6.4.1997 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 06 de abril de 1997. Caderno A – 4
VALMIR SANTOS
CURITIBA – Nelson de Sá aproveitou a última edição do Festival de Teatro de Curitiba, mês passado, para distribuir um catálogo do seu primeiro livro, a sair nos próximos dias pela editora Hucitec. Com fotos de Lenise Pinheiro, “Divers/Idade – Um Guia de Teatro dos Anos 90” é uma coletânea de textos publicados na ‘Folha de S. Paulo”, onde trabalha há oito anos. São críticas e reportagens que refletem tendências da década, até aqui. Da renovação dramatúrgica encabeçada, acredita, pelo americano Tony Kushner (“Angels in America”) ao rito cênico católico do pernambucano Romero de Andrade Lima (“Auto da Paixão”), Sá resume o que sua parabólica captou até agora. Tem carinho especial por Zé Celso (autor da “orelha” do livro), de quem chegou a ser assistente. “Não sou niilista, tenho esperança”, afirma o paulista de Andradina. Paralelamente, assina coluna de análise do telejornalismo brasileiro, invariavelmente alfinetando. Na conversa com O Diário, em Curitiba, Sá falou de sua formação, influência de Francis, retratações, espetáculos preferidos, fio que separa a atuação de crítico e de artista, enfim, de “Divers/Idade”.
O Diário – Como foi a pesquisa?
Nelson de Sá – Eu fui lá no cadernão da “Folha”. Fiquei lá pesquisando. Depois da quarta hora, você nem sabe mais o que está vendo. Não só as críticas, mas textos de tendências, de panoramas do teatro brasileiro, como a reafirmação da dramaturgia, do teatro ritual, com abertura maior para presença do ritual religioso, de uma cultura popular. Enfim, tem entrevistas também.
O Diário – E essa volta ao começo, essa retrospectiva dos anos 90 até aqui? Houve surpresas, mudanças significativas nos trabalhos dos grupos, diretores ou autores?
Sá – Fiquei surpeendido com alguns artistas… Havia uma certa unidade geracional, que começou na virada dos anos 90 e estabelecia o que eu imagino ser um novo momento no teatro brasileiro.
O Diário – O que você identifica de mndança dos anos 80 para os 90?
Sá – Os anos 80 foram do diretor e do trabalho visual, tanto Antunes Filho como Gerald. A dramaturgia não era o centro. Em dezembro de 90, acho interessante, morrei Tadeuz Kantor, o “pai” do teatro visual. Gerald Thomas, que era o nosso paradigma do teatro visual, escreveu M.O.R.T.E.”. A partir daí o teatro estilhaçou, o teatro foi para todos os cantos imagináveis. Tem outros aspectos que a gente pode colocar aí: a queda do Muro de Berlim, em 89, que abalou a cabeça de todo mundo, trouxe um novo momento não só para o teatro, mas para a sociedade em geral. Com o fim da “velha ordem”, tudo era possível. O teatro refletiu isso. Foi muito bonito acompnahar esse momento, e continuar acompanhando, porque a coisa continua. Daí o título do livro, “Divers/Idade”, a idéia de uma idade da diversidade, de uma idade que não existe mais, sem programa comum. É até engraçado…
Entrevistei o Décio de Almeida Prado – e ele autorizou colocar como citação no abre do livro -, ele disse que na época dele, por mais que as pessoas fizessem coisas diferentes, havia uma linha comum que unia, de certa maneira, as coisas mais aparentemente díspares. TBC e Arena tinham pelo menos um eixo. Hoje em dia não tem mais isso.
O Diário – Que pessoas, espetáculos-chave, aspectos da atuação e dramaturgia que o livro destaca?
Sá – Em termos de espetáculos, no Brasil e no exterior, a grande peça da primeira metade dos anos 90 foi “Angels in America”. É inquestionável. Deu a possibilidade de poder retornar a dramaturgia no mundo, com temas da realidade contemporânea. Abriu caminhos. Ela foi escrita em 90, eu a vi em 92 ou 93, em Londres. O texto mais longo do livro, inclusive, é uma entrevista com Tony Kushner, o autor.
No Brasil destaco “Romeu e Julieta” do Galpão, dirigido por Gabriel Villela. Teve “Auto da Paixão”, de Romero de Andrade Lima, com As Pastorinhas, um rito católico muito significativo. Teve “M.OR.T.E.” e “Fim de Jogo”, duas peças com títulos interessantes, fim de um tempo mesmo. A primeira do Gerald e a segunda de Beckett. Tem ainda “O Livro de Jó”, dirigida por Marco Antônio Araújo, e “A Bao Qu”, de Enrique Diaz. E mais recentemente está começando a entrar finalmente a segunda metade dos anos 90, que pretendo retratar posteriormente. São peças de dramaturgos que a gente pode caracterizar mais claramente como um movimento. A expressão é horrível, eles odeiam, acham que não é um movimento em si, no que eles estão certos, mas de qualquer maneira. nós como jornalistas e tutores, podemos reduzi-lo a um movimento nessa altura. Tem vários autores, como Dionísio Neto, Fernando Bonassi, Patrícia Melo, Bôsco Brasil. O diferencial dramatúrgico é que são realistas, de certa maneira, porque tentam retratar a realidade cotidiana, urbana que as pessoas vivem, espelho da vida.
Espetáculos como “Banheiro” e “Opus Profundum”, mais do que tentar revolucionar o mundo, falam de si mesmos. “Eu vivo isso e olha aqui”, é mais ou menos essa idéia.
O Diário – E aí o Antunes ficou fora?
Sá – Não, ele é um grande diretor. O problema é que o livro tenta identificar a nova leva de autores, diretores e atores… Aliás, deixei de falar de Antunes. Ele teve atores geniais neste período. O trabalho do Eduardo Moreira no Galpão, de Marcelo Drummond no Oficina… É sempre complicado citar nomes.
O Diário – Dá para apontar esteticamente as tendências nos primeiros anos da década?
Sá – Houve uma revalorização muito grande da cultura popular, do teatro de rito, onde a figura de Deus é mais presente. Como em “Auto da Paixão”, “As Suplicantes”, “A Rua da Amargura” de Villela, o trabalh do Antonio Nóbrega; “O Livro de Jó”, baseado na bíblia etc. É mais uma tendência do que movimento. Se falar assim os caras têm ataque…
Outra coisa foi a retomada da palavra na dramaturgia. São duas vertentes conflitantes, o ritual e a palavra. Mas ao mesmo tempo é um mundo em que a gente vive, um mundo da diversidade.
Houve também uma ruptura no eixo Rio-São Paulo, com grupos de Belo Horizonte, João Pessoa, Porto Alegre, festivais de Londrina, de Curitiba, uma explosão de cultura que reflete o momento que estamos vivendo. As culturas regionais estão ganhando mais força do que antes.
