Artigo
23.1.2014 | por Valmir Santos
Foto de capa: Tetembua Dandara
O texto a seguir foi publicado originalmente na revista eletrônica Questão de Crítica, sob o título Instabilidades na recepção crítica ao teatro de pesquisa. E consolidado a partir da palestra de abertura do 2º Encontro Questão de Crítica ocorrido no Rio de Janeiro em março de 2013. A imagem que o ilustra é uma cena da obra Origem destino (2013), da Companhia Auto-Retrato, que propõe ficção em deslocamento pela cidade de São Paulo entre a Praça da Sé, no centro, e o bairro de Santo Amaro, na zona sul.
Correlacionamos aspectos pontuais da historiografia da crítica teatral para perceber a atividade aos olhos da cena contemporânea irradiada da cidade de São Paulo, onde atuamos no jornalismo cultural. Gradações humanistas, políticas e sociais refletidas agudamente na produção do período da ditadura militar ganham tonalidades outras, e não menos contundentes, sob a paleta do teatro de pesquisa e a voga dos grupos. Conjunções artístico-ideológicas demandam ao profissional ou ao militante da crítica sintonizar também porosidades para além das linguagens e estéticas. Tocar o fio de alta tensão condutor de arte e cidadania. Localizar no radar a demagogia e a incisão.
Guinsburg e Patriota anotam que as temporadas de meados dos anos de 1960 em diante tornaram evidentes o fortalecimento de vínculo entre arte e política, o engajamento em causas populares e a recusa da chamada concepção burguesa. Tudo em defesa de obras que transcendessem as salas de apresentação. Esse processo precipitou novamente a valorização do texto com eixos históricos e sociais. Fruto das sementes da politização pré-ditadura espalhadas pelos Seminários de Dramaturgia do Teatro de Arena, a partir de 1958, e dos Centros Populares de Cultura, os CPCs da União Nacional dos Estudantes, a UNE, despontados poucos meses depois.
A transmutação do nacional em nacionalismo crítico tem a ver com a “ideia norteadora de reflexões críticas das condições de vida e de luta da população, em diálogo direto com o marxismo e, sobretudo, com o materialismo histórico em sua vertente soviética”[1].
O nacionalismo crítico invocado em palcos e ruas de capitais ou do interior do país não vinha atrelado ao conceito de nação, mas às discussões de classe que permitiam uma visão específica do presente. Vários artistas interpretavam tal conjuntura como revolucionária. Para ilustrar as inquietações em curso, o jovem Paulo Francis, então jornalista e crítico a anos-luz do colunista iconoclasta, entendia os espetáculos como “atos culturais”[2], a despeito do anseio de sua geração por um teatro comprometido com a realidade.
Num salto para os anos 2000, ecos daquele nacionalismo crítico perpassam a dramaturgia, a cena e a interpretação numa espécie de “municipalismo crítico”. A analogia propõe a cidade como território das formas e conteúdos de parte expressiva da produção paulistana. A realidade local é capturada e elaborada em angulações globais. Tenta-se evitar resquícios paroquiais da mesma maneira que o nacionalismo crítico desprendia-se do conceito de nação. No municipalismo crítico considerado, as revoluções são da escala das poéticas. A cidade vira laboratório social, histórico e estético para os impasses do viver junto. Em alguma medida, essa tendência é verificada em outras regiões do Estado e do país.
Dessa perspectiva, uma ação desastrada por autoridades civis e militares na reintegração de posse nos quarteirões da cracolândia, na capital, ou no assentamento Pinheirinho, em São José dos Campos, não concernem apenas aos anais da sociologia ou à crônica policial no uso descontrolado de força contra cidadãos. Ao contrário, os fragmentos do real nos episódios impregnam o texto de uma peça, um quadro, um poema ou uma canção, não importa o suporte.
Os reflexos mais efetivos na parabólica das narrativas urbanas vigem na cidade de São Paulo desde 2002 com a implantação do Programa Municipal de Fomento ao Teatro. A lei incide ativamente sobre o teatro de pesquisa, os núcleos com trabalho continuado, muitos deles mediadores do acesso mínimo das respectivas comunidades ao universo das artes cênicas.
