Crítica
10.12.2013 | por Valmir Santos
Foto de capa: David Cadeira
Misturas factuais e ficcionais embasam algumas das experiências mais inquietantes da cena contemporânea. Um teatro do ‘eu’ vem a público para estilhaçar o cada um por si e suscitar individuações. O recém-criado Coletivo Casulo, com egressos da graduação de artes cênicas do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará, o IFCE, recolhe feridas e cicatrizes biográficas para convertê-las em arte. Nada de novo nesse procedimento, mas como não atirar-se ao divã em público? Achados & perdidos escolhe a performance e a instalação como suportes de um inventário afetivo.
Colaboradores em outros núcleos da cidade, Andrei Bessa (propositor), Danilo Castro, Edivaldo Batista e Keka Abrantes (atuadores) puxam suas memórias reinventadas por meio de objetos alinhados no chão, um bricabraque. Fazem do espaço cênico os cômodos e o quintal da casa imaginária em que o espectador é convidado a pisar e ocupar em colchonetes ou em plateia bifrontal.
Na paisagem, tonalidades multicoloridas para lembranças desbotadas como as fotos nas paredes.
Transcorrem cenas e ações desconexas em que o trio sempre finca a bandeira da presença, seu fio de Ariadne, desviando da representação propriamente dita. Joga-se com os figurinos, a movimentação coreográfica, a interação direta com o público, as projeções, as sombras, a música incidental e demais recursos, muitas vezes combinados, que sugerem atmosferas a cada narrativa.
Identificamos temas hegemônicos como perda, abandono e desilusão. Estas desde a infância, como o menino que sonha ser a santa devotada por unanimidade e a adolescente que aguenta a amolação dos colegas em torno de seu nome raro de batismo. Constam ainda temas aflitivos que envolvem gente grande, como o abuso sexual e o suicídio em família.
A dramaturgia funciona como uma sucessão de quadros que envolvem tanto o peso da palavra como alusões sensoriais. Sentado no chão, parte do público pode tocar as antiguidades ordenadas nas bordas do corredor cênico. O arranjo meticuloso dos brinquedos, documentos e imagens religiosas, cenário que depois é sacudido, contrasta a costura solta das histórias curtas. Por vezes a transição entre uma e outra é abrupta, ao contrário do fluxo suave das plasticidades e sonoridades mesmo quando os conteúdos são mais densos.
Independente dos desníveis do texto, é na dramaturgia física, o estado de improviso que o Casulo transforma sua criação num achado. O trio passa o tempo todo em cena, pactuando a relação de confiança do olhar, do gesto e do compromisso com o destino que os uniu.
A partilha das intimidades embaralhadas não resvala em psicologismos. O clássico apego/desapego de um cão, por exemplo, encontra uma tradução lapidar no revezamento das partituras, sonidos e travessuras do animal que causa um pequeno terremoto na arena. As figuras do pet e de seu dono triangulam pelos corpos e vozes com a convicção da teatralidade nos mínimos detalhes. Nesse ponto, Edivaldo Batista, a quem assistimos nas produções recentes do Teatro Máquina, aporta com técnica e poética singulares.
Nesse que é possivelmente seu primeiro trabalho, o coletivo convence pela personalidade e ousadia ao optar por formas e espaços não convencionais. Reflete maturidade ao evocar seus fantasmas e elaborá-los com convicção artística. A sessão a que assistimos foi tomada por emoção adicional porque um dos criadores, Castro, parte para temporada de estudos em outra capital e seus pares enfrentam mais um corte umbilical. Autoficção na veia.
O empilhamento de objetos, adereços e parte da cenografia ao final concretiza o que o ser humano enfrenta a cada ciclo. É dessa pirâmide de coisas que Achados & perdidos é feito e refeito por aqueles que estão dispostos a arregaçar as mangas no eterno retorno.
>> O jornalista viajou a convite da organização do 9º Festival de Teatro de Fortaleza.
Blog sobre a pesquisa de Achados & perdidos.
Teaser do espetáculo:
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.