O Diário – Você chegou a trabalhar com Zé Celso…
Sá – …Eu fui assitente de direção em “As Boas”, adaptação de “As Criadas”, de Jean Genet. E traduzi “Ham-Let”. “As Boas” foi um trabalho muito problemático. A “Folha” é um jornal que joga pesado com essa questão de distanciamento. Eu estava fazendo uma coisa que achava ao mesmo tempo certo e errado. Eu mesmo me questionei. E botei na minha cabeça que não podia escrever sobre nenhuma das duas pecas. Esse foi meu limite na “Folha”.
O Diário – Existe algum tipo de cerceamento às suas críticas?
Sá – Tem assim uma ou outra restrição… Pode-se fazer então…Mas censura não, nenhuma, zsero. Na estréia do primeiro espetáculo de Otávio Frias Filho (“Típico Romântico”), por exemplo, fiz uma crítica negativa do espetáculo e criou uma polêmica muito grande com o diretor da peça (Maurício Paroni de Castro) e nada foi questionado ou limitado.
O Diário – Como lida com as críticas ao seu trabalho? Tem muitos inimigos?
Sá – Inimigos também não né (ri). Tem problemas, sim… Bom, ninguém gosta de não ser gostado. Só mesmo diretor de teatro para achar que vaia é a glória… Não existe carinho na vaia. Eu procuro me agarrar às regras do jornalismo.
O Diário – Já teve críticas que retratou?
Sá – Teve milhares… Milhares não (ri). Eu não consigo lembrar aqui… Teve coisas que eu poderia ser menos agressivo. O difícil é quando você cai no tom pessoal. Uma vez o Décio, quando soube que eu estava trabalhando com Zé Celso, ele disse que crítico não pde. Na época eu achava que era uma experiência para completar um ciclo e me tornar um crítico de fato. Ele falou que crítico de teatro não vai na coxia, não vai no bastidor, não vai em festas da classe. Enfim, crítico tem que ficar fora. Acho importante o crítico saber que ele não tem partido.
Eu aprendi isso. Saí da companhia do Zé Celso por causa disso. Cria-se uma situação que prejudica o seu trabalho jornalístico depois. Tem que ser de uma frieza jornalística, um distanciamento, mesmo com os amigos. É como você ficar amigo da fonte e privilegiá-la. Uma vez escrevi uma crítica do Zé Celso {“Mistérios Gozozos” } e ele me disse que chorou. O próprio Zé Celso e as pessoas da classe em geral criticam esse distanciamento, acham bobagem. Mas eu não acho.
O Diário – Para você, a crítica é antes uma atitude jornalística?
Sá – É jornalismo sim. Isso não é novo. O Décio, teve momentos em que ele se disse da classe teatral e outros em que disse exatamente o contrário. O Brasil teve um momento em que o jornalismo tinha uma configuração ideológica maior. Eu só faço refletir no trabalho de crítica uma coisa que é do próprio jornal hoje… Da mesma maneira que tem uma diversidade de teatro existe uma diversidade de críticas.
O Diário – Qual a função da crítica hoje no Brasil?
Sá – O papel da crítica em geral… Assim como no teatro, você tem várias vertentes. Não existe uma crítica só, e isso não é so no Brasil. Questões básicas para mim são: eu faço uma crítica para o leitor, não para o espetáculo. Obviamente existem várias coisas próprias do teatro. Tem peças que você considera boa mas, enfim, você vive num mundo que tem milhares de referências na televisão, no rádio. Outra questão importante, que não está nem na minha boca, foi dita pelo Otácio Frias Filho, diretor de redação do meu jornal, por acaso também um dramaturgo… Por acaso não, também um dramaturgo. O jornalismo hoje é mais massificado do que era 40, 50 anos atrás. As tiragens dos jornais são milhares. Para esse público, o “leitorado”, como a gente costuma dizer, por mais que a gente tenha um carinho muito grande pelo teatro, um carinho que eu tenho, para esse público o teatro não é prioridade.
Cinema, televisão e música popular são prioridades básicas hoje na cobertura de cultura de qualquer jornal. Isso tem várias implicaçõe em relação à crítica. Uma delas é o espaço menor. A gente tem que se adaptar e é a realidade. E isso não é só no Brasil. Crítica em Nova Iorque, em Paris também tem espaço menor. Paulo Francis escrevia uns 50 centímetros. A minha média hoje é de 35 centímetros.
O Diário – O que você busca no exercício da crítica?
Sá – Existe uma discussão antiquérrima se a crítica é técnica ou subjetiva. Eu não acredito em crítica técnica, acho impossível. Pessoas com as quais me formei não acreditavam nisso, não têm isso como base. A idéia da crítica técnica, imparcial, isso é uma fantasia, não acho viável. Quem gostaria de uma crítica técnica, com critérios técnicos, com padrões técnicos é a própria classe teatral. Isso é normal no Brasil e no exterior.
O Diário – Não dá medo que a crítica acabe diante da falta de espaço nos jornais? Você, por exemplo, divide a função com uma coluna diária que analisa o noticiário da televisão.
Sá – Acho que é uma função necessária para o Jornalismo, para o 1eitor. Acredito que ainda é necessário, mas não tenho certeza se ela vai acabar. A crítica não existe há muito tempo. Aliás, como direção de teatro, um pouco mais de 100 anos.
O Diário – Fale um pouco da sua formação.
Sá – No final do livro, readaptei uma palestra que fiz para o Festival Internacional de Teatro de Londrina, onde exponho mais a minha formação… eu sou um jornalista formado, não tenho formação específica de teatro. Fiz peças amadoras, cursos de ator. De dramaturgia, mas meu trabalho é jornalístico… Não sou da classe teatral… Mas a formação verdadeira, nesse sentido, teve vários fatores, professores neste caminho. Na faculdade de Jornalismo tinha um professor, Péricles Eugênio da Silva Ramos, que fez a tradução de “Hamlet” para o Sérgio Cardoso, nos anos 50. Era um senhor maravilhoso, poeta que tinha uma paixão muito grande pelo romantismo. Eu me sinto de certa maneira influenciado por ele porque também tenho um gosto pelo romantismo, pelos espetáculos que tragam uma carga, que buscam uma certa verdade anti-formal, que era o que os românticos traziam. O crítico da “Folha” nos anos 50, Miroel Silveira, que adorava, era amigo pessoal, também me influenciou.
Mas o que moveu realmente a atuar na crítica foi o trabalho com o Francis. Fui enviado pela “Folha” em 87/88 para trabalhar em Nova Iorque com Paulo Francis, que foi crítico nos anos 50, começo dos 60, no Rio. E veio dali a vontade mesmo de ser crítico. A influência do Francis sobre mim foi avassaladora. Todo o meu trabalho posterior foi de certa maneira em função do que ele me ensinou. Naquela época, eu era correspondente bolsista da “Folha”. Era um pouco assim um lugar-tenente ou garoto de recados do Francis.
