Reportagem
No festival da crise de representatividade que sacode o país, o que os corações e mentes da construção simbólica têm a dizer, a conectar com os protestos? Ou subverter em termos da própria representação, como o fazem em arte? O segundo ato do encontro Cultura Atravessa projetou polissemia esperançoso de encontrar os grãos de pólen de sua primavera num efetivo despertar de significância desse campo para a sociedade e a cidadania. Um lugar entre o levante e a relevância.
O microfone rodou em mãos e bocas na pista do Teatro Oficina na noite de segunda-feira, 29 de julho. Entre intervenções artísticas e discursos, havia o desejo de descentralizar as vozes em reclamo à de 8 de julho, que fora conduzida mais pelos idealizadores de proa e deu início, no mesmo cenário, à jornada de artistas, estudantes, pensadores, produtores, representantes de associações, entre outros. A produtora Elisete Jeremias estima em cerca de 250 pessoas ocupando partes da passarela e das arquibancadas. Cerca de 100 participantes a menos do que a primeira noite.
Havia também o desejo de politizar os debates, instigar o pensamento crítico. Quem atendeu ao quinhão foi o sociólogo Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP, autor de A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista (Boitempo Editorial, 2012) e um dos autores da coletânea Cidades rebeldes – passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (Boitempo Editorial e Carta Maior), recém-chegada às livras.
Braga chamou a atenção para a “fadiga da hegemonia lulista” recorrendo à definição de Gramsci para a face passiva da massa quando anestesiada, no caso brasileiro, pelo consumo. Ou seja, um consentimento fabricado, como diria o filósofo Paulo Arantes, com grau zero de politização. “Agora, esta hegemonia está sendo desafiada por causa da degradação da vida e do trabalho, conforme as queixas levadas às ruas pela classe média e por parte dos trabalhadores que reivindicam direitos à cidadania. Não à toa, as manifestações começam sempre por volta das 18 horas. São pessoas empregadas, mas que não aguentam mais as péssimas condições”, diz o sociólogo.
Ele apresentou dados de uma enquete da empresa Plus Marketing, realizada no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte, que apurou que 70% dos manifestantes que foram às ruas daquelas cidades, no dia 20 de junho, mantinham vínculos empregatícios. E, como os protestantes Brasil afora, padecem, sobretudo, do transporte de ida e volta ao trabalho e do atendimento na rede pública de saúde. Estado de coisas corroborado por corruptos e corruptores. Daí a “movimentação das placas tectônicas da política brasileira”, segundo ele.
A atriz Ana Petta, uma das articuladoras da Cultura Atravessa, defende a vigília e o espírito crítico. “Os reacionários saíram do armário. A onda reacionária vem com muita força. Nós, artistas, temos que entender o papel da liberdade de ocupar o espaço público e do espaço simbólico”, diz. Uma premissa revolucionária, defende, está na decretação de políticas públicas conjuntas nas instâncias da educação e da cultura, e nos níveis municipal, estadual e federal. “Encarar financiamento à cultura livre da mercadoria.”
Como exemplo de iniciativa interministerial, a diretora de educação e comunicação para a cultura da Secretaria de Políticas Culturais do Ministério da Cultura (MinC), Juana Nunes, destrinchou o Mais Cultura nas Escolas. O programa desenvolvido em parceria com o Ministério da Educação (MEC) fomenta ações que promovam o encontro entre experiências culturais e artísticas em curso na comunidade e o projeto pedagógico de ensinos fundamental e médio, sejam em escolas municipais, estaduais ou do Distrito Federal já ativas nos programas Mais Educação e Ensino Médio Inovador.
Já que a educação foi uma das pautas das jornadas de junho, Juana crê em política cultural como estratégia fundamental para ampliar a qualidade da escola. Comprometer o movimento cultural, segundo a diretora do MinC, é ampliar o repertório da estudantada, dos professores, dos pais. Num arco musical, isso pode significar perpassar o funk, o frevo e a música erudita, derrubar preconceitos. Com inscrições abertas até o próximo 10 de agosto, o Mais Cultura nas Escolas estima abarcar 5.000 estabelecimentos com recursos de cerca de R$ 100 milhões.
