Crítica
11.7.2013 | por Valmir Santos
Foto de capa: Ricardo Boni
Em sua formulação documentária da cena, na década de 1960, o alemão Peter Weiss (1916-1982) evitava “qualquer invenção” ao se debruçar os fatos. Era compreensível pensar assim em tempos de abates vietnamitas e americanos. O autodenominado laboratório de artistas Mapa Teatro jamais conseguiria tocar a história colombiana recente sem lançar mão da inventividade. Prova disso é a explosiva abordagem da falida guerra às drogas em Discurso de un hombre decente (2012), tão cara, política e financeiramente, a Bogotá e Washington.
A questão que imbrica a fronteira do Brasil com o vizinho e perpassa a sociedade global é disparada por meio de um bilhete encontrado no bolso do chefe do cartel de Medellín, Pablo Escobar (1949-1993), perseguido e morto pelas forças de segurança nacional com apoio dos Estados Unidos. Em suma, ele vaticinava ser presidente da Colômbia e elevar a cocaína à categoria de produto de exportação.
Enquanto a narrativa audiovisual situa, com faro científico de Discovery Chanel, como o pedaço de papel foi considerado arquivo secreto pela Agência Central de Inteligência norte-americana – a CIA só o desclassificou 18 anos depois –, transcorrem as ações que põem de pé a teatralidade porosa dos irmãos Heidi e Rolf Abderhalden.
O tema narcotráfico evolui sem patinar na gravidade moralizante Logo na abertura, um profissional afins, pinçado pela produção local do FIT Rio Preto – para a primeira sessão foi convidado um psiquiatra – é o entrevistado de uma apresentadora televisiva esculpida no clichê. Ele raciocina sobre os efeitos das drogas lícitas e ilícitas, a plausibilidade da discriminação, diagnosticando as contradições da sociedade.
A estratégia, para ficar numa expressão bélica, é corromper esse material. Uma investigação de outra natureza. O último discurso e a mitologia em torno de Escobar servem à instalação realista de um denso conjunto de plantas cujas folhagens sugerem a selva amazônica, território de produção da cocaína e de cooptações pela guerrilha.
Atores, músicos e não atores inscrevem outro discurso performativo no coração dessa floresta misteriosa, revelada aos poucos por trás do filó. A cena é potencializada pela presença de pessoas que conheceram de perto os episódios e o respectivo protagonista.
Notadamente o músico septuagenário Danilo Jiménez, que tocou em festas particulares para o poderoso Escobar e seu séquito. E acabou vítima de atentado dos traficantes contra policiais em que foram mortos a sua mulher e alguns amigos da banda, no início dos anos 1990. Ele mesmo sofreu sequelas que ainda carrega no corpo e na alma pelo impacto das bombas.
O indício humano é um recurso delicado em que o relato pode resvalar em violência contra seres que já sofreram o bastante. O Mapa Teatro, no entanto, dosa essa mediação com tratamento essencialmente artístico, sem maniqueísmo.
Jeihhco, rapper de Medellín – cidade historicamente conflagrada pela violência, cenário em transformação nos últimos anos –, é a voz mediúnica de Escobar ao microfone, que por sua vez saúda outros fantasmas. Os limiares ficcionais e reais aparecem ainda em registros, transcrições e traduções que conformam a dramaturgia de imagens e de musicalidades manifestas.
Fusões que fazem parte da cartografia do grupo em obras vistas recentemente no Brasil, como Testigo de las ruínas (2005), que reporta o processo de gentrificação de um bairro de população empobrecida de Bogotá, destruído para dar lugar a um parque temático, e Los santos inocentes (2010), que captura e recria o espírito de uma festa popular do interior colombiano em que homens travestidos e mascarados chicoteiam quem encontram pelo caminho.
Discurso de un hombre decente aporta em escala macropolítica reflexos que incidem sobre o campo individual. Aciona a densidade e a dubiedade sem ofuscar a ironia crítica e o esquema de linguagens mistas que o Mapa Teatro cultiva há 29 anos, sem fronteiras.
PS: O espetáculo que passou pelo FIT Rio Preto faz última sessão nesta quinta-feira, 11, no Sesc Vila Mariana, em São Paulo.
>> O jornalista viajou a convite da organização do FIT Rio Preto. Produziu textos para o catálogo e articulou parte das atividades formativas.
Ficha técnica
Concepção, dramaturgia e direção: Heidi y Rolf Abderhalden
Logógrafo: Camilo Uribe
Com: Heidi Abderhalden, Agnes Brekke, Jeihhco, Francisco Thoumi y Banda Marco Fidel Suárez, dirigida por Danilo Jiménez
Músicos: Juan Pablo Becerra, Rodrigo Gaviria, Andrés Mauricio Herrera, Danilo Jiménez e Óscar Jiménez
Música, desenho sonoro e sonoplastia ao vivo: Juan Ernesto Díaz
Desenho visual: Heidi y Rolf Abderhalden
Cenografia: Pierre-Henri Magnin
Desenho de luz: Jean Francois Dubois
Desenho de figurino: Elizabeth Abderhalden
Imagens em Super 8: Luis Antonio Delgado, Pilar Perdomo
Edição: Luis Antonio Delgado
Vídeo ao vivo: Ximena Vargas
Material fotográfico: Kokuse Okahara
Produção: Ximena Vargas e José Ignacio Rincón
Coprodução: Mapa Teatro com Iberescena, Festival Iberoamericano de Teatro de Bogotá, Festival Santiago a Mil, Interior Produções Internacionais, Fundação Siemens e KaaiTheater
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.