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Crítica

Anacronismos ofuscam ideias em ‘Fogo-fátuo’

28.8.2013  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Júnior Aragão/Cena 2013

A obsessão é um traço comum aos grandes artistas. Em Fogo-fátuo, Samir Yazbek confessa a sua. Dono de projeto artístico centrado na condição de dramaturgo, ele lança – em coautoria com Helio Cicero – provocações aos pares do teatro e a todos que gravitam a arte e a cultura nos planos da criação, da produção e da recepção em tempos de hegemonia do entretenimento como fim e meio.

São palavras e ações maceradas na autocrítica e saltadas das vísceras em corajosa exposição de desassossego. Na transposição da inquietude d’alma para a carne cênica, no entanto, os pontos de partida (reler o mito de Fausto à luz e à escuridão das angústias pessoais) e de chegada (contracenar com Cicero sob direção de Antônio Januzelli) não são consistentes e ofuscam os clarões de ideias que pontuam o texto.

Como Marlowe, Goethe, Pessoa e Valéry, todos devidamente citados, Yazbek toma, antropofagicamente, um dos mitos da modernidade de gênese alemã e tornado universal. É ele mesmo, coautor, quem sobe ao palco como escritor queixoso da falta de reconhecimento, da desimportância de sua obra para a sociedade. Ao encontrar-se com Mefisto, vivido por Cicero, justamente no ambiente físico do teatro, é pressionado a pactuar a crise de criador. Até o comprador de almas expõe seu desalento por causa da banalização do mal entre os humanos rivais na degradação.

A releitura é elementar na exposição dos maniqueísmos de lado a lado. Estruturalmente, o texto serve mais ao drama absoluto dissecado, de fundo existencialista, ficando em segundo plano – mas estão lá – as correlações filosóficas, éticas e estéticas.

Os traços hieráticos lançados por Yazbek são autossustentáveis, não faltam exemplos nas peças anteriores. Dessa vez, o alicerce autobiográfico sugere que aportar no mito é desvio e não verticalidade. Esta subjaz no seio dos diálogos meditativos e desestabilizadores quanto ao ofício.

Samir Yazbek espelha inquietações do ofício

Cicero e Yazbek compõem parcerias artísticas há pelo menos 14 anos, seis deles como cofundadores da Companhia Teatral Arnesto nos Convidou, daí as bases autorais e conceituais do trabalho mais recente. Em cena, suas presenças são inconciliáveis. A atuação de Yazbek constrange. É flagrante o despreparo técnico, a voz monocórdica. Ele transmite a sensação de não estar à vontade. Insinua o registro realista quando a estratégia de encenação de Januzelli pende ao performativo.

E aí também há que ser ator. E de recursos. Aos 36 anos de carreira, Cicero esbanja desde a gestualidade das mãos à compenetração do olhar, passando pelo modo cerimonioso de caminhar em seu papel diabólico. Para não dizer da voz que modula e projeta no espaço como bem quer. O distanciamento para com o Mefisto, ao contrário de Yazbek/Fausto, lhe dá mais margem de invenção.

Diretor conhecido pela pesquisa continuada do trabalho de ator, Antônio Januzelli assina uma encenação em que não é reconhecível. O espetáculo não comunica o aspecto ritual que lhe é praxe e Yazbek, inclusive, reclama em extinção no mundo contemporâneo. O círculo que demarca o tablado e alguns poucos objetos ou esculturas místicos, na cenografia de Laura Carone, não significam ou “materializam” o campo do intangível – talvez a única aura, nesse sentido, é a vela permanentemente acesa sobre uma mesa.

Fogo-fátuo acumula mais anacronismos do que o discurso redentor e o chamado à consciência e à autoconsciência. Abre-se à interação direta com o público, estendendo algumas cenas à plateia, mas não o envolve em sua teatralidade contida, a despeito da pertinência das questões que aborda.

>> O jornalista viaja a convite da organização do 14º Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília.

Ficha técnica

Texto: Samir Yazbek

Coautoria: Helio Cicero

Elenco: Helio Cicero e Samir Yazbek

Direção: Antônio Januzelli

Cenário: Laura Carone

Figurino: Telumi Hellen

Trilha sonora original: Marcello Amalfi

Iluminação: Osvaldo Gazotti

Programação visual: Diego Spino/ATCK Agência

Produção: Companhia Teatral Arnesto nos Convidou

 

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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