Sabemos da excepcionalidade da Lei de Fomento pelos preâmbulos de luta de artistas e pensadores do Movimento Arte contra a Barbárie, inconformados com a mercantilização da arte e da cultura na virada de milênio. As primeiras reuniões foram realizadas nas sedes de alguns grupos, em 1999. Logo evoluíram para a tomada de consciência da importância do teatro para a sociedade. Do papel do Estado para com a cultura. Avançando determinadamente à elaboração do projeto de lei, dos procedimentos em gabinete de vereador e consequente ocupação de votações na Câmara Municipal, culminando em aprovação às vésperas do Natal de 2001.
Hoje, a dotação orçamentária da Prefeitura, por meio da Secretaria Municipal de Cultura, equivale a cerca de R$ 14 milhões por ano, repartidos por até 30 coletivos[3]. Rubrica blindada dos governos de turno, porque lei. Programa e valor extraordinários, nos dois sentidos, diante dos subsídios minguados e descontinuados das municipalidades brasileiras, seus congêneres estaduais e, claro, federal. Montante, por outro lado, aquém da profusão de agrupamentos e demandas gerados em função da “cultura da lei” que qualifica o entendimento sobre ela e ambiciona abrangência e fôlego à altura da megalópole.
A Lei de Fomento foi pensada e executada com parâmetros europeus de entendimento da cultura como dever de Estado, uma premissa constitucional raramente aplicada entre nós. Estado de bem-estar social que em países desenvolvidos daquele continente, para citar exemplo de dignidade, considera as entressafras de um ator ou de uma atriz subvencionando-os por semanas ou meses à maneira de seguro-desemprego, intercalando o encerramento da temporada e a abertura da seguinte.
Mas as inferências nos campos da pedagogia (projetos contemplados embutem devolutivas formativas ou especializadas) e do fenômeno artístico (desnecessidade do processo criativo resultar em produto dito acabado, margem para ousadia) promoveram transformações efetivas nos quase 12 anos de programa computados até aqui.
No quesito das proposições formais que dizem respeito à práxis crítica a penetração no espaço público e a escolha de temas entranhados no cotidiano das bordas e do centro da cidade denotam a pujança de atos artísticos oriundos de atos culturais. É flagrante o avanço da arte do teatro para regiões carentes de equipamentos culturais. As criações brotam cada vez mais fora dos edifícios convencionais ou galpões adaptados e vão ao ar livre, deslocamento investido de atitude política e estética. As encenações ou intervenções chamam para esse lugar específico seus moradores ou os que ali estão reelaborando memórias pessoais, coletivas e espaciais.
Estimulado a desempenhar um trabalho de campo distinto do circuito tradicional e confortável ao qual estava habituado, o crítico amplia o horizonte do mapa que até então assimilara e é incitado a explorar outros territórios e territorialidades com a disposição, se assim se permitir, de quem depara com as inovações e estranhamentos que o mundo das artes crava frequentemente em seu caminho.
A geografia da periferia paulistana pressupõe rumar para os extremos das zonas leste ou sul, dos quais não se volta indiferente pelas verticalizações e inventividades protagonizadas, não raras vezes, por estudantes ou trabalhadores amadores embarcados em projetos semiprofissionais catalisados por grupos. Estes se apropriam culturalmente de espaços abandonados que viram centros culturais sem a pompa institucional. A população do entorno é introduzida ao universo dessa arte. Desconstrói o estereotipo de classe que identifica o teatro como programa de gente rica. Que tem que se vestir bem para fazer parte da plateia.
Depreende-se daí espírito mais afeito ao discernimento e menos dogmatismo no exercício da análise do espetáculo. Afinal, qual o lugar do crítico quando instigado a compartilhar o ambiente de fruição sem a proteção do palco italiano, vendo-se observado com a mesma lupa com que observa o outro?
Temos nos surpreendidos, não poucas vezes, com a aspiração artística atrelada à capacidade de articulação e autocrítica desses coletivos. Há uma geração de jovens criadores voltada ao teatro de rua e ao teatro de intervenção, segmentos solenemente ignorados pelos críticos, instituídos ou não. O Brasil possui tradição em teatro de rua que vem sendo reinventada com sofisticação por aqueles que se autodefinem um movimento e riscam o chão para se fazer ouvir por gestores e inclusive pelos pares.
Muitos dos críticos ainda estamos presos à ideia da roda de rua, quando os trabalhos atuais também se assumem disformes, itinerantes, ocupantes, enfim, desestabilizam as normatizações do espaço público. Se parte do planeta foi sacudida recentemente pelo desejo de ocupar espaços públicos para transformar a sociedade em que vive, por que as artes cênicas ficariam de fora desse coro?[4]
A urgência da localidade nestes primeiros anos do século XXI, globalizados a todo vapor, pede lentes, corações e mentes abertas às intuições das mudanças de ventos. A arte e a cultura são banhadas pelas circunstâncias de seu quintal, de sua hora histórica. Vide ausência ou incipiência de políticas públicas divisadas na realidade brasileira.
