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meetings with a young poet

Entrevista

A arte política de Maria de Medeiros

29.1.2013  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Sebastien Raymond

O público brasileiro afeito aos trabalhos da portuguesa Maria de Medeiros no cinema – como atriz e diretora – ou mais recentemente na música – como cantora e compositora -, finalmente vai descobri-la no teatro, arte que considera ser fundamental em tudo que construiu em 30 anos de carreira. Ela sobe ao palco para interpretar uma psiquiatra de meia-idade às voltas com aparas ideológicas e afetivas com a filha, advogada. O espetáculo “Aos Nossos Filhos” corresponde a um instantâneo na vida de duas mulheres mobilizadas pelo que fizeram do desejo e do ofício de viver.

O texto é de Laura Castro, atriz e produtora do Rio que debuta como dramaturga e contracena com Maria de Medeiros sob direção de João das Neves, tarimbado e ativo cofundador do grupo carioca Opinião, referência do teatro político nos anos 1960, ao lado de Ferreira Gullar, Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974), Teresa Aragão, Paulo Pontes (1940 – 1976) e outros. O espetáculo estreia em Brasília em 1º de fevereiro, no Centro Cultural Banco do Brasil, cumprindo temporada depois no Rio (março) e em São Paulo (abril ou maio).

No enredo, Vera, a mãe interpretada pela atriz portuguesa, consagrou parte da juventude à luta armada contra a ditadura militar. Passou sete anos no exílio, casou três vezes, teve filhos e enteados e agora está divorciada, engajada na assistência a crianças soropositivas. Tânia, a descendente vivida por Laura Castro, vai a seu encontro naquela noite para anunciar a boa nova de que também será mãe: a companheira engravidou com o processo de fertilização in vitro. Mãe e filha vão contrapor atitudes revolucionárias e “caretas”.

Maria de Medeiros, de 47 anos, foi seduzida por esse projeto há cerca de três meses, prazo curto e raro para padrões europeus nos quais as agendas são negociadas com semestres de antecedência. Convidada por Laura, ela se deixou enredar pelos tantos acasos ou sincronias bordados ao tema e às pessoas envolvidas que até então desconhecia, apesar da frequente interlocução cultural com o Brasil.

Faz dez anos que Laura concilia atuação e produção na cena carioca. Em sua primeira experiência como autora, sonhava dividir o palco com Marieta Severo, que inclusive foi fundamental para burilar o texto, mas a atriz assumira outros compromissos quando saiu o patrocínio para a montagem.

Preocupada em encontrar uma intérprete que emanasse a perseverança e o carisma de Vera, Laura deu ouvidos a uma sugestão aparentemente sui generis de seu cunhado, o cineasta Guilherme Hoffman.

No final de outubro, ele lhe propôs o nome de Maria de Medeiros para o papel. A mesma se encontrava em São Paulo para as sessões do seu documentário “Repare Bem” na Mostra Internacional de Cinema, além de show com canções de seu terceiro disco, “Pájaros Eternos” (2012) – os CDs anteriores foram “Penínsulas & Continentes” (2010) e “A Little More Blue” (2007), este com forte evocação à MPB, com repertório que inclui Chico Buarque, Caetano Veloso, Dolores Duran etc.

As simultaneidades suscitadas pela peça precipitaram assim que Maria a leu. Ao assinar direção e dividir o roteiro de “Repare Bem” (2012), por exemplo, ela capta os estilhaços humanos e políticos de regimes autoritários na saga de uma família.

No filme inédito no circuito comercial, o guerrilheiro Eduardo Leite, o Bacuri, morre em 1970 torturado pela ditadura militar brasileira. Sua companheira, Denise Crispim, está grávida e também é perseguida e presa. Com o nascimento da filha, Eduarda, ambas conseguem fugir para o Chile. Meses depois, enfrentam a violência do golpe de estado do general Augusto Pinochet que as empurra para novo exílio por países europeus. O documentário resgata ainda o diário da mãe de Denise, a ativista Encarnación, entrelaçando assim as gerações da avó, mãe e filha.

