Menu

Reportagem

Mnouchkine converte esperança em ato político

5.11.2013  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Michèle Laurent

A liberdade como base. A igualdade como meio. A fraternidade como objetivo. Para a diretora Ariane Mnouchkine, à luz do século 21, o ideal seria substituir a terceira perna por “humanidade” no lema da República Francesa sobrevindo da revolução de 1789 e tornado patrimônio nacional, quiçá, universal. O pensamento humanista permeia a prática e a atitude da mítica companhia que ela ajudou a criar há quase 50 anos, o Théâtre du Soleil. A efeméride será em maio próximo, mas a exibição esta semana, em São Paulo, do filme em que a diretora transpõe seu espetáculo mais recente para a tela sintetiza exemplarmente os faróis ideológicos e poéticos que a orientam em 74 anos de vida.

O épico Os náufragos da louca esperança toma como inspiração o manuscrito Les naufragés du Jonathan, que Júlio Verne (1828-1905), mestre da ficção científica, escreveu em 1897 e só veio a lume postumamente. O livro narra as desventuras de um sujeito proscrito que abandona o mundo dito civilizado e habita uma ilha por convicção anarquista de liberdade individual. Até que o encalhe do navio americano Jonathan desembarca o caos e a confusão de gente com quem é obrigado a conviver e, a contragosto, organizar a vida social, em vão, enfrentando fome e disputa por ouro. O roteiro ampliado deste mote decorre da criação coletiva do grupo sob dramaturgia consolidada por Hélène Cixous e na qual se lê, entre parênteses, o subtítulo Auroras.

De fato, o princípio plural da claridade move os sonhos e os ideais de homens e mulheres reunidos fraternalmente em torno de uma “guinguette”, um reduto de diversão e bebida típico dos subúrbios parisienses no início do século 20. No sótão desse Fol espoir, ou louca esperança, eles ousam se apropriar belamente do cinematógrafo, o invento dos Lumière ainda rústico diante das possibilidades de produzir a ilusão de cenas em movimento.

Com o apoio do dono do cabaré artístico, como se dizia, a imaginação fértil de dois irmãos que estão por trás da câmara, acionada a manivela, e a disponibilidade incondicional dos amadores de primeira viagem, esses cidadãos decidem, em pleno ano de 1914, iminência da Segunda Guerra Mundial, rodar o romance de Verne. Contextualizam a aventura em que emigrantes singram os mares entre Reino Unido e Austrália mas a embarcação afunda na região da Patagônia. O estabelecimento é transformado numa espécie de Cinecitá de dar orgulho a Fellini e circunscreve a utopia pela busca de um reino socialista.

Se o enredo da peça de 2010 já saudava o cinema dentro do teatro, o filme amplia a metalinguagem ao colocar a sétima arte literalmente como eixo estruturante. “Uma das principais dificuldades em fazer cinema é saber onde colocar a câmara”, afirma Ariane Mnouchkine, após a exibição da obra na Mostra Internacional de Cinema, na noite de segunda-feira [28/10].

Mnouchkine, convicção pelo teatro popular desde 1968

Nas páginas de Ariane Mnouchkine – Introdução, escolha e apresentação dos textos por Béatrice Picon-Vallin (editora riocorrente, 2011), a diretora explica como se convenceu do registro audiovisual de uma peça, superando resistência a capitular. Foi quando, certa vez, assistiu a cerca de dois minutos de Revizor, a montagem teatral do russo Vsevolod Meyerhold (1874-1940) realizada em 1926, em Moscou, para um dos clássicos do compatriota Nikolai Gogol (1809-1852), O inspetor geral.

Mnouchkine descreve o momento no qual Khlestakov, funcionário público que torra seu dinheiro na jogatina e é pinçado como fiscal da moralidade pelos corruptos e corruptores de plantão, todos com pulga atrás da orelha, flerta com a mulher do governador. Nessa cena, o ator pega por duas vezes o dedinho da atriz com uma colherinha, leva-o aos lábios e o beija. “Quando vi esse trecho, pensei comigo que era preciso, afinal de contas, deixar registros para que se possa ver a ‘linhagem’ do teatro”, afirma.

Na manhã da projeção de estreia da película no CineSesc, em entrevista num hotel da região da Avenida Paulista, Mnouchkine sustenta a esperança como ato político. “Não podemos fazer política se não tivermos esperança. Não podemos abandoná-la”, diz, dando a entender porque, na migração do tablado para a película, introduziu o ponto de vista de três crianças que leem a história contada. Nas temporadas e turnês de Os náufragos da louca esperança, incluindo apresentações em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre em 2011, ouviu questionamentos quanto ao lugar da esperança nos dias atuais.