Eu lembro de uma frase formal, uma recomendação do Caio Túlio Costa, se não me engano, para quem ía trabalhat com o Francis lá: “Aprender com Paulo Francis sem copiar o seu estilo” (ri). Eu aprendi com ele, copiei o seu estilo, enfim… (ri). Mas é a influência básica que eu tomo como formação no meu teatro. Mas com o tempo eu rompi com ele como crítico, como jornalista, com relação ao trabalho dele, com os comentários como o de que o Vicentinho merecia chibatadas…
Uma série de coisas assim impublicáveis. Eu adoro o Francis, tenho paixão veneração, mas não pode. Chegou um momento em que acreditava naquilo, e hoje não mais.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário”
“Arrogância” do texto não confere com lado pessoal
Texto enxuto, por vezes cruel, isento. A pena de crítico tem pouco a ver com o perfil pessoal de Nelson de Sá. Onde a “arrogância” apontada, por exemplo, pelo diretor Maurício Paroni de Castro (“Típico Romântico”), dos seus piores desafetos em oito anos de cobertura teatral na “Folha”? Nada – pelo menos fora do papel. Pinta de moleque, invariavelmente tênis e calça jeans, não aparenta os 36 anos. A polêmica o persegue (ou ele a atrai?) sistematicamente desde o início, em 1989. Numa das três primeiras críticas que publicou no caderno “Ilustrada”, certo diretor – prefere não revelar o nome – foi tirar-lhe satisfação em plena redação. O jornalista correu entre cadeiras e só não foi agredido por causa dos seguranças. Assustado com o episódio, se eximiu de escrever por um tempo. Retomou no ano seguinte, mais seguro. Desde então, lida sem complacência com a “classe teatral” (“Eu não faço parte dela”, faz questão de dizer). Não poupou sequer o patrão, Otavio Frias Filho, autor da mesma “Típico Romântico” (1992). Como o colega Alberto Guzik, do “Jornal da Tarde”, autor do romance “Risco de Vida” e da peça “Um Deus Cruel” – estréia em maio -, Nelson de Sá também se aventura na dramaturgia. Mas por enquanto prefere manter seus textos na gaveta.
25.3.1997 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 25 de março de 1997. Caderno A
VALMIR SANTOS
Curitiba – Poucas vezes Gerald Thomas pôs tão a nu seu processo artístico como em “Os Reis do Iê-Iê-Iê”, o “evento” (sabe-se lá o que é isso, mas está mais para instalação ou happening) apresentado no Festival de Curitiba, no fim da semana. A volta de Bete Coelho ajuda a expor a crise dos últimos espetáculos, espécie de revisão dos 11 anos da Companhia de Ópera Seca. Agora já não importa entender o não seu teatro. O público encontra mais elementos para construir o “fio”, via verbo, imagens. Thomas equilibra a erudição, a “masturbação”, com enxertos narrativos, com transparência nos signos visuais, com uma fragilidade desesperadora e urgente que parece acenar para o espectador e dizer algo como: “Olha, eu estou aqui, vagando neste vazio de poucas certezas”.
É o “eu como recurso artístico” no “laboratório pessoal” montado em menos de 15 dias, com dificuldades técnicas de toda ordem, adiamento da estréia. Uma tensão que o encenador preferiu citar e diluir dentro do próprio “evento”.
“O que é fazer teatro?”, se pergunta o manjado off de Thomas, projetando a angústia do presente para a situação ficcional de seis horas depois da apresentação de estréia. Enquanto isso, a cena mostra o Thomas-ator-ele-mesmo (John Lennon por acaso) prostado na cadeira. Usa o “atraso” que vê no teatro brasileiro.
Crítico do horizontalismo cristão, Thomas encarna ele mesmo a imagem do crucificado (mãos abertas, pés cruzados). Ao contrário dos Beatles, não pretende ser mais famoso que Jesus Cristo.
Luiz Damasceno (Ringo Star), único remanescente do embrião da Ópera Seca, tenta “atirar a primeira pedra”. Na sua fidelidade de 11 anos, Damasceno sempre foi a pedra no sapato de Thomas. Ator e encenador se correspondem por oposição. É o que estimula. Bete Coelho (Paul McCartney), por sua vez, é a complementariedade, tábua de salvação para os riscos e vôos de Thomas.
É intérprete maior (deu saudade do seu brilho, desde “Pentesiléias”, há dois anos. O quanto o teatro perde, e provavelmente muito mais ela em sua insistência com a televisão).
Damasceno/Star não agüenta mais a relação. “Até quando você vai fazer trocadinho com tudo que é básico?”, questiona. “Foram 11 anos de respostas enigmáticas”. O primeiro-ator reivindica a concretude do palco, das roupas, dos prédios, das pontes erguidas pelo Homem. Mas “a única coisa de concreto aqui é o verbo”, retruca Bete/McCartney.
Domingos Varella, que fecha quarteto incidental da companhia, assume o silêncio “zen” do papel, se é que se pode dizer assim, que lhe cabe, o de George Harrison.
Muito mais do que paralelo com as divergências dos rapazes de Liverpool, pinceladas levemente, e a corrosão do pop, são conflitos da Ópera Seca com seu criador que sustentam o roteiro. “Os Reis do Iê-Iê-Iê”, em se tratando de Geraldo Thomas, surpreende por escancarar a emoção. Quer – e consegue – tocar, dispensando a inteligência “hermética” de praxe.
Canções menos concessivas dos Beatles pontuam o “evento”, revezando com os Rolling Stones – dois caminhos distintos do mesmo mercado, Lennon e Jagger. Vertendo para o rock nacional, surge “Será”, de Renato Russo, líder messiânico do Legião Urbana morto no ano passado, com voz e violão de Luiz Frias, namorado de Bete Coelho – e clonando-o na execução ao vivo do convidado.
O cenário espaçoso e “hospitaleiro”, sugestão de um manicômio, com camas e cadeiras brancas, abriga outros desgarrados da Ópera Seca, como Marcos Azevedo e os recentes César Almeida e Raquel Rizzo. Tem o desembestado Dionísio Neto, como o assassino Mark Chapman, que chamou a atenção do mundo numa esquina de Nova York, em 1980, e Renata Jesion (ambos de “Perpétua” e “Opus Profundum”). Foram “convidados” quatro atores de Curitiba.
Gerald Thomas tem vontade de largar da camisa-de-força criada por ele. Termina por reinventar a si, uma necessidade coerente para o exercício de teatro nesse tempo veloz, à beira do milênio. Polemizar e contemplar são conjugações possíveis.
O jornalista Valmir Santos viaja a convite do FTC.
23.3.1997 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 23 de março de 1997. Caderno A – 3
VALMIR SANTOS
23.3.1997 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 23 de março de 1997. Caderno A – 4
VALMIR SANTOS
Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores. Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Thomas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apresentações no festival deve ter somente mais uma em São Paulo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desembocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opinião “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela forma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Venera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o carro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizonte. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo movimento.
