Entrevista
23.9.2013 | por Maria Eugênia de Menezes
Foto de capa: Klaus Lefevre
Um especialista em criar polêmicas. O diretor italiano Romeo Castellucci costuma deixar um rastro de reações passionais por onde passa. Desde 1980, ele choca o mundo com suas peças. Foi assim em sua adaptação de Júlio Cesar, quando trouxe para representar o papel de Marco Antonio um ator com câncer e uma evidente traqueostomia. Manteve-se assim em Tragedia endogonidia – espetáculo que trazia um homem a cortar a própria língua para alimentar uma ninhada de gatos.
Quem assistiu ao seu recente trabalho, que participou do festival Porto Alegre em Cena, entenderá por que ele cativou a fama de “enfant terrible” do teatro europeu. Depois de flertar com o sadomasoquismo, a tortura e a doença, agora reúne, no mesmo palco, excrementos e a imagem de Jesus Cristo.
Como era de se esperar, as reações a Sobre o conceito da face no filho de Deus foram mais do que exacerbadas. Católicos de todo mundo não tardaram a indignar-se. Na Itália, a criação foi tachada de blasfêmia. Na França, o Theatre de la Ville, onde a peça estava em cartaz, foi cercado por manifestantes que atiravam ovos e óleo. A polícia teve que intervir para que as apresentações acontecessem.
Jesus e o modelo de beleza ocidental
O cheiro no ar anuncia que há algo de estranho no espetáculo da Socìetas Raffaello Sanzio. Defrontado com um idoso, seminu, que padece de algum tipo de incontinência intestinal, o público poderá questionar-se sobre qual o verdadeiro propósito do diretor.
Em algumas publicações estrangeiras, artigos tentaram explicar a natureza sintética dos excrementos usados em cena. Em outros títulos, foram os protestos de religiosos que ficaram sob os holofotes. Mas, para o encenador italiano, nada disso parece ser importante. “É uma reflexão sobre o ocaso da beleza”, definiu ele.
O que está sob escrutínio, na montagem que passou por Porto Alegre, é a relação de um homem com seu pai senil. Alguém que não mais controla suas ações, pensamentos. Nem suas funções vitais mais elementares. Grande parte dos espectadores não consegue entender a relação que o encenador estabelece entre esse drama familiar e a imagem de Jesus Cristo, emoldurada sobre o palco. “Compreendo que as pessoas encarem como uma provocação. Mas essa é uma palavra que, definitivamente, não faz parte do meu vocabulário”, argumenta ele. “Os temas com os quais o espetáculo trabalha despertam reações diferentes nas pessoas, algumas exacerbadas. Mas não é esse o meu objetivo.”
Justificativas estéticas e históricas embasam a “heresia” cometida pelo artista. “Em toda a pintura da Renascença, Jesus é o modelo de homem. Então, ele não está ali evocando algo de espiritual, mas representando essa ideia de beleza humana”, considera.
Se no plano horizontal acompanha-se uma história de degeneração, a imagem de Cristo na vertical, a representar esse ideal de beleza absoluta, vem para provocar um ruído. “Para os cristãos, e não apenas para os católicos, a imagem de Jesus suscita a ideia de beleza, mas de uma beleza, digamos, complicada. É uma beleza que traz, em si, a memória do sofrimento, da paixão. Que nos lembra da cruz como instrumento de tortura”, diz o diretor.
Outros simbolismos também cercam a polêmica menção à divindade. “O tema do sacrifício do filho está em diversas passagens da Bíblia. O quase sacrifício de Isaac por Abraão é um exemplo eloquente”, lembra Castellucci.
Em 30 anos de atividade, o encenador tornou-se conhecido como representante do Teatro da Crueldade – uma modalidade que prima pelo fim da divisão entre palco e plateia, privilegia o aspecto ritualístico das apresentações e, sobretudo, lança-se à contestação dos dogmas sobre os quais repousa a cultura ocidental.
Ao tratar dos laços entre pai e filho, a cia. observa a relação que é o pilar da sociedade. “É algo absolutamente prosaico, com o qual qualquer um pode se identificar”, justifica o diretor.
Apesar da veracidade que deixa transparecer em cena, ele garante não ter se inspirado em nenhum episódio biográfico. “Não tem relação direta com a minha experiência. Meu pai morreu quando eu ainda era muito jovem, de um ataque cardíaco. O que é uma pena, porque gostaria de ter cuidado da fraqueza de meu pai, ainda que isso possa ser desagradável.”
Dissolução da beleza, da integridade física, da consciência. O espetáculo flagra algum lugar onde vida e morte coexistem. Um espaço em que o tempo se torna visível, material.
Além do pai senil e do filho adulto, também um grupo de crianças sobe à cena. “São as três etapas do homem”, pontua o criador. “E tudo se passa como em um plano sequência no cinema. Não há cortes, não há montagem. O que quero oferecer ao espectador é a experiência de vivenciar a passagem do tempo.”
Publicado originalmente em O Estado de S.Paulo, 19/9/2013
Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.