Uma das crianças que lê a narrativa audiovisual

“Lembro-me de Raymond Aubrac, que foi um grande resistente durante a Segunda Guerra Mundial [contra a ocupação nazista alemã, morto em 2012, aos 97 anos]. Certa vez, um jornalista perguntou a ele sobre o que é e o que foi feito da resistência. E ele respondeu: ‘A resistência é o otimismo’. Quando o nazismo dominou a Europa e marcou profundamente o século 20  [ideologia nacional-socialista derivada do fascismo, num arco que vai da década de 1920 à de 1940], naquela época o otimismo era resistir a esse regime. Se num período tão terrível existiam pessoas que pensavam em vencer o nazismo, então, em 2013, nós temos o direito de pensar que podemos vencer os problemas que aí estão.”

Há uma passagem no filme em que o cineasta, banqueiro e industrial Jean LaPalette faz um discurso emocionante a respeito do socialismo, do espírito de cooperação e da fraternidade. Rumina sobre o futuro da França. “Eis um personagem absolutamente indispensável ao nosso presente. Fico surpresa em ouvir com frequência esse tipo de questão: ‘Como ter esperança numa época como a nossa?’. É como se tivéssemos que abandoná-la. Como se a esperança não fosse um sujeito importante.”

Mirada socialista em tempos em que o Partido Socialista está no poder com o presidente François Hollande. Não há nada de paradoxal nisso, diz a diretora. “Primeiro, precisamos saber se esse presidente é de fato socialista [risos]. Muita gente está começando a se perguntar quanto a essa perspectiva ideológica.”

O longa-metragem foi coproduzido por Bel Air Media, Arte France, France Télévisions, Sesc São Paulo e Tele München. A iniciativa prevê lançamento, no semestre que vem, do DVD triplo com cerca de quatro horas e meia de material extra (o filme dura 187 minutos).

Para o cinquentenário do Théâtre du Soleil, a diretora deseja estrear duas peças, dobradinha rara diante do intervalo habitual de três a quatro anos entre as produções. Adianta apenas que virão um Shakespeare e um texto inédito, ambos fruto de criação coletiva.

Ela admite pouca inclinação às efemérides, mas é inevitável colocar o cinquentenário em pauta. Entende que dificilmente um coletivo teatral, mesmo europeu, alcança meio século de existência. “Na França, não existem outras companhias com essa longevidade, fora a Comédie-Française [criada por Luís XIV há 333 anos].” Cita o grupo coirmão Odin Teatret, da Dinamarca, que também completa 50 anos em 2014.

Mítica sede do grupo, Cartoucherie é ocupada em 1970

Entre as características da origem do Soleil em 1964, nos moldes utópicos de uma sociedade cooperativa operária de produção, a diretora acredita que permanecem intocáveis a estrutura básica na igualdade de salários entre os integrantes do grupo e a divisão coletiva do trabalho.

Outro aspecto essencial, diz, é a determinação de um teatro popular “elitista”, conforme acepção sonhada por Antoine Vitez (1930-1990), e Jean Vilar (1912-1971), encenadores compatriotas pelos quais tem apreço. “Defino o popular como aquilo que pode nutrir um grande professor, um jovem iniciante, um religioso, uma pessoa que está à beira da morte, enfim, o conteúdo e a forma de uma obra em que todas as pessoas encontrem forças”, pondera.

Para o espectador brasileiro que assiste no país às obras do Théâtre du Soleil desde a vinda de Os efêmeros, em 2007, a distinção nos modos de acolher o público e de construir o espaço cênico para comungar seis, sete horas de arte, intercaladas por refeição, reflete a importância da cultura para o Estado francês que a subsidia. No momento, Mnouchkine não vê riscos desse sistema recuar, a despeito da crise financeira que assombra o continente. “A sobrevivência é sempre uma batalha. O Estado que não compreende a arte e a cultura como essenciais à sociedade, tal qual os serviços de hospital, escola e transporte, enfim, é um Estado terrível”, afirma. “Aos artistas da Europa, acho importante termos consciência dos direitos e dos deveres. Que a gente não sucumba ao corporativismo. Como cidadãos, não podemos ter uma legislatura de privilégios.”

>> Três vídeos curtos em que os criadores do Théâtre du Soleil correlacionam a peça, o filme e o pensamento artístico do grupo.

Versão ampliada de texto publicado originalmente no jornal Valor Econômico, 1°/11/2013, caderno Eu & Fim de Semana, p. 21.

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

Relacionados

‘De mãos dadas com minha irmã’, direção de Aysha Nascimento e direção artística e dramaturgia de Lucelia Sergio [em cena, Lucelia Sergio ao lado de dançarinas Jazu Weda e Brenda Regio]