18.3.1997 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Terça-feira, 18 de março de 1997. Capa
Grupo Ponto de Partida se destaca em Curitiba pela coerência dos seus 16 anos de trabalho
VALMIR SANTOS
Curitiba – A história do Ponto de Partida, da cidade mineira Barbacena, ilustra a importância da estabilidade de um grupo para se fazer teatro neste País. “Sou viciada em grupo”, confessa a diretora Regina Bertola, 41 anos, uma das fundadoras. “Um trabalho permanente facilita a pesquisa, a continuidade, o rumo, o repertório, além disso os melhores momentos do teatro brasileiro foram sempre aqueles em que atuavam bons grupos”.
No último fim de semana, o Ponto de Partida encenou no Festival de Teatro de Curitiba a sua nova montagem, “Viva o Povo Brasileiro”, inspirada na obra de mesmo nome do escritor João Ubaldo Ribeiro (leia crítica abaixo).
Lá se vão 16 anos de coerência de um processo que expandiu a partir da própria relação com a comunidade. Barbacena, como acontece com boa parte das cidades do interior, carecia de atividades culturais. Não acontecia nada.
Foi então que jovens da cidade se reuniram para deslanchar o movimento cultural que tem hoje no teatro do Ponto de Partida o seu principal símbolo popular de resistência.
Levou-se para Barbacena “eventos de qualidade”, no dizer de Regina, nos campos da música, literatura e teatro. Foi este último o “veículo” escolhido para embrião. Bia Lessa deu oficina sobre expressão gestual; Sérgio Brito introduziu a preparação vocal e Cacá de Carvalho injetou a disciplina na técnica.
“Ao invés de irmos para onde estão as vitrines, trouxemos elas para o interior”, conta a diretora.
Entender a função social do artista é outro viés presente na formação. “O grande investimento nosso foi gente”, destaca o diretor de produção Ivanée Bertola, também um dos fundadores. Outro destaque da trajetória do grupo é a sobrevivência básica através da bilheteria. O Clube dos Amigos do Ponto de Partida (CAPP) soma atualmente mais de 2 mil sócios.
Se no início pedia-se uma colaboração aqui e ali, de porta em porta, agora o apoio financeiro do clube vem na aquisição de bônus ou de brindes como uma escultura do oratório em um CD independente com canções dos principais espetáculos – “Estação XV”, lançado no ano passado, ocasião dos 15 anos da trupe.
Aos poucos, a iniciativa privada também abriu as portas. “Grandes Sertão: Veredas”, de João Guimarães Rosa, penúltima montagem, foi patrocinada pelo Governo Cultural do Banco do Brasil. “Viva o Povo Brasileiro” tem a Federação das Indústrias (Fiemg) e o Sesi por trás.
Com uma linguagem cênica definida, rigorosa, que faz tudo para fugir do regionalismo, o Ponto de Partida acumula 100 apresentações no exterior (da África a Paris). O elenco de 12 atores (ex-psicóloga, ex-assistente social, ex-estudantes etc) dedica-se exclusivamente ao teatro.
*O jornalista Valmir Santos viaja a convite do Festival de Teatro de Curitiba.
Definir a alma brasileira é empreitada difícil. São tantos meandros, veredas, que chegar a um determinado comum talvez seja impossível. O escritor João Ubaldo Ribeiro faz uma leitura alegórica em seu “Viva o Povo Brasileiro”, livro que o Ponto de Partida escolheu para montar e aprofundar sua identificação com uma linguagem que leva em conta a brasilidade inerente.
O espetáculo encontrou na MPB a sua melhor tradução. É na essência, um musical. Chico Buarque, Caetano Veloso, Ivan Lins, marchinhas e enredos de carnaval, enfim, a música faz o texto. No “puleiro das almas”, o enfoque vai para a Alminha Brasileira, praticamente o tempo todo em cena, como a procurar um norte, um alento.
Desde os primeiros habitantes, os índios, passando pela condição do “herói improvisado”, macunaímico por excelência, até o velho e gasto jeitinho, o espelho está lá.
Como a colcha de retalhos é vasta, não falta o futebol e a novela, objetos de culto e alienação; amor e ódio. Tem ainda o sincretismo religioso. Antropologia de palco.
Regina Bertola recorre a uma movimentação contínua dos 12 atores, ocupando planos variados do palco, com destaque para o espaço aéreo. Eles se dependuram em tubos de aço e cordas que compõem o cenário. Quando “escalam” as cordas, o quadro lembra uma partitura.
Há menos de quatro meses de estréia, “Viva o Povo Brasileiro” peca ainda pelo excesso. O gigantismo do tema, que resultou acertadamente na expansão do espaço cênico, afeta inversamente o roteiro. Quedas no ritmo e finais insinuados que nunca vêm, merecem atenção.
Mas o encanto está preservado na harmonia epifânica do elenco, nas belas vozes do Cláudia Valle e João Mello e na leveza de ser de Alminha interpretada por Lourdes Araújo. No violão e na direção musical de Gilvan de Oliveira. Na iluminação de Jorginho de Carvalho e César Ramires. Na preparação vocal e pesquisa de timbre de Babaya. No belo exercício de aperfeiçoar a perfeição do Ponto de Partida.
Na abertura da 6ª edição do Festival de Teatro de Curitiba, na quinta-feira passada, o Galpão mostrou seu novo trabalho, “Um Molière Imaginário”. Mais uma vez, prevalece aqui o espírito da festa, do encontro. O ator Eduardo Moreira troca o palco pela direção e adora uma estética paripasso com a de Villela.
O detalhismo do cenário, emoldurado por um fio de pequenas lâmpadas; o colorido dos figurinos e adereços; o ritual do canto e da música tocada ao vivo, com o elenco carregando seus instrumentos; enfim, o espectador identifica de imediato a coerência e a identidade do Galpão.
“Um Molière Imaginário”, contudo, perde muito do impacto no palco italiano, no edifício convencional. O teatro de rua pede um cara-a-cara com o público, uma proximidade com a roda. Na fria e distante Ópera de Arame, com toda a dificuldade acústica que se sabe, a interação perde muito.
Descontado isso, sobra o talento dos atores e o respectivo esforço em atingir a platéia. O recurso do microfone – um filtro que retém um pouco da magia, diga-se de passagem – atenuou o problema de audição na gigante estrutura de ferro erguido próxima a uma pedreira em Curitiba.
O recurso visual, a movimentação e principalmente a música – trata-se de um espetáculo musical, na essência – sustentam a história que “ressuscita” Molière da sua morte súbita no palco, na vida real, e o traz para o universo imaginário, com suas alegorias e evoluções de raízes populares. O autor francês do século 17, pai da farsa, é reverenciado sem pompa e muita circunstância brasileira. E tudo fluiria muito melhor na rua.