A tentativa de juntar forças e partir para a ação – e menos discurso – quanto às pautas difusas brandidas nas ruas ecoa, por exemplo, no surgimento recente da Recusa – Rede Cultural de Solidariedade Autônoma. Um dos seus representantes, o ator, diretor e dramaturgo Rafael Prestos, reclamou dos “assuntos abstratos” ante as atitudes concretas que já estariam acontecendo sob o protagonismo dos movimentos sociais da periferia.
O ator da Recusa pediu licença para ler a carta de apresentação que diz que a rede “surge com a necessidade de nos articularmos na disputa dos espaços de nossa cidade, sejam eles espaços geográficos ou espaços das idéias”. Seu lançamento aconteceu na noite de 5 de agosto, no Sindicato dos Servidores e Trabalhadores Públicos em Saúde, Previdência e Assistência Social do Estado, o Sinsprev, no centro paulistano.
De fato, a presumida falta de objetividade nas deliberações para os próximos passos impacientou parte da audiência. O ator Ney Piacentini, diretor da representação brasileira do International Theatre Institute (ITI), ligado à Unesco, faz às vezes de mestre de cerimônias e lembra que, se o Cultura Atravessa ainda não crava rumos concretos, é porque os diferentes participantes e a multiplicidade de áreas assim determina o seu ritmo. Raciocina que ninguém está ali para ouvir “verdades” ou “respostas”, mas, quem sabe, expor perplexidades que são coletivas. “O Cultura Atravessa pode até acabar hoje”, chega a aventar Piacentini.
O conflito ganha contornos dramáticos nas intervenções do ex-presidente da Cooperativa Paulista de Teatro, integrante da Companhia do Latão. Conhecido pelos rompantes públicos e pela transparência na convicção de seus pontos de vista, Piacentini, ainda que diga o contrário, é a liderança do encontro, liame entre agitador e negociador.
À insinuação de impasse paralisante e inação do barco, ele agarra com firmeza o leme-microfone. “Temos que botar os bofes para fora”, diz. Já que é para radicalizar, recorda que grupos teatrais invadiram a sede paulista da Fundação Nacional de Artes, a Funarte, braço cênico do MinC, em pelo menos duas ocasiões, em 2009 e 2011, sendo a última uma ocupação diuturna do prédio. “Quando os soldados [do exército] foram botar fogo na UNE [na madrugada de 1º de abril de 1964, na Praia do Flamengo, no Rio], o João das Neves, o Vianinha e outros [membros do Centro Popular de Cultura, o CPC da UNE] estavam lá dentro”, argumenta. “Eu adoro botar para quebrar. Vamos fazer greve de fome no MinC?”, provoca.
A nova geração da União Nacional dos Estudantes, entidade que faz 76 anos em 11 de agosto, é representada pela amazonense Maria Neves, sua diretora de cultura. Ela assinala votos pela reforma dos meios de comunicação e pela PEC 150, a proposta de emenda constitucional que escala porcentagens de 1% a 2% da receita de impostos para investir no setor em níveis da cidade, da união e do Distrito Federal, como será detalhado mais adiante.
Pede a palavra o ator Renato Borghi. Em vez de soltar os bofes, ele prefere seduzir. “A gente tem talento para a sedução”, diz o diretor e ator do Teatro Promíscuo, cofundador do Oficina em 1958, ao lado de José Celso Martinez Corrêa e Amir Haddad. Os dias que correm o levam a rememorar a opacidade disseminada na sociedade brasileira após o golpe militar de 1964. O clima que levou Zé Celso e seus pares a montar “Andorra”, de Max Frisch, em outubro daquele ano.