O escritor e crítico Álvaro Lins costumava observar, focado na seara literária, que a cada geração de criadores corresponde uma geração de críticos. Ao autor deste artigo, tanto o adjetivo como o substantivo só tiveram guarida após década e meia na condição de repórter de teatro. A rigor, a prática sistemática vem desde 2008, ou seja, pouco mais de um quarto do período de atuação no jornalismo especializado.
Noto proximidade com a trajetória de Sábato Magaldi – sem, obviamente, comparação ao seu quilate intelectual de crítico e historiador. Entre os anos de 1950 e 1960 ele transitou da reportagem à crítica, consolidando-se como referência nas décadas seguintes, um dos principais interlocutores de Décio de Almeida Prado. Magaldi não compreendia o ofício como distante do movimento teatral. Imergia. Enxergava o crítico na dimensão coletiva dessa arte.
Sou repórter de teatro há 21 anos. Cometi algumas críticas amadoras em O Diário de Mogi (1989-1996), e as trato assim com a mesma convicção dos amadores do teatro. Lembro-me de escrever sobre O paraíso perdido, em 1992, espetáculo embrionário do Teatro da Vertigem encenado na Igreja de Santa Ifigênia. Aquelas linhas impressionistas, no pior sentido, alheias às categorizações teóricas, já prenunciavam o espectador apaixonado que me tornei.
Durante os dez anos em que escrevi para a Folha de S.Paulo (1998-2008) jamais assinei crítica. Estava absolutamente circunscrito à objetividade que os repórteres, somos condenados a perseguir a vida toda. Não usava adjetivos. Fixava-me em mediar junto ao leitor informações sobre o espetáculo a partir do discurso de seus criadores. O que não impediu que muitos leitores contumazes do meio artístico associassem meu nome à crítica.
Isso porque o repórter – atinei depois – constroi discurso crítico ao cotejar as aspas de sua fonte, fundi-las às informações e estruturar o texto com suas digitais. Sendo setorista com alguns anos de estrada, nenhuma estreia passaria incólume à memória de quem testemunha o repertório de determinados núcleos. Por isso a inevitabilidade do olhar crítico lançado nas entrelinhas, o que não constitui propriamente uma análise com a régua e o compasso que a tarefa impõe.
É dessa condição de repórter a crítico que falo nesta abertura do 2º Encontro Questão de Crítica, dividindo as instabilidades que percebo em minha prática diante da pletora de grupos e experiências aberta pela Lei de Fomento. As dificuldades em apreender os procedimentos criativos mais instigadores na paisagem redesenhada. E cá com meus botões, sigo ruminando como analisar as montagens à luz de um estilo e de uma crítica incondicional no compromisso com a minha verdade.
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[1] GUINSBURG, Jacó e PATRIOTA, Rosangela. Pensamento crítico e estético. In: GUINSBURG,Jacó e FARIA, João Roberto. História do teatro brasileiro, volume 2: do modernismo às tendências contemporâneas. São Paulo: Perspectiva e Edições Sesc SP, 2013, p. 286.
[2] Idem. Conforme nota dos autores, Paulo Francis atuou como amador no Teatro do Estudante do Brasil, o TEB, de Paschoal Carlos Magno. Na Universidade de Columbia, em meados dos anos de 1950, foi aluno de Eric Bentley e se dispôs a fazer pós-graduação. Apesar de não haver concluído os estudos, estes se constituíram nas bases intelectuais de sua carreira jornalística.
[3] Nos seus primeiros dez anos a Lei de Fomento contemplou 312 projetos, um montante de R$ 101,3 milhões, segundo dados do Núcleo de Fomentos Culturais da Secretaria Municipal de Cultura. A 24ª edição do programa (são duas por ano), no primeiro semestre de 2014, prevê apoio de até R$ 840.386,19 por proponente. O grupo define na inscrição em quantos meses dará conta do plano de trabalho.
[4] A base desse artigo foi assentada no momento do 2º Encontro Questão de Crítica, a cerca de três meses das manifestações de junho de 2013, quando parte significativa da população ocupou as ruas e fez história pelos direitos à cidadania.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.