2.3.1997 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 02 de março de 1997. Caderno A – 4
Exímio nos detalhes visuais, diretor não preparou o elenco para atingir lirismo de Strindberg
VALMIR SANTOS
“O Sonho” também chegou ao palco, há cerca de dois anos, pelas mãos do diretor carioca Moacyr Góes. Na tradução da irmã, Clara Góes, o texto foi rebatizado como “Epifanias”, perfeita conjunção com o universo onírico de Strindberg.
É possível traçar um paralelo entre Villela e Góes. O trabalho do mineiro é marcado pela cenografia barroca, detalhista, como pede a influência popular e religiosa da sua terra natal, Minas Gerais. Foi assim em “A Vida É Sonho”, “A Guerra Santa”, “Rua da Amargura” etc, como uma marca registrada.
Já Góes procurou repercutir a cultura nordestina e a condição de miséria dos migrantes. Sua direção acentuou belas imagens, espelhando o devaneio dos personagens.
“Epifanias” tinha também um elenco bem preparado, diferente de “O Sonho” que, depois de sessões gratuitas no Teatro Popular do Sesi, na Capital, semana passada, agora vai participar do 6° Festival de Teatro de Curitiba.
Ainda que esforçado, o elenco de jovens baianos do Teatro Castro Alves não dimensiona as belas palavras de Strindberg. Villela deposita mais na encenação do que propriamente na interpretação.
E espantosamente um texto do início do século mantém-se com poder de sedução junto ao público. São questionamentos que dizem respeito à humanidade de ontem, de hoje e de sempre.
Agnes, a filha do deus Indra, desce para a Terra, “o terceiro universo, uma esfera de cinza e pó girando no universo, o que provoca de vez em quando tonturas”. Aqui, em carne e osso, entra em contato com os seres humanos e desvenda a dor e a angústia da existência.
Strindberg parece definir a felicidade como uma miragem, sempre inalcançável. “Os seres humanos são dignos de lástima” – é o bordão que Agnes, a “filha dos céus”, repete em várias passagens.
Para o autor sueco, “ser mortal não é fácil”. “O Sonho” pesca uma rede de conflitos para justificar sua tese. O amor, sublime amor, “é o mais doce e também o mais amargo”. Agnes, na pele da mulher que se casa com um advogado, desabafa: “Como é terrível estar casada. Viver a dois é coexistir no sofrimento”.
Nesse martírio todo, em que a platéia é o “paraíso” e o palco, “inferno”, o porvir não é demasiado caótico. Strindberg não aponta culpados. “Como pode a estátua condenar o escultor?”, indaga. Ainda que o barco da justiça afunde, depois das citações aos pacientes mortos em Caruaru, à chacina dos sem-terra no Pará, enfim, Villela reproduz essa esperança com anjos e uma sereia-iemanjá. É uma bela montagem para um belo texto que não ganhou, na preparação dos atores, a correspondência lírica e densa do autor.
23.2.1997 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 23 de fevereiro de 1997. Caderno A – 4
Com trabalhadores da construção como tema, espetáculo tem energia para se indignar e encantar
VALMIR SANTOS
São Paulo – A dança brasileira vive um momento de resgate da brasilidade. Do grupo Corpo ao ator Antonio Nóbrega, as investigações passam pelo movimento da nossa gente. Não é exatamente uma novidade: nos anos 70, por exemplo, o Stagium se apresenta em pleno Xingu. Uma síntese da fusão do brasileiro do Nordeste com aquele da “cidade grande” de São Paulo é alcançado com vigor no espetáculo “Omstrab”, que cumpre temporada até o próximo Domingo no Teatro Sérgio Cardoso, Capital.
O ambiente dos trabalhadores em obras urbanas é o principal mote da coreografia. Por trás dos tapumes das construções existe toda uma linguagem própria, edulcorada, sobretudo pelos descendentes nordestinos que acabam inserindo sua cultura na cidade de concreto.
Fernando Lee concebeu um espetáculo que capta toda essa realidade com extremo lirismo e emoção. Para início de conversa, ele classifica seu trabalho como dança-teatro. Mas “Omstrab” acaba transcendendo: os cinco dançarinos, incluindo Lee, passam todo o espetáculo explorando uma sonoridade percussiva em seis próprios corpos.
Não há trilha sonora. São os atores-bailarinos que “tocam” seu corpo e colocam a voz em cena. Quem viu a apresentação do grupo inglês Stomp, no ano passado, tem noção do que os brasileiros podem fazer no palco.
Carlinhos Brown, Mestre Ambrósio, Chico Sciense & Nação Zumbi, mestres de maracatu rural, grupos de capoeira, enfim, as referências são inúmeras no País rio em ritmo. “Omstrab” se permite absorver toda a “salada” para incorporá-la em gestos, movimentos, voz e instrumentos como balde, serrote, toalha, berimbau, sanfona e outros.
Um número de sapateado de chinelo, um “duelo” de personagem com serrotes em punho, o recurso da mímica de HQ, enfim, são exemplos de cenas em que a entrega e a inventividade dos rapazes impressionam. Suam e parecem brincar ou jogar o tempo todo com o público na mão.
Tudo está impregnado de ritual, de passagem. A imagem de um dançarino empurrando um balde no chão com a cabeça, e suas “ancas da tradição” desenhadas na penumbra da iluminação, é representativa da intensidade que “Omstrab” alcança em alguns momentos.
Dá vontade de seguir a procissão de Nosso Senhor do Bonfim, com a sanfona lacrimejante, como nas peregrinações religiosas de populares. O espaço é ocupado com tanta magia que ultrapassa os limites do palco. Aliás, tudo começa lá fora, no saguão, com os rapazes de capacete, chinelo e batucando em baldes de plástico, cantando um “Carnaval em Sampa”.
Alex Martins, Luis Ferron, Paulo Bordhin, Sérgio Rocha e o próprio Lee demonstram um preparo físico de fôlego. Estão o tempo todo em cena, bem entrosados. “Omstrab” é um momento de agia na dança-teatro brasileira, com energia para se indignar e encantar.
Omstrab – Concepção e direção: Fernando Lee. Com o Núcleo Omstrab. De quinta a sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Sérgio Cardoso (rua Rui Barbosa, 136, Bela Vista, tel. 288-3611). R$ 15, 00. Até 3 de março.
Aos poucos, as interpretações densas, a boa projeção de voz do elenco e principalmente o deslocamento harmonioso do “coro” confirmam uma concepção de espetáculo com a verve antuniana.
Isso não depõe contra o trabalho. Ao contrário, “Lulu” mostra uma direção atenta, buscando caminhos próprios. Ferrara e sua Companhia de Arte Degenerada centra o trabalho no movimento Expressionista, que estabeleceu uma nova visão da vida e do fazer artístico a partir da Alemanha, na década de 30.