Era, diz Borghi, a forma que o teatro encontrava para trazer seu protesto à luz. “Temos que entender qual a missão do artista. E cumpri-la ou traí-la. Vamos nos unir, acabar com essa coisa fracionada. Qual o nosso papel? Fazer a cultura ser primordial para o governo. É isso ou o fracasso”, afirma. “Aconteceu no Brasil o que vem acontecendo no mundo. O MinC é um zero, não há dotação. A gente é obrigado a abrir as pernas. O mercado visa a infantilização, principalmente dos jovens. E não a cultura, porque isso significa cidadania, consciência crítica.”
De volta a Piacentini, ele resvala no seu estado de saúde, o tratamento de um câncer de pele (melanoma) diagnosticado em outubro passado, e na militância para que o Cultura Atravessa diga a que veio – o impulso de origem é alinhar-se, não se sabe como ou de que forma, às forças progressitas das ruas, como o MPL e a democratização da mídia.
O ator teria gasto do próprio bolso cerca de R$ 10 mil para organizar as duas edições do encontro. Custos com a infra-estrutura mínima, de marketing do Facebook a passagens áreas de apoiadores vindos de outros Estados. Diz que, como artista (está em temporada no Rio com O patrão cordial, no CCBB), é remunerado por meio de editais públicos e, portanto, “temos que devolver esses recursos de alguma forma”.
Piacentini põe a boca no trombone de vez, expõe sua indignação com o que entende por cooptação do Ministério da Cultura em relação a entidades orientadas pela onipotência do mercado. Vê o ápice dessa distorção na realização do II Seminário #Procultura, organizado pelo Centro de Estudos de Mídia, Entretenimento e Cultura (Cemec), que também se autodefine como uma rede dedicada à produção de conteúdo, desenvolvimento de negócios e prestação de serviços especializados para o mercado cultural e as indústrias criativas, tendo como plataformas o portal Cultura e Mercado e o escritório Cesnik Quintino e Salinas Advogados, com prestígio na área do entretenimento (propriedade intelectual, incentivos fiscais, etc.). O evento está previsto para manhã e tarde de 17 de agosto, no Novotel Jaraguá, região central de São Paulo.
O programa anunciava, àquela altura, a ministra Marta Suplicy para a abertura, com a fala “Financiamento à cultura no Brasil: o futuro da relação entre Estado, mercado e produção cultural”. E delegava o encerramento ao secretário de Fomento e Incentivo à Cultura, Henilton Menezes, que palestra sobre “Lei Rouanet versus Procultura: os aperfeiçoamentos da Lei Rouanet à luz do Procultura”. Agora, Suplicy é substituída pelo deputado federal Pedro Eugênio (PT-PE), relator do Programa de Fomento e Incentivo à Cultura, o Procultura projeto de lei 6.722, de 2010, do poder executivo, que substitui a Lei Rouanet. O novo marco regulatório tramita na comissão de finanças e tributação da Câmara dos Deputados. Se aprovado nas comissões sem parecer divergente, não precisa ser votado em plenário e seguirá direto para a apreciação do Senado Federal.
Militante do movimento de teatro de grupo na cidade, o ator Osvaldo Pinheiro pede espaço para declarar sua indignação diante de gestores públicos que se prontificam a discutir o financiamento exatamente público da cultura em evento privado que cobra “investimento” de R$ 280 ou R$ 350 aos que estão interessados em ouvi-los.
Pinheiro lembra que a primeira edição do seminário, em 19 de maio de 2012, foi no mesmo formato e incluía um “coffee break” a que uma intervenção teatral se contrapôs com um Café de Rua que fez muito barulho. O ator exorta os ouvintes a marcar presença novamente. “Desta vez, o que fazer? Quando pularemos a catraca da privataria cultural deste país? O MPL já deu seu primeiro passo. Qual será o nosso próximo?”, despacha em mensagem pela internet.
