Menu

Artigo

O teatro das indagações de Büchner

21.2.2014  |  por Fernando Marques

Foto de capa:

Se o presente reescreve constantemente o passado e com isso redireciona o futuro, os valores da história literária jamais estarão lançados de uma vez por todas. Esse gênero de operações, nas quais o acaso não deixa de jogar seu papel, envolveu a obra do escritor alemão Georg Büchner (1813-1837), morto aos 23 anos. Autor de repertório breve, mas seminal – composto por três peças teatrais, um panfleto político e uma novela –, Büchner teve a obra publicada na íntegra apenas em 1879, inspirando gerações de criadores desde então. Naturalistas e expressionistas viram no dramaturgo um precursor, tanto no plano dos temas, que ele tornou socialmente incisivos, quanto no plano das formas, alteradas para a expressão de novos conteúdos. O escritor nasceu há exatos 200 anos, que se completaram a 17 de outubro [de 2013].

A tragicomédia Woyzeck, provavelmente sua peça mais conhecida, foi levada à cena pela primeira vez a 8 de novembro de 1913, em plena febre expressionista na Alemanha. O centenário de estreia da peça assinala outra data a convidar à releitura de seus textos – além de Woyzeck, Büchner escreveu o drama A morte de Danton e a comédia Leonce e Lena. Produziu ainda o panfleto O mensageiro de Hesse e a novela Lenz, na qual reelaborou passagens da vida de Jakob Lenz (1751-1792), dramaturgo ligado ao movimento Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto), autor com quem Büchner possuía afinidades e que ajudou a salvar do esquecimento.

Há uma linha a relacionar Lenz a Büchner e este aos naturalistas e expressionistas. Essa tendência, socialmente crítica e esteticamente inquieta, viria a ser uma das mais férteis da literatura alemã, alcançando o dramaturgo Bertolt Brecht (1898-1956) e se espraiando por outros idiomas. A história do soldado raso Franz Woyzeck, exemplar nesse contexto, chegou ao Brasil pelas mãos pioneiras de Ziembinski, diretor e ator de Lua de sangue, título usado na montagem – então pouco compreendida – feita no Rio de Janeiro em 1948.

Büchner ligou-se a atividades políticas em seu estado natal, Hesse; seu texto de estreia, O mensageiro de Hesse – primeira mensagem, foi escrito em parceria com o pedagogo Friedrich Weidig e divulgado clandestinamente em 1834. A Alemanha àquela altura não passara por uma revolução, como a França; a renovação industrial, em moldes semelhantes aos da Inglaterra, apenas começava. Ideias revolucionárias contrastavam com a prática autoritária das elites e com a atitude politicamente apática dos mais pobres.

O texto afirma anunciar “a verdade”, “mas aquele que diz a verdade é enforcado”. Ressalta que “a vida dos ‘nobres’ é um longo domingo”, enquanto a dos camponeses não passa de “um longo dia de trabalho”. Os autores contavam, todavia, com a precaução dos leitores, pedindo que estes mantivessem O mensageiro de Hesse longe do alcance das autoridades. Em vão: por medo ou subserviência, alguns entregaram o panfleto à polícia.

A obra não se limita a reclamar justiça e a exortar ao combate público, mas o faz baseada em dados objetivos, que assinalam o homem de ciência que Büchner também foi. Apresentados os números do que se paga em impostos no estado, Weidig e Büchner denunciam: “Este dinheiro é o dízimo de sangue, que é tomado do corpo do povo. Cerca de 700.000 homens suam, suspiram e passam fome para isso”, numa população que soma, naquele momento, 718.000 pessoas.

Büchner escapa da cadeia por pouco. Em cinco semanas no início de 1835, antes de fugir para a cidade francesa de Estrasburgo, escreve sua primeira peça, A morte de Danton, na qual aborda sem idealizações a Revolução Francesa na fase do Terror, com os rebeldes dos tempos iniciais a lutarem brutalmente, poucos anos depois, uns contra os outros. As execuções se multiplicam, cabeças rolam às dúzias.

A situação contemplada por Büchner opõe “o incorruptível” e paranoico Robespierre, dedicado a salvar a revolução de supostos desvios, ao desencantado e dissoluto Danton, a essa altura exausto da violência na qual os adversários insistem. Questões sociais e metafísicas se enlaçam nesse drama (a que não faltam momentos de humor), assim como nas outras obras de Büchner. A condição de suas criaturas revela-se ao mesmo tempo terrena e transcendente – ainda que transcendência, neste caso, tenha antes a ver com ironia e desalento do que com esperanças de qualquer tipo.

