dem o tempo e o espaço e transpõem o espectador para aquele lugar nenhum em que o pensa­mento é banhado pela luz e pelo silêncio.

 

Oscar Wilde – Adaptação e interpretação de Elias Andreato. Direção: Vivien Buckup. Sexta e sábado, 21h30; domingo, 20h. Studio Cristina Mutarell (avenida Nove de Julho, 3.913, Jardim Paulista, tel. 885-7454). R$ 15,00. 20 lugares. Até 28 de setembro.

‘O Homem e a Mancha’ leva à introspecção

 São Paulo – Caio Fernando Abreu, um dos nomes mais importantes da literatura brasileira contemporânea, autor de “Morangos Mofados”, tam­bém se inclinou para o campo da dramaturgia. Faz pouco tem­po, estava em cartaz na Capital “A Maldição do Vale Negro”, um melodrama. Antes de mor­rer, em 1995, ele deixou pronto “O Homem e a Mancha”, mo­nólogo interpretado agora por Marcos Breda, sob direção de Luiz Arthur Nunes, ambos con­terrâneos e amigos de Abreu.

Morto em decorrência da Aids, o autor consegue exorcizar a doença sem mencioná-la. Pre­fere enveredar pelos labirintos da literatura, especificamente da dramaturgia, para produzir um texto que diz respeito ao momen­to pelo qual estava passando. “O Homem e a Mancha”, ao mesmo tempo, constitui um exercício instigante de introspecção.

Abreu remove a máscara e pede um ator despido de perso­nagem. A história começa as­sim. Aos poucos, o ator, no caso Breda, ingressa no universo de Miguel Quesada, agora sim no plano da ação propriamente tea­tral. Quesada é um aposentado que abdica de viver e decide se manter recluso em sua casa – um distanciamento comparado a Proust ou Onetti, citados inclu­sive. Romper com o mundo lá fora é o cúmulo da interioriza­ção; do voltar-se para si como ú­nica forma de manter-se agarra­do ao fio da vida que resta.

O movimento de Quesada, um delírio em que tempo e espa­ço se deslocam a todo instante, deixa explícito a convivência de Caio Fernando Abreu com a do­ença. As crônicas, publicadas no jornal “O Estado de S. Pau­lo”, prenunciavam o transborda­mento da sensibilidade.

Não, “O Homem e a Man­cha” não é uma efeméride. Pos­sui estrutura dramatúrgica, traz no cerne um libelo à arte da interpretação – o ator perde sua neutralidade para o persona­gem, e depois a recupera ao fi­nal; mas nunca se sabe onde co­meça uma ou termina outra.

Marcos Breda tem um de­sempenho comovente, uma en­trega total ao texto. Com toda a pobreza dos recursos de ceno­grafia e iluminação, à la Eugê­nio Barba, sobrepõe-se o seu trabalho de interpretação. Na Sala Minam Muniz do Teatro Ruth Escobar, o espaço peque­no empresta maior visceralida­de na aproximação com o pú­blico.

O diretor Luiz Arthur Nu­nes pretende esse despojamen­to, como indica o espírito da o­bra de Abreu. Nessa pulsão o­nírica, em que vírus e imagina­ção se confundem, “O Homem e a Mancha” confessa a necessidade do outro. A chance de compartilhar com familiares e amigos, principalmente com a criação literária, foi um alento para o escritor e dramaturgo gaúcho.

O Homem e a Mancha – Sexta, 22h; sábado, 21h; e domingo, 20h. Teatro Ruth Escobar/Sala Miriam Muniz (rua dos Ingleses, 209, Bela Vista, tel. 289-2358). R$ 15,00. Até 28 de setembro.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.