Piacentini pontua que, além do que fazer, é preciso reforçar o pensamento crítico. Autocrítica. Afirma que uma das queixas comuns dos movimentos sociais ou políticos é o reducionismo monetário das proposições, o bolso, em detrimento de uma visão de mundo mais aguçada e sistêmica. “Lá vem o pessoal da cultura pedir um dinheirinho”, diz o ator, em tom de resmungo.
Em seus momentos de respiro, o segundo ato do Cultura Atravessa abriu-se à arte e à reflexão com Caco Galhardo pintando um painel na pista onde algumas crianças já desenhavam e brincavam alheias às colocações passionais ou ponderadas.
Uma imagem que também embute respostas para muito dos questionamentos foi concebida pela artista plástica e educadora Edith Derdyk, autora de O que fica do que escapa. No vídeo projetado em tela, uma folha de papel em branco ilustra potência e impotência. Cabe a cada um dos interlocutores preencher, criar. Ela menciona o alemão Joseph Beuys, para quem qualquer pessoa pode ser artista. Sem ser tabula rasa, com o coeficiente de arte mínimo de que falava o francês Duchamp.
Os músicos e artistas integrantes do bloco de samba de rua Agora vai…cometeu marchinhas à esquerda e à direita. A certa altura, um deles foi lapidar: “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, mas se juntar a coisa anda”. A DJ Evelyn Cristina fez incursões discretas, uma DJ que escuta a voz do outro. O cantor e compositor Celso Sim, sentindo-se à vontade em casa, o Oficina em que atua de quando em quando, entoa a canção de
Jorge Mautner e José Miguel Wisnik que incita desde o título, A liberdade é a consciência dos limites. E o verso derradeiro não deixa por menos: “O resto é desconcentração de renda”.
Algumas ausências foram bastante sentidas. Maria Rita Kehl teria ligado no meio da tarde cancelando participação por causa dos trabalhos da Comissão da Verdade. Ela prospectaria um dos motes da noite que gerou mais expectativa: a influência da TV na vida dos brasileiros. Mas o assunto da democratização da mídia quase não foi tocado. A desmilitarização da Polícia Militar nos Estados, tampouco.
O anfitrião Zé Celso, também um dos propulsores do Cultura Atravessa, não pôde comparecer ao terreiro, comprometido com apresentações de pré-estreia do novo espetáculo, Cacilda!!!, pelo interior paulista, com o Teatro Oficina Uzyna Uzona.
Uma das colaborações mais incisivas vem por meio do sociólogo Marcos Kaloy, precursor do Festival Internacional de Teatro de Campinas (1990) e um dos atores idealizadores da montagem de Feliz ano velho (1983), texto de Marcelo Rubens Paiva, com o Pessoal do Vitor, grupo que praticamente implantou o departamento de artes cênicas da Unicamp, sob direção de Celso Nunes. Kaloy surpreende os organizadores ao vir de Monte Alegre do sul, na região de Campinas, para pespegar: “É uma vergonha para a categoria artística que haja apenas cerca de 500 assinaturas para a PEC 150”, desabafa. A proposta de emenda constitucional, de 2003, é de autoria do deputado federal Paulo Rocha (PT-PA). Não há um teto, mas uma petição com seu milhão de assinaturas exerceria pressão à altura da causa.
O artigo 216º em análise está redigido assim: “A União aplicará anualmente nunca menos de dois por cento, os Estados e o Distrito Federal, um e meio por cento, e os Municípios, um por cento, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na preservação do patrimônio cultural brasileiro e na produção e difusão da cultura nacional.” Para Kaloy, eis o começo de conversa, suprapartidária e, vingando, capaz de tocar o mais bruto dos prefeitos.
Um terceiro ato do Cultura Atravessa está previsto para o dia 7 de setembro, às 20h, no mesmo Teatro Oficina do bairro do Bixiga, com perspectivas de reunir o cineasta argentino Fernando “Pino” Solanas e Maria Rita Kehl, entre outros pensadores e manifestantes. Independência ou morte? Sina.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.