O Diário de Mogi
17.5.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 17 de maio de 1998. Caderno A – 4
Dirigido por Rojas, Pombas Urbanas cristaliza processo de grupo em sua terceira peça
VALMIR SANTOS
São Paulo – “Ventre de Lona”, terceira montagem do Pombas Urbanas, consolida o trabalho de pesquisa que o grupo desenvolveu nos últimos oito anos, desde sua criação em São Miguel Paulista, na zona leste da Capital. Para quem assistiu a “Os Tronconenses” (91), já encenado no Municipal de Mogi, e a “Mingau de Concreto” (94), este um espetáculo de rua, o crescimento é patente.
Afinal, é o primeiro trabalho, por assim dizer, profissional do Pombas. Suas montagens anteriores tinham base amadora, sobretudo em relação aos elementos visuais (cenografia, iluminação, figurino).
O que ocorre agora é uma simbiose entre a preparação do ator, característica recorrente do grupo, com outros elementos de cena, não menos fundamentais.
Há uma melhor compreensão do texto – inicialmente batizado “Funâmbulo” e depois transformado em “Ventre de Lona”. A dramaturgia de Rojas, peruano radicado no Brasil há 23 anos, é pontuada pelo realismo fantástico presente em obras de García Marquez, por exemplo.
Com a incrementação da linguagem visual, o espetáculo consegue ser mais claro em seus planos de sonho e realidade; inclusive nos planos espaciais, já que os personagens Fu e Serzinho, vez ou outra, caminham pela corda bamba e travam diálogos onde um se situa no alto e o outro no chão.
Oscilando entre a tragicomédia – gênero ambíguo no qual o Pombas parece se situar melhor, como se viu em “Os Tronconenses” – e o drama, “Ventre de Lona” apresenta uma história muito peculiar.
A história de Fu (Adriano Mauriz), abandonado ainda bebê à porta de um velho teatro. Criado pelos fantasmas que ocupam o antigo prédio – fantasmas de grandes estrelas do teatro que passaram por aquele palco -, Fu cresce envolto em uma “bolha”, distante da realidade de seres humanos como ele.
Quem cuida do garoto são Serzinho (Marcelo Palmares), Fedegoso (Paulo Carvalho Jr.) e o Coro, todos espíritos de artistas do passado.
Graças a eles, Fu é alimentado e aprende tudo sobre o circo e o teatro. Ensinam-lhe, por exemplo, a se equilibrar no arame.
Por volta dos 10 anos. Fu estabelece seu primeiro contato com a vida real. Uma menina de rua, a Mi (Marta Guedes), invade o local através de um buraco, em busca de teto. O choque, num primeiro momento (existem pessoas como ele, de carne e osso), resulta depois em afeição. Fu se enamora de Mi, provocando ciúmes nos fantasmas adotivos.
A esse fio da meada, Rojas acrescenta histórias paralelas como a da Mulher da Casa (Juliana Flory), que resiste a mais um despejo; a da Pipa (Kátia Alexandre), única maneira do menino Fu transitar entre o passado e o futuro; e a do Homem Alado (Palmares) e sua cachorrinha Mary (Kátia), história na qual o primeiro tanto quis aprender a voar que lhe nasceram asas nas costas e agora ensina o mesmo à sua melhor amiga.
Absurdas, mas nem tanto, as situações criadas pelo autor ganham lirismo e encantamento em cena. Há um momento em que Fu lembra que via o mundo através do umbigo da barriga da mãe. Aqui fora, ele não tinha medo da morte, mas da vida.
O crescimento – pessoal e artístico – dos atores do Pombas é uma grata constatação para quem os acompanha desde 1989. Palmares se destaca pela expressão corporal de traços primitivos, pela pintura que vai dos pés à cabeça raspada, e pela própria natureza do seu Serzinho, personagem carismático que não é nada mas é tudo.
Carvalho Jr. vai em direção contrária: menos expansão, mais introspecção. Como Fedegoso (espírito de um ator que morreu queimado no teatro) e Homem Bílis (torcedor fanático, marido da Mulher da Casa), o ator combina, chaplinianamente, o peso e a leveza da existência.
Mauriz, o caçula do elenco, ainda carrega o estigma das crianças de “Os Tronconenses”. Parece-lhe difícil romper com a máscara daqueles personagens. Sobretudo nos momentos em que Fu se vê às voltas com sentimentos demasiadamente humanos, como no reencontro com a mãe e no envolvimento amoroso com Mi. No entanto, Mauriz tem a seu favor o brilho dos olhos a todo instante e aquela entrega em cena que ganha qualquer espectador.
Marta buscou referências nas meninas de rua para construir sua Mi. A composição tem consistência, mas ainda falta maior proximidade da atriz com a personagem. Ela às vezes chega lá, mas recua. E o texto indica que a história de Mi, favelada e mãe aos 11 anos, é mais profunda.
