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Crítica

Emilia desencaixa os graus de separação

13.7.2013  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Gustavo Pascaner

A sequência de espetáculos que o grupo Timbre 4 cria desde meados da década passada tem como matéria-prima a convivência interpessoal sob o mesmo teto, a casa e o trabalho como espaços de intimidade. Microcosmos velados que o diretor e dramaturgo Claudio Tolcachir dá a ver para além do contexto argentino. Em Emilia, a família mal pisa a nova residência, ainda em mudança, quando o chão se abre e os engole sob o efeito de como cada um tem habitado suas vidas.

O novo drama de Tolcachir, que estreia no Brasil nesta edição do FIT Rio Preto, é caracterizado por diálogos curtos entre seres desconexos, sejam consanguíneos ou não, segundo os arranjos familiares contemporâneos. O discurso superficial nas relações entre padrasto, mulher, filho, pai e ex-empregada logo dá lugar a graus mais profundos de separação.

Walter, o padrasto, é a corrente motora desse porvir. No mesmo dia em que está de mudança, encontra Emilia nas cercanias. Trata-se da babá que foi decisiva em sua criação, ainda que até então não tivesse se dado conta disso, como constata firmemente ao longo daquele encontro surpresa. Não a via há anos, nunca se importou pelo destino dela. Ato contínuo, a convida para um café ou um chá que jamais é servido porque tudo ainda está encaixotado.

As caixas abertas nesta peça são de outra natureza. E as mudanças, literais.

O casamento está no fim. Walter não notara os sinais. A mulher deambula em cena com a morte em vida, corpo arqueado, alma entorpecida. Ele é efusivo, impaciente, raciocina como um gestor do lar, mais que um provedor. Relaciona-se com o enteado adolescente como se fora um amigo de mesma idade. Do tipo que conta bravatas, alardeia coragem sem o sê-lo.

Como a atenção remunerada para zelar pelos primeiros passos daquela criança que hoje é o homem da casa, Emilia posta-se na conhecida condição de espectadora. A história é narrada sob o ponto de vista dela. A personagem possivelmente menos instruída, mais alienada e de classe social inferior percebe conscientemente o que está em xeque, apesar de insistir na visão cândida diante dos fatos e das atitudes, incapaz de apontar o contraditório, como convém aos submissos.

A chegada do ex-marido e pai da garoto é o ponto de curva no texto a precipitar as ações para o desfecho com tintas de um thriller. Rompem-se os acordos tácitos, as emoções saem dos trilhos. Entre a abertura e o final, Emilia serve, no olho a olho com o espectador, indícios que vão permitir leituras pretéritas e futuras daqueles que para ali confluíram e foram para sempre transformados.

A garantir o substrato rente ao melodrama, sem jamais sucumbir, está um elenco potente.

Atuação apurada na nova obra da argentina Timbre 4

Carlos Portaluppi e Elena Boggan, em sua incrível estreia profissional aos 67 anos, no teatro amador desde os 19 – aluna até 2012 da escola que a sede do Timbre 4 também é em Buenos Aires – são os vetores extremos desse drama que realinha o ex-bebê e a ex-babá. Trânsito que exige ainda estados cômicos perfeitamente atendidos. Equilíbrios e texturas que não faltam nas presenças de Adriana Ferrer (a mulher), Francisco Lumerman (o menino sem maneirismos) e Gabo Correa (o pai e ex-marido).

O desenho cenográfico de Gonzalo Cordoba Estevez dá guarida a esses personagens limítrofes em solução nada óbvia para o imaginário de uma sala de estar que recebe novos moradores interiormente pouco à vontade. Cobertores empilhados, objetos que dão a medida da temperatura média portenha, demarcam a quadra para o jogo de atores. Não há subterfúgios: tudo é vazado e nem a única porta é pretexto para atravancar os deslocamentos entre as quatro paredes ausentes.

Com uma história de viés biográfico, mas distante do gênero, e como sempre seguro na direção de atores em que o apuro técnico já é meio caminho, Tolcachir soma mais uma experiência significativa ao repertório em que La omisión de la familia Coleman, Tercer cuerpo e El viento en un violín confirmam o DNA estético da companhia: uma boa história de pinceladas naturalistas e realistas estruturada de forma inteligente e contada por meio de atuações idem.

>> O jornalista viajou a convite da organização do FIT Rio Preto. Produziu textos para o catálogo e articulou parte das atividades formativas. 

Ficha técnica

Dramaturgia e direção: Claudio Tolcachir

Com: Elena Boggan, Gabo Correa, Adriana Ferrer, Francisco Lumerman e Carlos Portaluppi

Desenho de cenografia: Gonzalo Cordoba Estevez

Desenho de luz: Ricardo Sica

Assistência de direção: Gonzalo Córdoba Estevez

Produção geral: Maxime Seugé e Jonathan Zak

 

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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