A estrutura literária na qual se traduzem esses temas tende para o modo épico de compor, que privilegia aspectos sociais, iluminando o contexto em que se dá a trajetória dos indivíduos (embora a forma dramática tradicional, centrada no indivíduo, em parte se conserve aqui). A história apresentada aos solavancos, com laços tênues entre as cenas, busca o efeito de painel, de mosaico, para ressaltar as tendências exteriores, públicas, que ultrapassam a estrita vontade dos personagens e que determinam seu destino. Danton, no centro do quadro, revela-se um herói paradoxal: lúcido e eloquente, mas incapaz de ação efetiva, inclina-se a desistir de todas as lutas, pessoais ou políticas, vistas por ele como inúteis.

Um debate teológico acontece quando o ex-líder e outros revolucionários vencidos pelo grupo de Robespierre se encontram presos, à espera da guilhotina. Discute-se a existência de Deus. O inglês Payne afirma: “Eliminai a imperfeição; somente assim podereis demonstrar Deus”. Ele explica seu ponto de vista: “Pode-se negar o mal, mas não a dor. Somente a razão pode demonstrar Deus; o sentimento se insurge contra isso. Toma nota desta pergunta, Anaxágoras: por que sofro? É essa a cidadela do ateísmo. A mais leve contração de dor, ainda que se produza apenas num átomo, abre na criação uma fenda de alto a baixo”.

Em Estrasburgo, Büchner tem notícia da obra de Jakob Lenz e pensa em escrever uma dissertação sobre o dramaturgo. Termina optando pela forma ficcional. Lenz havia atuado na década de 1770, a do movimento Tempestade e Ímpeto, ao lado de Goethe e Schiller, estes depois convertidos ao credo neoclássico. Autor de comédias como O preceptor ou Vantagens da educação particular e O novo Menoza, o anticlássico Lenz trata com sarcasmo as interdições impostas aos alemães de seu tempo: em O preceptor, o herói, diante das dificuldades amorosas, acaba por se castrar, autopunindo-se por não poder conter o próprio desejo…

Em ambas as peças, o andamento acelerado torna as ações inverossímeis, conduzindo os enredos a uma espécie de autoparódia. Büchner interessa-se pela trajetória do escritor que morreria louco, em plena rua, em Moscou, e compõe relato em terceira pessoa, mas empático, atento a sua lucidez – os debates sobre arte são especialmente vivos – e a seus delírios, traduzidos por imagens enfáticas.

O tema do tédio e da liberdade existencial, tocado em A morte de Danton e em Lenz, reaparece na comédia Leonce e Lena. O príncipe Leonce, expressando não só o fastio de sua classe, mas o de toda gente, lastima-se: “O que as pessoas fazem por causa do tédio! Estudam pelo tédio, rezam pelo tédio, apaixonam-se, casam-se, multiplicam-se pelo tédio e finalmente morrem de tédio e – aí está a graça – tudo isso com os rostos mais compenetrados, sem saber por que e pensando que Deus sabe”.

No entanto, alguma coisa vem movimentar essas águas plácidas. O rapaz e a moça do título não se conhecem, mas tiveram o casamento combinado pelas respectivas famílias, que o fizeram por mera conveniência, sem levar sentimentos em conta. Leonce e Lena, cada um por seu lado, então fogem para evitar o casamento à força. Perambulando, encontram-se por simples acaso e se apaixonam. Enfim retornam aos domínios do patético rei Peter, pai de Leonce, e terminam por descobrir que o prometido de Lena era o próprio Leonce, e vice-versa. O casamento por interesse coincide ironicamente com o casamento por amor; a liberdade e seu oposto, ou seja, a submissão à ordem, afinal se equivalem.

Büchner encontrou o mote para Woyzeck em relatos sobre o crime praticado por um homem com esse nome, que matara a namorada por ciúmes, tendo sido executado em 1824. A busca do tema na realidade e não nas convenções literárias antecipa o naturalismo em várias décadas. Ao mesmo tempo, a imaginação que deforma o real – para representá-lo com mais vigor – indica a filiação aos valores do grupo Tempestade e Ímpeto. E vai inspirar os expressionistas já no século XX.