Kátia encarna uma Pipa, esse brinquedo tão frágil que crianças e adultos empinam nos céus. Tanta subjetividade é materializada em movimentos pela intérprete, no diálogo emocionante com Fu. Ele descarrega a linha para que ela voe cada vez mais longe a fim de encontrar a mãe do garoto. É uma cena tocante.
Juliana Flory tem em suas mãos a carga propriamente dramática de “Ventre de Lona”. Faz Jéssica, a garota que abandona Fu, e a Mulher da Casa, a quem o menino identifica como sua mãe no futuro. São papéis viscerais, de grande carga existencial.
Juliana não os domina plenamente, mas transmite o desespero diante dos cruéis desígnios do destino.
A direção de Rojas, mais uma vez, privilegia o instrumental do ator. O conteúdo dos gestos, da movimentação do elenco, do encadeamento das cenas, tudo depõe a favor do intérprete.
O despojamento também está presente na cenografia e no figurino de Márcio Tadeu. Cercado por lonas pintadas com motivos, ao que parece, rupestres, autóctones, um guarda-roupa no centro do palco serve como “túnel” de onde surgem os personagens e para onde eles voltam, tal qual uma caixa de pandora.
A iluminação de André Boll dá corda ao imaginário que a peça propõe. São marcações precisas, distante da estilização gratuita. O mesmo ocorre com a sonoplastia, que traz, entre outras, composições de Tom Zé.
Com seu caráter quase artesanal, onde tudo se desmancha e ergue, onde o efêmero ganha status de infinito, “Ventre de Lona” dá conta de conjugar a sua poesia cênica. (Apesar do problema concreto da voz, com seus altos e baixos, que merece prioridade daqui para frente). O espetáculo cristaliza especificidades de um grupo estável – como a gana, o respeito e a honestidade com que o Pombas pisa o palco. Premissa de grandes artistas.
Ventre de Lona – Texto e direção: Lino Rojas. Com Pombas Urbanas. Quinta a domingo, 20h. R$ 7,00 (quinta e domingo) e R$ 15,00 (sexta e sábado). Centro Cultural Elenko (rua Cardeal Arcoverde, 2.958, Pinheiros, tel. 870-2153). Até 28 de junho.
Texto e montagem se chocam em peça
São Paulo – Escrita e dirigida pelo jovem Samir Yazbek, “Antes do Fim” é prejudicada, tudo indica, pela dupla função do autor. Yazbek não consegue estabelecer um distanciamento suficiente entre seu texto e o que concebe para o palco. A sobreposição de planos da história complica ainda mais seu ritmo em cena.
A peça abre com o velório de Rodrigo, que matou a namorada Luciana e suicidou-se em seguida. Tadeu, um dos melhores amigos do rapaz, matuta em compreender a tragédia. E ele quem funciona como narrador para recapitular o namoro de Rodrigo e Luciana, na forma de flashback.
Daí para frente, acompanhamos a gênese do relacionamento, sua ascensão e queda. A reconstrução do crime passional instiga. Mas o autor abre tanto o leque para desenhar as personalidades conflitantes de Rodrigo e Luciana que o enredo torna-se maçante (tem os pais dele, o melhor amigo “do bem”, o melhor amigo “do mal”; e tem a melhor amiga dela, conselheira de plantão).
Na ânsia pela minúcia, o texto de Yazbek peca por passagens inverossímeis, ou pelo menos montadas assim. O encontro de Rodrigo com a enfermeira e o de Luciana com Ivo soam artificiais, sobretudo pela ligeireza dos diálogos.
Mas o entrave maior está na figura de Tadeu (Wagner Reixelo). Todo vestido de preto, ele surge como um guru espírita. A fala com auxílio de microfone torna sua voz mais etérea, corrobrada pela música new age ao fundo. Quando se condói ao final, imaginando os tiros disparados e perguntando ao Rodrigo, já morto, “Por que você não me ouviu, cara?”, então a peça descamba de vez para o tom religioso, com direito a mensagem do falecido para Tadeu “seguir em frente”.
Nessa “equação de várias variáveis”, como diz Tadeu a certa altura, “Antes do Fim” não apresenta grandes atuações. Os protagonistas Rodrigo Penna (Rodrigo) e Ehsa Nuiiez (Luciana) são intérpretes que seguem à risca o perfil dos personagens e não têm impacto. O restante do elenco também se esforça, mas os papéis não ajudam, porque deslocados do eixo principal.
O rigor da marcação de palco, por conta de um cenário (Paulinho de Moraes) que traz um tablado, ele também, dividido em vários planos, em escala piramidal, também contribui decisivamente para o esquematismo que toma conta dos atores. Há uma tensão constante, que não é dissimulada sequer na cena em que o elenco deveria surgir mais à vontade: quando Rodrigo vai com um amigo à boate.
Yazbek poderia ter criado um torvelinho de paixão e ciúmes menos complicado.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.