O Diário de Mogi
26.7.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 26 de julho de 1998. Caderno A – 4
Mário Bortolotto enfoca solidão na peça encenada pelo Cemitério de Automóveis
VALMIR SANTOS
São Paulo – Existe uma marca Cemitério de Automóveis, o grupo fundado em Londrina há 16 anos, desde 96 ancorado em São Paulo. Existe sobretudo a marca do ator, diretor e dramaturgo Mário Bortolotto. Arrisque-se uma definição, uma palavra para traduzir a trajetória de ambos: a insolência. |
Ela está lá, no “Aurélio”: “5. Que por seu caráter incomum, é como uma provocação, um desafio à condição humana”. Está lá também na mais recente montagem, “Postcards de Atacama”, com seus personagens limítrofes; seres soltos no deserto da vida que se vive.
Bortolotto enquadra a solidão nesta que é a segunda peça, escrita este ano, da trilogia que começou com “Medusa de Ray Ban” (96), jogando luz sobre a violência, e vai fechar em breve, em texto ainda sem título, colocando a morte em xeque.
E uma solidão crua, sem tintas. Às vezes o que se insinua como uma estilização das linguagens dos quadrinhos, do cinema noir ou mesmo da despretensão rock’n’roll, logo é dissimulada no silêncio, no movimento centrífugo dos personagens e suas inquietações interiores.
Jasão (Bortolotto) é um detetive metido a besta. Cansada das traições, sua mulher, Nico (Gabriela Schwab) o abandona. Em seguida, ele é contratado por Mae (Fernanda D’Umbra), uma mulher misteriosa que deseja encontrar seu marido, Toddy (Everton Bortotti), desaparecido do mapa – a única pista são os postais enviados do deserto do Atacama, no Chile.
O encontro de Jasão e Toddy catalisa boa parte da peça. Aliás, ela abre com o diálogo desconexo de ambos, recheado de silêncios a la Beckett. E a tríade cerveja-arroto-poesia compõe o fluxo vital de um Toddy suicida em potencial.
“Postcards de Atacama” fala da saudade, da distância que separa as pessoas longe de um lugar que não existe (Richard Bach).
Fala da impossibilidade de ceder e definir um território mútuo. Na sua distensão afetiva, avesso ao apego, Jasão é tão solitário quanto Toddy, desconcertante na falta de aceno para a vida.
Em transe
As mulheres de ambos não ficam atrás. Mae e Nico compartilham, retro-alimentam as neuroses. Parecem sonâmbulas diante da realidade. Estão, igualmente, em transe. Nico, por exemplo, curte andar na chuva, andar de carro com o cara que ela gosta. Mae prefere pregar os postais “dele” na parede, onde o olhar não os alcança.
E não é apenas o quarteto em si quem conduz a peça. Bortolotto criou subtextos que constituem verdadeiros torpedos contra a moral e os bons costumes que a tudo e a todos cegam.
Há o incrível quadro do comercial de aparelho de ginástica, cuja presença da gordinha atriz Carla Meneguella rouba a cena. Há a fixação do rapaz pela masturbação. Há o sujeito que vai vender a alma ao diabo e nem este a aceita. Há o fã que morre de amores por Brad Pit e briga com duas indefesas garotas por ele, o galã hollywoodiano.
São os tiros perpetrados por Bortolotto em “Postcards de Atacama”. Em mais um painel estilhaçado pelo instinto passional, capaz de amar e odiar, sua atuação não se distingue das anteriores. O ator Bortolotto foge de qualquer traço de psicologismo. Os personagens que vive em cena, depois de criá-los no papel, constituem o próprio no limite.
Bortotti compõe um Toddy entorpecido. O intérprete deixa muito claro o tênue fio que separa a loucura da razão. Suas indagações são pertinentes àqueles que não passam pela vida à toa, sem que a tenha nas mãos, por inteiro, ou deixe escorregá-la feito água.