Já entre as faixas de “Pájaros Eternos”, Maria interpreta “Ese Gusto”, versão em espanhol de “Aos Nossos Filhos”, de Ivan Lins, título homônimo da peça. Laura havia escolhido justamente a canção para a trilha que pontua as cenas. Os versos contextualizam sobremaneira a militância de Vera, os sintomas do passado e as ponderações do presente, como sinaliza uma das estrofes: “E quando passarem a limpo/ E quando cortarem os laços/ E quando soltarem os cintos/ Façam a festa por mim”.

Para Laura, “a Maria caiu do céu”, pois jamais imaginara parceria com a profícua artista internacional escalada para filmes premiados como “Henry & June” (1990), de Philip Kaufman, ou “Pulp Fiction” (1994), de Quentin Tarantino. Sem contar o bem-sucedido longa-metragem de estreia na direção, “Capitães de Abril” (2000), a respeito da Revolução dos Cravos em Portugal.

Maria de Medeiros, por sua vez, se diz tocada pelas questões que a dramaturgia contempla, como resistência e memória nos planos do indivíduo e do país, além dos aspectos da homoafetividade e da reconfiguração da família contemporânea.

Laura Castro tangencia ficcionalmente o universo que conhece de perto, dona de história singular na vida real. Ela vive há 13 anos com a atriz e sócia Marta Nóbrega. O casal tem três filhos: Rosa foi gerada por Marta com inseminação artificial em junho de 2010; José, por Laura com fertilização in vitro em maio de 2012; e Clarissa, adotada em agosto passado.

Na entrevista ao Valor, antes de chegar ao Brasil no início do ano, Maria de Medeiros diz por que embarcou em “Aos Nossos Filhos”, e não só pela identificação com os conteúdos, mas pela distância da família que mora em Paris – o marido e as duas filhas virão visitá-la na semana de estreia. Revela outra evidência de que o teatro anda em seu encalço ao rodar no Canadá, até às vésperas do último Natal, um filme que evoca a vida e a obra do dramaturgo irlandês Samuel Beckett (1906-1989). E ainda não escapa à atriz o drama humano do refluxo econômico na Europa.

Aos Nossos Filhos

Maria e Laura contracenam em Aos nossos filhos

Valor:  Sincronia parece ser uma palavra-chave no seu encontro com Laura Castro para a peça. Como vê as correlações de “Aos Nossos Filhos” com suas criações recentes?

Maria de Medeiros: A sincronia corresponde de fato. Fui especialmente sensível à peça da Laura, extremamente bem escrita, porque estou mergulhada nessa temática. Por causa do meu documentário “Repare Bem”, estabeleci enorme familiaridade com a Denise Crispim e sua história [hoje, ela e a filha vivem na Europa e foram anistiadas pelo governo brasileiro]. Reconheci muitas coisas da Denise na personagem da Vera. Fiquei muito tocada. Outra coincidência incrível foi a versão da música de Ivan Lins que gravei no meu último disco. Tantas sincronias me fizeram pensar que não poderia recusar a proposta de “Aos Nossos Filhos”.

Valor: Quais as suas percepções de Vera?

Maria: É muito interessante o modo como Laura aborda a personagem em meio às próprias contradições, sua luta e sua lógica diante da atualidade, o confronto com a filha que por sua vez tem outras lutas. O diálogo reflete questões que toda a sociedade se coloca e vai poder verificar no palco. A Vera diz que a filha é careta por dar muita importância a valores do casamento e da família, o que sua geração recusava. O público vai poder realmente participar dessas questões, e elas ficam em aberto. Isso é o que mais me interessa numa obra de arte: abrir perspectivas.

Valor: Outra aproximação suscitada pela peça é que você está escrevendo roteiro para um filme que vai falar da superação de obstáculos para ter filhos.

Maria: Estou trabalhando num roteiro aqui na França que tem a ver com esse desejo. Há um casal de homens que quer ter filhos e, para isso, recorre à inseminação artificial lá nos Estados Unidos, pois esse procedimento não é permitido em alguns países europeus. E há uma mulher que quer ter filho, mas precisa contornar sua idade e o fato de o marido já ter duas crianças do casamento anterior. Os desejos dela e do casal homoafetivo de alguma forma se unem.

Valor: Como avalia sua última criação em teatro, em 2011, ao encenar, atuar e adaptar um romance de António Lobo Antunes?