Transfigurar a consciência, cria um novo contexto de compreensão, na qual a condição humana possa ser examinada à luz da paixão, são metas do diretor.
Sob o ponto de vista estético, “Lulu” é afinada. O vazio cenográfico (Luis Rossi), o equilíbrio das cores no figurino e iluminação compõem um visual introspectivo e atemporal.
Mas há desequilíbrio nas atuações. A força de Portella, assumindo os papéis de pai e amante da protagonista da história, é um contraponto à esforçada Deborah Lobo. Sua Lulu não projeta com intensidade a lascívia e a volúpia que se espera de personagem tão controversa e demasiadamente humana.
O autor alemão Frank Wedekind (1864-1918) construiu um mito feminino digno de tragédia grega. Lulu espelha a dubiedade entre desejo e razão.
Ainda assim, os demais integrantes da montagem, Dênis Goyos, Annette Najman, Klaus Novais, Eduardo Semerjian, Doroty Rojas e Luiz Galasso têm presença e correspondem à concepção de Ferrara.
Lulu – A Caixa de Pandora – Com Débora Ferruço etc. Quinta a sábado, 21h30; domingo 20h30. Centro Cultural São Paulo (rua Vergueiro, 1.000, Paraíso, tel. 277-3611). R$ 8,00. 80 minutos. Até 2 de março.
“Pequeno Mago” faz ritual de passagem
Em 12 anos de palco, o grupo XPTO consolidou um dos processos mais criativos da cena teatral brasileira. São trabalhos memoráveis, em que o espírito lúdico, a plasticidade de seus bonecos e a agilidade dos seus atores sempre marcaram presença, como em “Coquetel Clown”.
O ano passado foi muito especial para o diretor Osvaldo Gabrielli e sua trupe. O espetáculo “O Pequeno Mago” faturou os principais prêmios infantis. Essa, que pode ser considerada uma superprodução, reestreou para mais uma temporada gratuita no Teatro Popular do Sesi, em São Paulo.
Antes de mais nada, Gabrielli escreveu a peça com um profundo sentimento de esperança. Influenciado pelo tarô, compõe o ritual de passagem de uma criança para a adolescência como metáfora do ingresso da humanidade no terceiro milênio – estamos a quatro anos dele.
Essa nova era, a Era de Aquário, não é tratada com tinta futurista. Ela está mais próxima do que se pensa. Os vários e belos efeitos especiais utilizados em “O Pequeno Mago” não soam artificiais, como ficção científica a la “Jornada Nas Estrelas”.
Felizmente, o tratamento é bem outro. O XPTO prima pelo respeito ao público mirim e seus pais. Os mecanismos da montagem são transparentes. Duendes surgem por trás das árvores gigantes, um dragão enorme rompe no centro do palco, balangante feito um animal de verdade, e o Pequeno Mago, ao final, mergulhado em muita fumaça, de fato voa numa engenhoca que felizmente nada tem que ver com naves espaciais.
Essa cumplicidade imaginária com o espectador – nada é dado pronto, acabado – é uma virtude e tanta. Crianças e adultos são guindados a acompanhar uma viagem difusa no tempo e espaço, seguindo os passos de personagens fantásticos.
Não há propriamente uma interpretação na concepção da palavra. O aparato cenotécnico e a imperiosa marcação impedem um trabalho de ator mais verticalizado. É um preço a ser considerado.
A direção musical de Roberto Firmino, com execução ao vivo, responde pelo impacto do som dentro da montagem, oscilando o fundo e os picos com precisão. “O Pequeno Mago” converge a atenção de uma platéia sempre lotada porque lhe permite um estado onírico perseguido por muitos no teatro – e atingidos por poucos.
O Pequeno Mago – Sábado e domingo, 14h. Teatro Popular do Sesi (avenida Paulista, 1.313, metrô Trianon, tel. 284-9787). Entrada franca (retirar ingresso grátis com uma hora de antecedência).
26.1.1997 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 26 de janeiro de 1997. Caderno A – 4
Montagem da Cia. Teatroasotragos, direção de Fonseca, atualiza primeira peça de Brecht
VALMIR SANTOS
São Paulo – Quando escreveu a sua primeira peça, Bertolt Brecht (1898-1956) tinha 20 anos. Seminal, “Baal” traz o dramaturgo ainda distante do tom épico que marcaria boa parte da sua obra. No entanto, o texto já espelhava a sua voracidade transformadora. É um Brecht jovem, poeta vigoroso, comprando brida com o movimento expressionista alemão da época. O tom ideológico fica em segundo plano para florescer o indivíduo. Baal, cantando seus poemas, desafia a ordem das coisas; mama o seio da natureza animal humana para dissecá-la sem concessões.
A viagem pela “floresta negra” na montagem de ‘Baal’ – O Mito da Carne” é um constante embate entre libido e razão; dor e prazer; vida e morte. Enfim, a dualidade caleidoscópica na qual as certezas se diluem e tudo transita pelo plano do experimental , do novo, do jogo sem regras. O espetáculo da Cia. Teatroaostragos, em cartaz no Teatro Oficina, na Capital, atualiza Brecht com a energia correspondente ao espírito do dramaturgo.
Há algo de rebeldia, de James Dean em “Juventude Transviada”, de marginalidade na concepção. Não à toa, cita-se uma frase do filme “O Bandido da Luz Vermelha”, de Rogério Sganzerla (“O terceiro mundo vai explodir e quem tiver de sapato não sobra”!). A adaptação, assinada pelo diretor Marcelo Marcus Fonseca, ao lado de Zeno Wilde, contextualiza “Baal” para o final do milênio sem comprometimento da palavra brechtiana.
Com sua projeção anárquica do espaço cênico, idealizada pela arquiteta Lina Bo Bardi, o Oficina do dionisíaco José Celso Martinez Corrêa é a casa ideal para Fonseca e sua trupe de jovens atores, como ele, alçar vôo. A montagem estreou ano passado no Espaço Equilíbrio (um pecadilho?), em Pinheiros, e enfrentou problemas de toda ordem (natural, com uma tempestade que destruiu parcialmente cenários e figurinos, e humana, por assim dizer, com o roubo de equipamentos). Ressuscita agora na temporada do Oficina, com um elenco praticamente novo.
Fonseca também é o protagonista. Encarna Baal com um alheamento (não exatamente distanciamento), uma leveza desconcertante. O corpo esguio, o figurino de paletó com babados, uma boneca de pano pendurada como bolsa são detalhes de um desenho de ingenuidade que lembra um Pequeno Príncipe. Perfeito para o paradoxo que se enseja: a crueldade guiada pela paixão.