O escritor quebrou a tradição segundo a qual o herói de tragédias e dramas tinha de resultar, sempre, das classes privilegiadas. Em sua última e inacabada peça, quem assume o papel principal é um pé-rapado, perdedor da cabeça aos sapatos; o humor que tempera a história volta-se contra o Capitão e o Médico, símbolos do poder arrogante e obtuso. Trazer o proletário para o centro da cena equivalia a tomar o seu partido – no caso de Woyzeck, não para justificá-lo, mas para compreendê-lo. Providência corajosa, capaz de interrogar o teatro até agora.

>> Leia também O jovem centenário Woyzeck

.:. Publicado originalmente no Correio Braziliense, suplemento Pensar, em 26/10/2013.

.:. As ilustrações deste artigo são de autoria da artista plástica Andrea Campos de Sá e compõem as edições do livro Zé: peça em um ato, recriação em versos de Fernando Marques para a peça Woyzek, de Büchner, que saiu pela É Realizações Editora no ano passado, uma década após a publicação pela Editora Perspectiva.

Büchner e cia.

Büchner: na pena e na cena. De Georg Büchner. Organização, tradução e notas: J. Guinsburg e Ingrid D. Koudela. Obra completa, com as peças A morte de Danton, Leonce e Lena e Woyzeck, a novela Lenz e o panfleto O mensageiro de Essen, além de cartas. Perspectiva, 2004.

Woyzeck. De Georg Büchner. Tradução, apresentação e notas: Tércio Redondo. Hedra, 2003.

Woyzeck; Leonce e Lena. De Georg Büchner. Tradução: João Marschner. Prefácio: Anatol Rosenfeld. Ediouro, s/d.

A morte de Danton. De Georg Büchner. Tradução: Mário da Silva. Prefácio: Erwin Theodor. Ediouro, s/d.

A morte de Danton. De Georg Büchner. Tradução: Maria Adélia Silva Melo e Jorge Silva Melo. Teatro Nacional D. Maria II/Bicho do Mato, 2012.

Lenz; O mensageiro de Hesse. De Georg Büchner. Em: Caderno de Teatro Alemão, n. 37. Institutos Goethe do Brasil, 1982.

Lenz .Textos de Peter Schneider e Georg Büchner. Tradução: Irene Aron. Brasiliense, 1985.

O preceptor ou Vantagens da educação particular. De Jakob Michael Reinhold Lenz. Tradução e estudos críticos:Willi Bolle, Erlon J. Paschoal e Flávio M. Quintiliano. Paz e Terra, 1983.

O novo Menoza ou História do príncipe Tandi de Cumba. De Jakob Lenz. Tradução: José Miranda Justo. Cotovia, 2001.

[Notas sobre o teatro; Regras para atores. Textos de Jakob Michael Reinhold Lenz e de J. W. Goethe. Tradução e prefácio: Fátima Saadi. Coleção Dramaturgias. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006.]

Ópera e filmes

Wozzeck– CD com a ópera de Alban Berg. Direção de Ingo Metzmacher. Bo Skovhus (Wozzeck), AngelaDenoke e elenco. Com a Orquestra Filarmônica e o Coro da Ópera de Hamburgo. Ao vivo,1999.

Wozzeck– DVD com a ópera de Alban Berg, dirigida por Sebastian Weigle (música) e Calixto Bieito (cena). Franz Hawlata (Wozzeck), AngelaDenoke (Marie) e elenco. Orquestra Sinfônica e Coro do GranTeatredel Liceu, Barcelona, Espanha. Ao vivo, 2006.

Woyzeck– Filme de Werner Herzog. Com Klaus Kinski. Alemanha, 1979.

Danton – Filme de Andrzej Wajda. Com Gérard Depardieu. Polônia/França, 1982.

Professor do departamento de artes cênicas da Universidade de Brasília (UnB), na área de teoria teatral, escritor e compositor. Autor, entre outros, de ‘Zé: peça em um ato’ (adaptação do ‘Woyzeck’, de Georg Büchner); ‘Últimos: comédia musical’ (livro-CD); ‘Com os séculos nos olhos: teatro musical e político no Brasil dos anos 1960 e 1970’ e ‘A província dos diamantes: ensaios sobre teatro’. Também escreveu a comédia ‘A quatro’ (2008) e a comédia musical ‘Vivendo de brisa’ (2019), encenadas em Brasília.

Relacionados