Fernanda D’Umbra também faz da sua Mae um ser em suspenso. Seu oinar enxerga o infinito, mas não sabe como chegar lá. E uma atuação digna de poeta pertubada. Gabriela Schwab, como Nico, é a outra mulher etérea, dona de si e submissa a quem ama. A atriz espelha essa impulsividade em movimentos corporais bruscos, acrescentando elementos à cena.
Aos coadjuvantes Joeli Pimentel, Carla Meneguella, Aline Abowski e Pedro Fiori, compete a veia cômica. E dá-lhe esquetes estriônicos, algo escatológicos, que funcionam muito bem como válvula – e complemento – do drama.
A direção de Bortolotto é a mais solta possível. Dentro desse “à vontade”, porém, ergue-se a empatia do Cemitério de Automóveis com o público. São atores despojados, intensos, dispostos a dar o melhor de si para ganhar o personagem, primeiro, e depois o espectador, como conseqüência.
O blues está na trilha e no coracão do diretor e ator, cutu cando tristeza e alegria esmaecidas nos quatro cantos do quarto e do mundo.
Postcards de Atacama – Texto e direção: Mário Bortolotto. Com Cemitérios de Automóveis (Aline Abowsky, Everton Bortotti, joel Pimentel, Pedro Fiori e outros). Quinta a sábado, 21h30; domingo, 20h30. Centro Cultural São Paulo (rua Vergueiro, 1000, tel. 277-3611). R$ 12,00. Duração: 60 minutos.
Bortolotto diverte-se com coisas sérias
São Paulo – Divertir-se falando de coisas sérias – eis o axioma que melhor define a dramaturgia do paranaense Mário Bortolotto, 35 anos. Segundo ele, sua obra, composta por 25 textos até aqui, se afina mais com a de Plínio Marcos (“Navalha na Carne”, “Dois Perdidos Numa Noite Suja”).
Mas o “maldito” Bortolotto não liga muito para a pecha. Não lhe ocorre, por exemplo, perambular pelas portas de teatro com seus livros debaixo do braço, oferecendo para os espectadores. “Há momentos em que eu gostaria de jogar tudo para o alto e ficar em casa jogando videogame”, confessa. E o tipo de artista que prefere o boteco da esquina a paparicadas estréias de teatro.
Para o dramaturgo, uma história sempre começa com “o umbigo da gente”. Ou seja, tudo o que se vê em cena tem relação direta ou indiretamente com sua vida.
Boa parte dos textos – senão todos – foi montada pelo Cemitério de Automóveis. Junto com “Postcards de Atacama”, recém-estreada, o auto lança o segundo volume de “Seis Peças de Mário Bortolotto” – que inclui aquela, mais “Nossa Vida Não Vale um Chevrolet”, “Uma Fábula Podre”, “Curta-Passagem – Quatro Pocket Peças”, “À Queima-Roupa” e “A Lua é Minha” – esta inédita, que também deve ser montada até o final do ano.
A crítica ainda não deu a devida atenção ao dramaturgo. Sua obra retrata com precisão o tanto de angústia que aflige a geração que está na casa dos 30. Sexo, droga, rock’n’roll, política, universidade, solidão, insegurança, enfim, suas peças vão direto ao assunto, sem concessão e com saco cheio da retórica herdada.
O Bortolotto diretor não desenvolveu propriamente uma técnica. Tem afinidade com marcação de cena, mas suas montagens são pobres em recursos cenográficos ou visuais. Pobres no sentido em que seu trabalho comporta. Daí a ênfase no trabalho de ator.
Neste quesito, o ator Bortolotto é dono de um forte carisma em cena. Há um deboche, um “estar nem aí”, um lampejo de explosão facial, um gesto brusco, enfim, a tensão é regra em suas interpretações, como se viu em “Santidade”, dirigido por Fauzi Arap.
Há também o Bortolotto vocalista de banda. Canta levadas de blues e rock na Garagem Hermética, de Londrina (PR), sua cidade natal. O primeiro CD da banda sai em breve. Ah, sim, há também o poeta Bortolotto…
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.