Baal ama o amigo Ekart (Élcio Nogueira, mogiano que vem amadurecendo e conquistando seu espaço no teatro paulistano), mas entre eles corre um rio de mulheres. Joana (Bel Kutner) e Sophie (Carolina Gonzalez) representam o universo feminino que o autor sabe poderoso, tanto que deu para uma das personagens o nome de sua mãe (Sophie). O desejo – e suas variantes – rege tudo. Baal se lincha para aqueles que têm como “gênio” poeta. É o caso de Mech (Ariel Borghi), o negociante inescrupuloso que propõe editar um livro.
O escritor, cheio de si, visionário que é, devora Joana e Sophie, ambas virgens. A primeira, namora Johannes, jovem que vê seus ideais caírem por terra depois da traição. A Segunda, fica grávida e se envolve com Ekart. A busca do outro através de uma “ética” muito pessoal acaba movendo os corações no tabuleiro de Brecht.
“A carne se desfaz, o espírito também”; “O que existe de mais bonito é o nada”; “O melhor lugar do mundo é mesmo a privada”; “O amor é um ato entre o céu e o chão” – são lampejos assim que brindam o espectador. “Fumando, bebendo, o desregrado Baal prefere a reza sem pureza, sem a “missa” de Ekart, que confessa: “Você corrompe a minha alma como corrompe a tudo que toca.”
“FAQUIR DA DOR”
Para a saga do “faquir da dor”, pétalas vermelhas e brancas; a tradicional queda d’água do Oficina, a iluminação igualmente visceral de David de Brito; a música ao vivo do trio David Prieto, Paulo Lowenthal e Johny. “Baal – O Mito da Carne” ocupa o “corredor” do teatro com dinâmica na movimentação do elenco, muitas vezes recorrendo ao coro grego. Os “números musicais” são bastante despojados, com vozes regulares – Fonseca se sai bem nas suas performances, com pinta de roqueiro.
O diretor, aos 25 anos, emana carisma no palco, demonstra conhecê-lo, e desponta como um dos criadores mais importantes no momento em São Paulo. Anuncia, para este ano, a montagem de “O Balcão”, de Jean Genet, com arrebatamento digno da histórica versão do argentino Victor Garcia, nos anos 70, quando o encenador levou o Teatro Ruth Escobar literalmente para o buraco.
Baal – O mito da Carne – De Bertolt Brecht. Adaptação: Marcelo Marcus Fonseca e Zeno Wilde. Direção: Marcelo Marcus Fonseca. Com o grupo Teatroaostragos (Laudo Olavo Dalri, Plínio Marcos Rodrigues, Paula di Paula, Caco Mattos, Eduardo Santana, Juliana Monjardim, Nancy Rosa, Nicolas Trevijano, Rita Alves, Evandro Rhodem, Karine Carvalho e outros). Sexta e sábado, 21h; domingo, 20h. Teatro Oficina (rua Jaceguai, Bela Vista, tel. 604-0678). R$ 20,00.
“Bar, Doce Bar” vai ao fundo do copo no divã
São Paulo – Afinal, o que querem os homens? A pergunta é a melhor tradução da comédia musical “Bar, Doce Bar”, mais um texto de Luís Alberto de Abreu, em outra dobradinha com o diretor Ednaldo Freire – eles respondem pelo projeto de comédia popular da Fraterna Cia. de Artes e Malas Artes (“O Anel de Magalão”, “O Parturião” e “Burundangas”). Agora, o elenco é do grupo Zambelê, que há 15 anos prioriza musicais.
Responsável por trabalhos marcantes nos últimos anos (é de sua autoria “Bela Ciao”, “A Guerra Santa” e adaptação de “O Livro de Jó”, além das comédias populares com a Fraternal), Abreu vem demonstrando uma habilidade bastante eclética no trato com a dramaturgia. Em “Bar, Doce Bar”, ele visita o universo masculino, ‘o clube do bolinha” que adota o boteco como divã.
É ali, na mesa de bar, tomando umas cervejas e outras, de quando em vez um rabo-de-galo sem hemorróidas”, que um grupo de seis “machos” expõe a face que dificilmente revela na intimidade do verdadeiro lar, quer para a família. “É no bar, de homem para homem, que finalmente os homens conseguem se mostrar, revelando suas expectativas frente à mulher e ao mundo”, argumenta o diretor Freire.
Abreu se apropria de todos os chavões possíveis para tratá-los de forma poética, com um viés psicológico que, em muitas passagens, faz da comédia musical um drama. A peça percorre a amizade do grupo desde a adolescência até a “idade do lobo”.
A turma da escola, que cultua as pernas da professora; o pileque na comemoração da formatura; a despedida de solteiro do primeiro a colocar uma aliança; as inevitáveis crises conjugais; os encontros esparsos da vida adulta regrada pelo trabalho que consome tudo; enfim, os seis representam, por assim dizer, um pacto de fidelidade ao longo da vida. “Os homens são animais gregários por natureza”, filósofa um do bando, a certa altura.
Para demonstrar essa evolução, “Bar, Doce Bar” conta com um elenco preciso. Os seis rapazes do grupo Zambelê dominam a técnica do canto e da interpretação (assumidamente naturalista, sem virtuosismos). A ocupação do palco, colaborada pela coreografia de Augusto Pompeo, é bem-feita. A música, executada ao vivo por três instrumentistas, dialoga coerentemente com as atuações.
Há um sétimo personagem em cena, o garçon Alfredo (Clóvis Gonçalves), o “ombro” que conhece seus fregueses-de-carteirinha como ninguém e surge também como narrador-introdutor das situações do espetáculo. “Minha função aqui é servir e saber”, assume.
“Bar, Doce Bar” não tem a presunção de “Os Cafajestes”, por exemplo, musical escrachado da companhia baiana Los Catedráticos. Naquele, predomina o ideal fálico, machista, numa verdadeira sátira ao típico brasileiro. Já na história de Luís Alberto de Abreu, há espaço para a mulher.
Mesmo sem um papel sequer, é em torno dela que predominam as conversas. “O homem é emocionalmente dependente da mulher, mas não minha geração e da do Abreu, que está hoje na faixa dos 40 anos”, acredita o diretor.
“O bar é a trincheira dos homens”, conclui o garçon-narrador, ele mesmo também expondo a sua solidão; cúmplice dos fregueses. Em certos momentos, a montagem perde o ritmo; talvez pela reiteração de enfoques. Mas são breves instantes, não suficientes para emperrar o texto, a direção e a entrega dos atores Aldo Avilez, Fausto Maule, Fernando Petelinkar, Flávio Quental, Tico d’Godoy Jonathas Joba e Clóvis Gonçalves.
Com o novo espetáculo, o grupo Zambelê amadurece seu processo de pesquisa musical – sobretudo a comédia -, como o público já teve oportunidade de acompanhar em “Sexo, Chocolate e Zambelê” (1992) e no infantil “Chimbirins e Chimbirons” (1994). E o gênero musical está cada vez mais afinado, com fôlego para entreter sem padecer da síndrome de inferioridade.