Maria: É uma obra que gostaria muito de apresentar no Brasil. Casa teatro e literatura com a arte equestre portuguesa. O texto homônimo do romance de Lobo Antunes, “Que Cavalos São Aqueles que Fazem Sombra no Mar”, conta a história de uma família outrora rica, ligada a um latifúndio e a cavalos. A cultura portuguesa costuma ser pensada a partir da sardinha, do fado, mas raramente se fala da arte equestre, que também é muito enraizada. Em suma, é uma coreografia que evoca o mito do centauro, em que o homem faz corpo com o cavalo [rosto, torso e braços de homem, garupa e pernas de cavalo]. O animal surge no palco no momento da dança, mas sua participação é mais contida se comparada ao teatro equestre do diretor Bartabas na França. Até porque o fluxo da literatura do Lobo é realmente vulcânico, como um cavalo a galopar. A gente se apresentou em Paris e Lisboa. Gostaria muito de mostrá-lo no Brasil, até porque sei que alguns dos melhores cavalos portugueses são criados aí.

Maria atua na obra de Lobo Antunes em 2011

Valor: Você entende o teatro como arte basilar para seus projetos audiovisuais e musicais?

Maria: Minha formação é teatral, apesar de ter começado no cinema muito jovem, aos 15 anos. Meus estudos de teatro aconteceram no Conservatório Nacional em Paris. É essencial ao ator passar pelo teatro. Por meio dele aprendemos a dominar nosso instrumento interno: o corpo. Reconheço que na minha carreira a imagem está muito realçada por causa do cinema. O que há de cada vez mais interessante nas artes cênicas é a diluição das fronteiras. Não é possível subir ao palco e ignorar a dança, por exemplo. Alguém como Pina Bausch [1940-2009, coreógrafa alemã] teve papel extraordinário nisso, colocou seus bailarinos para atuar. Um ator não pode ignorar a arte coreográfica atual, seja de Pina ou de outros artistas. Tudo é diálogo em cena. Quando se está em cima do palco, todo o corpo é expressão.

Valor: Como foram as gravações do filme canadense inspirado em Beckett [“Meetings with a Young Poet”, de Rudy Barichello]?

Maria: Estou aqui em casa justamente vendo as fotos desse filme, no qual passo por vários personagens beckettianos. Chego a interpretar o próprio em determinado instante. Tem uma maquiagem incrível que me transforma em Beckett. Sou apaixonada por ele. Um dos meus primeiros filmes como diretora, na época do conservatório, foi uma adaptação de “Fragmento de Teatro 2”, uma das peças curtas dele. Fiquei muito feliz com a proposta desse filme em torno do dramaturgo, de interpretar uma atriz tão apaixonada pelo Beckett, um pouco como eu – só que a identificação dela é tanta que acaba virando ele.

Valor: A maioria dos seus projetos artísticos envolve memória, política e identidade. Não concebe a arte sem essas dimensões?

Maria: Eu diria que sim. O que me interessa na arte é a reflexão sobre a realidade. Digamos que o “entertainment”, feito só para distrair, isso não me interessa muito. Ao contrário, acho-o meio perigoso, porque enquanto estamos distraídos, o mundo evolui sem que a gente se dê conta do que está acontecendo. Estamos falando de Beckett, por exemplo, cuja obra realmente nos faz despertar, não nos adormece.

Valor: Como vê as dramáticas sequelas da crise econômica na vida europeia?

Maria: Todos os europeus estamos muito preocupados com essa situação de grande injustiça. O nível de irresponsabilidade é dos bancos, da escala industrial e dos governos. Com certeza, a cultura, a saúde e a educação não podem ser responsabilizadas pela situação que vivemos. As pessoas assalariadas são as mais afetadas, é terrível. Evidentemente, quando se extingue a cultura, não é isso que vai ajudar a recompor as finanças. Atacá-la é um ato político que vem tirar proveito diante da crise. Calar a voz da cultura é sempre um ato político.

“Aos Nossos Filhos”

Centro Cultural Banco do Brasil – Brasília – teatro 1 (Setor de Clubes Esportivos Sul, trecho 2, lote 22). Tel. (61) 3108-7600. Sex. e sáb., às 21h; dom., às 20h. R$ 6. De 1º/2 a 24/2.

(Artigo publicado origialmente no jornal Valor Econômico, seção Eu&Cultura, 24/1/2013, p. D5)

 

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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