Reportagem
7.2.2014 | por Maria Eugênia de Menezes
Foto de capa: Ronaldo Gutierrez
Ou você poderia me beijar vem contar uma história cada vez mais rara, mas não incomum. Poderia ter acontecido com seus avós. Ou seus pais. Depois de 60 anos de união, um casal precisa aprender a se separar. Um deles está doente. Não demora muito a morrer. E a presença do Mal de Alzheimer, que mina as memórias desse que vai embora, só torna a despedida mais penosa.
O que contribui com a singularidade do texto é, ao olhar para essa dor tão compreensível, escolher trazer dois homens como par protagonista. Com direção de Zé Henrique de Paula, a montagem apoia-se em um texto inglês, originalmente produzido para o National Theater, de Londres. A dramaturgia cabe a Neil Bartlett e teve a colaboração da Handspring Puppet Company – a dupla de bonequeiros responsável pela mais festejada criação recente da cena londrina: War Horse.
Originalmente, Ou você poderia me beijar também foi concebida para ser encenada com bonecos. Na versão brasileira, a mecânica da obra foi adaptada e traz seis atores, escalados para interpretar os personagens principais em três momentos da vida: na velhice (vividos por Claudio Curi e Roney Facchini), na maturidade (Marco Antonio Pâmio e Rodrigo Caetano) e outro na juventude (encarnados por Thiago Carreira e Felipe Ramos).
A estrutura proposta pelo texto não permite apenas os flashbacks habituais, mas um efetivo transbordamento de tempos. Um procedimento que evidencia os pontos de contato entre passado e presente. “Existe uma indissociabilidade entre forma e conteúdo. É uma história que não seria a mesma se contada de outra maneira”, considera Zé Henrique, encenador devoto da dramaturgia britânica recente.
Em meio à trama – que segue esse fluxo atravessado por interferências dos protagonistas em outras idades – há ainda a presença de vozes que escapam ao conflito principal. Todas elas a cargo da atriz Clara Carvalho. A voz de uma advogada, de uma cozinheira, de uma cientista que profere uma palestra sobre o processo de degeneração da memória.
É a própria identidade que se esvai conforme rareiam as lembranças. Nomeado apenas como B., o personagem de Roney Facchini surge em cena com uma caixa de fotografias. Quer recordar alguma coisa. Encontrar o fio de Ariadne que lhe permita retornar aquele ponto exato no qual perdeu-se de si mesmo.
Uma canção faz as vezes de “madeleine” na peça. What are you doing the rest of your life, tema de Michel Legrand para o filme Tempo para amar, tempo para esquecer, é capaz de mover o enredo: para frente e para trás.
Ainda que Neil Bartlett seja reconhecido como um autor engajado, esse título passa ao largo da militância. “Não é uma peça sobre o movimento gay”, ressalva Claudio Curi. Para Facchini, “o que se está realmente discutindo é como essa célula, esses dois que se tornaram um só, vão fazer para se dividir agora”.
Mas não se desconsideram as dificuldades extras que são impostas pela opção sexual do casal. O temor de se expor na Cidade do Cabo (onde se passa a história) dos anos 1970. A ausência de garantias legais de que um vá herdar os bens do outro em caso de morte.
Ou você poderia me beijar é uma história sobre o amor. E sobre a velhice, o desamparo, o medo, a intolerância. Talvez, o autor tenha sido generoso a ponto de permitir que cada espectador encontre aí o seu tema maior. Mas, sobre todos esses vieses, parece reinar o tempo. É ele a comandar as engrenagens. A abrir e fechar a gaveta de recordações. A fazer com que tudo que aconteceu uma vez, não deixe jamais de ecoar.
.:. Publicado originalmente em O Estado de S.Paulo, Caderno 2, página C5, em 7 de fevereiro de 2014.
.:. Teatro Núcleo Experimental (r. Barra Funda, 637, São Paulo, tel. 11 3259-0898. Sex. e sáb., às 21h; dom., às 19h. R$ 40. Até 27/4.
Ficha técnica
Texto: Neil Bartlett e Handspring Puppet Company
Tradução e adaptação: Thiago Ledier
Direção: Zé Henrique de Paula
Com: Clara Carvalho, Roney Facchini, Marco Antonio Pâmio, Claudio Curi, Thiago Carreira, Felipe Ramos e Rodrigo Caetano
Preparação de atores: Inês Aranha
Assistente de direção: Thiago Ledier
Trilha Original e Preparação Vocal: Fernanda Maia
Piano: Fernanda Maia e Rafa Miranda
Cenário e figurinos: Zé Henrique de Paula
Assistente de cenário e figurino: Cy Teixeira
Iluminação: Fran Barros
Video e design gráfico: Herbert Bianchi
Fotos: Ronaldo Gutierrez
Coordenação de produção: Claudia Miranda
Produção executiva: Priscilla Oliva
Assessoria de imprensa: Patricia Pichamone
Projeto Escola: Alexandre Meirelles
Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.