Bar Doce Bar – De Luís Alberto de Abreu, mesmo autor de “Bela Ciao”, “A Guerra Santa” e adaptação de “O Livro de Jó”. Direção: Ednaldo Freire. Com grupo paulistano Zambelê. Quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Música composta por Marcos Arthur. Músicos: Giancarlo Gerbelli (teclado), João Adriano (violão), Fernando El Barracón (percussão) e Cássio Neves (baixo). Iluminação: Newton Saiki. Coreografia: Augusto Pompeo. Cenário, figurino, adereços: Luís Augusto dos Santos. Teatro Ruth Escobar (rua dos Ingleses, 209, tel. 289-2358). R$ 20,00. 95 minutos. Até 4 de maio.
26.1.1997 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 26 de janeiro de 1997. Caderno A – 3
VALMIR SANTOS
São Paulo – Marcelo Melo entrecruza as mãos, como se estivesse rezando diante do microfone. O grandalhão Toinho Alves, por sua vez, toca e canta abraçado ao baixo acústico, um instrumento maior que ele.
São imagens epifânicas dos dois remanescentes da formação original do Quinteto Violado, num “auto de fé” pelas raízes da música nordestina, que levam adiante com seus outros companheiros de palco, celebrando 25 anos de estrada.
E “25 anos Não São 25 Dias” é o nome do show e CD recém-lançado. O espetáculo foi apresentado semana passada, em São Paulo, na Sala Funarte, e agora está em cartaz no Rio.
O 28° disco do grupo foi gravado ao vivo, com participações especiais de Elba Ramalho e Alceu Valença. Mas acompanhá-lo ao vivo é sempre mais emocionante. O Quinteto surgiu em 1971. Desde sua gênese, está filiado aos artistas que têm a cultura popular como principal bandeira.
A mixórdia rítmica dá conta de baiões, cirandas, frevos e outros balangandãs que traduzem uma brasilidade inerente.
O instrumento, a letra e a presença dos músicos do Violado lembram outro Quinteto, o Armorial, que também surgiu em Recife (PE), na década de 70, capitaneado por Ariano Suassuna (“Auto da Compadecida”), e então com um moço baixinho e magrinho na sua formação: o instrumentista, ator e dançarino Antonio Nóbrega, o mesmo que anos depois se tornaria um dos símbolos da resistência cultural com seu Espaço Brincante.
O show de bodas de prata faz um apanhado da carreira. Assim como o CD, abre com “Tô Chegando”, composição de 25 anos atrás, de Duda Alves e Toinho Alves, cujos versos dizem “Do forró ao arrasta-pé/Nunca estou indo embora”. Não mesmo.
E tem “Bodas de Frevo”, poema de Aldir Blanc, musicado especialmente para a data (“Eu vi, olá/Um quinteto violando/Violalirando/Esse Brasil patife”). Tem “Águas de Março”, do maestro Tom Jobim, em versão embolada.
Tem homenagem a Luiz Gonzaga, com “Sabiá”, “Cintura Fina” e “Riacho do Navio”, todas em parceria com Zé Dantas.
Da passagem do grupo pela Ilha de Cabo Verde resultou a contagiante “Mulato”, letra e interpretação de Toinho Alves. E teve ainda leituras para “Tenho Sede”, de Dominguinhos e Anastácia, e “Pingos de Amor”, de Paulo Diniz e Odibar.
Melo, Toinho, Dudu Alves (teclados), Ciano Alves (flauta), Roberto Medeiros (percussão), mais o músico convidado Kiko (bateria) promovem um verdadeiro encontro com o outro Brasil, aquele além e acima do eixo Rio-São Paulo – espontâneo, criativo e vivo no que ele tem de mais belo na arte transformadora que é a música.
O Quinteto Violado, que neste ano ganha uma biografia, cravou com honra, coerência e sobretudo matutice o seu nome na história da MPB.
26.1.1997 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 26 de janeiro de 1997. Caderno A – 3
VALMIR SANTOS
São Paulo – Segue a “baciada” do “Mês Teatral” em São Paulo. O público tem oportunidade de assistir às melhores montagens da temporada passada, com ingressos ao preço simbólico de R$1,00. E ainda melhor para quem mora na região de Mogi: as bilheterias e quatro teatros da Capital, que fazem parte do evento, só vão vender os ingresso no dia do respectivo espetáculo.
Hoje serão apresentadas quatro peças. “O Professor”, escrita pelo argentino Roberto Cossa, tem sessão no Teatro Municipal. Celebrando 45 anos de palco, Antonio Abujamra dirige em parceria com Bette Dorgan e contracena com Petronio Gontijo e Leila Garcia. No Arthur Azevedo, a comédia “Uma Coisa Muito Louca” fala das complexidades de uma relação entre um homem e uma mulher, através da interferência constante de suas respectivas consciências – que viram personagens.
É o último dia também para ver “Intensa Magia”, no Paulo Eiró, drama encabeçado por Mauro Mendonça e Rosamaria Murtinho. A história escrita por Maria Adelaide Amaral enfoca uma reunião de família com sua cota de ressentimentos, gratidão, generosidade e amargura. Celso Frateschi, que perdeu sua mulher e atriz Edith Siqueira no ano passado, rende uma bela homenagem à companheira em “Do Amor de Dante Por Beatriz”, texto de Elias Andreato baseado em poemas de Dante Alighieri.
Na terça e quarta-feira, é a vez de conferir um dos melhores espetáculos de 96, “Melodrama”, que acaba de receber quatro indicações para o Prêmio Mambembe – sessões no Municipal. Em tom que oscila do reverente ao irônico e farsesco, resgata o mundo das relações familiares conturbadas, dos segredos guardados durante décadas, das identidades trocadas, das revelações fulminantes típicas do melodrama, gênero nascido na França em fins do século 18. Com a carioca Cia. de Atores, dirigida por Enrique Dias.
De quinta a Domingo, o “Mês Teatral” reserva sete montagens: “O Pequeno Mago”, com o grupo XPTO; “Viúva Porém Honesta”, de Nelson Rodrigues, com o Círculo dos Comediantes; “No Alvo”, de Thomas Bernhard. Protagonizada por Maria Alice Vergueiro; “Ubu Rei”, de Alfred Jarry, com o Ornitorrinco; “Sonata Kreutzer”, de Eduardo Wotzik, com Luis Melo (ex-Antunes Filho); “Fim de Jogo”, de Beckett, com Lineu Dias; e “Ensaio Para Danton”, de Georg Büchner, sob direção de Sérgio Carvalho.
Mês Teatral – Até o próximo domingo. Teatro Municipal (Praça Ramos de Azevedo, s/nº, tel. 222-8698). Arthur Azevedo (Avenida Paes de Barros, 955, tel. 292-8007). Paulo Eiró (Avenida Adolfo Pinheiro, 765, tel. 564-4449). João Caetano (rua Borges Lagoa, 650, 573-3774).