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Artigo

O jovem centenário Woyzeck

28.2.2014  |  por Fernando Marques

Foto de capa: João Caldas

Aniversários cercam nos próximos meses o drama Woyzeck, do alemão Georg Büchner (1813-1837), convidando a falar sobre a breve e sugestiva peça, que encerra qualidades poéticas e políticas ainda hoje eloquentes. Escrito em 1836, o texto, que permaneceria inconcluso, foi publicado em 1879 e chegou ao palco somente em 1913, em Munique. Os 100 anos desde a primeira montagem de Woyzeck se completam em novembro [de 2013].

Outra data redonda refere-se ao dramaturgo: os 200 anos de nascimento de Büchner ocorrem a 17 de outubro. Ele deixou ainda as peças A morte de Danton e Leonce e Lena, a novela Lenz e o panfleto O mensageiro de Essen, pelo qual foi interrogado pela polícia: “A vida dos ‘nobres’ é um longo domingo”, enquanto “a vida do agricultor é um longo dia de trabalho”, afirma o panfleto, em tom indignado. Imaginação metafórica e sensibilidade social somam-se em seus textos, dos quais apenas A morte de Danton seria impresso ainda em vida do autor, morto aos 23 anos.

Para além das efemérides, há outro bom motivo para se abordar a história do soldado raso Franz Woyzeck, na qual Büchner entrega pioneiramente o papel principal a um personagem proletário, perdedor da cabeça aos sapatos – até aquela altura, figuras pobres podiam frequentar as comédias, mas só surgiam nos dramas em papéis laterais. Trata-se da excelente montagem que a companhia paulistana Razões Inversas realiza sob o título de Anatomia Woyzeck (em cartaz até 30 de junho [de 2013] no Centro Cultural São Paulo). Lembro algo da trajetória do texto no Brasil, desde a sua estreia no Rio de Janeiro em 1948, encenado pelo inovador Ziembinski.

Haverá pouco ou nada de casual no fato de a peça ter chegado ao país naquele ano, pelas mãos do polonês Ziembinski. O Woyzeck de 1948, belo espetáculo que, segundo os testemunhos, não chegou a ser compreendido, participou do movimento de modernização do teatro brasileiro, ainda que efemeramente, tendo ficado em cartaz por apenas 11 dias, a partir de 25 de agosto. A expressão Lua de sangue substituía o título original.

O teatro mantivera-se alheio aos ventos da Semana de 1922, demorando a acertar o passo com o que se fazia no mundo – e tardando a propor imagens menos convencionais da sociedade brasileira. Desde fins da década de 1930, porém, buscava-se renovar o repertório e as práticas de palco. O marco das mudanças, como se sabe, virá com Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues, peça encenada por Ziembinski em dezembro de 1943, com o grupo amador Os Comediantes.

Menos de cinco anos depois, o diretor voltaria a Nelson, pondo de pé o então escandaloso Anjo negro que, por motivos estéticos e ideológicos, irritaria os conservadores, furiosos com a metáfora encarnada na dupla de protagonistas Ismael e Virgínia, marido negro e mulher branca que fazem filhos e depois os matam. Naquele mesmo ano, criava-se em São Paulo o Teatro Brasileiro de Comédia, técnica e esteticamente renovador (embora cauteloso em costumes e política, em seus primeiros tempos). Foi nesse quadro que o impulso e a oportunidade de encenar Woyzeck ocorreram a Ziembinski, apoiado pelo produtor Sandro Polloni, que conduzia o Teatro Popular de Arte ao lado da atriz Maria Della Costa. A estrela interpretou a inquieta Maria, namorada de Franz, enquanto o próprio diretor encarregava-se do papel central.

O encenador Ruggero Jacobbi havia sugerido a Sandro a montagem da peça alemã e depõe em 1956: “O espetáculo foi excelente. Ziembinski resolveu o problema das mudanças de cenário com habilidade e simplicidade. Alguns atores (Maria, Samborsky, Guerreiro) estavam extraordinários. Mas o texto, em sua aspereza, em sua falta de estrutura aparente, em sua pureza sem concessões, ficou inatingível, obscuro, para o grande público. Muita crítica demonstrou a incompreensão mais absoluta. Somente Pompeu de Souza escreveu uma ‘louvação’, que é uma de suas páginas mais vivas. Isto foi em setembro de 1948. Estamos ficando velhos; Woyzeck continua jovem, continua a ser ‘um caso aberto’”.

Jacobbi apontava a necessidade, para o diretor, de resolver o problema da mudança de cenários, dado que a história salta sem cerimônia de um lugar a outro, valendo-se de estrutura episódica, épica, destinada a dar a ver as circunstâncias que condicionam os personagens, o seu entorno. Büchner não abandona de todo a forma dramática, na qual as cenas se relacionam por causa e efeito, mas em boa medida troca essa estrutura pelo modo aberto, épico de compor, como se antecipasse o cinema.

O tradutor Tércio Redondo, em prefácio a sua versão da peça, resume: “Para trazer um despossuído ao primeiro plano, Büchner trata de revolucionar a forma, construindo cenas curtas, precariamente articuladas, com cortes que se assemelham à técnica cinematográfica dos planos-sequência”, quando diversas ações são registradas em série, em plano longo e único.

Matheus Nachtergaele e Everaldo Pontes dirigidos por Cibele ForjazSem créditos

Matheus Nachtergaele e Everaldo Pontes em 2002

De 1948 a 2002, verificam-se novas montagens da peça, inclusive a de Bráulio Pedroso, no Rio de Janeiro dos anos 1970, e a montagem brasiliense dirigida por Tullio Guimarães em 1996. Em 2002, estreia no Rio a adaptação Woyzeck, o brasileiro, escrita por Fernando Bonassi e Matheus Nachtergaele, dirigida por Cibele Forjaz. As instalações militares são substituídas por uma olaria, a Alemanha da primeira metade do século XIX transforma-se no Brasil atual.

O desafio do espaço resolve-se da seguinte maneira, conforme resenha de Mariangela Alves de Lima em 2003: “O espaço circular em que se movimentam os trabalhadores, girando em torno do eixo de preparação da argila, é subordinado aos nichos onde se alojam os dois representantes de uma classe social superior, o Capitão e o Médico. Woyzeck é um servidor em todos esses lugares porque se desdobra em vários ofícios para sustentar sua pequena família”. Devido à própria experiência estafante, ele “se torna, na perspectiva deste espetáculo, um protagonista trágico”. Como entender a têmpera de herói trágico em personagem desequilibrado e frágil, que delira e mata? “Trata-se de um homem forjando a si mesmo, tentando alçar-se um milímetro acima das condições terríveis em que vive”, escreve Mariangela.

Já no texto original, Woyzeck responde com alguma ironia aos que o oprimem. Ele se vê explorado pelo Médico, que o converte em cobaia; humilhado pelo Capitão, que pisa em sua autoestima; vê-se traído pela namorada e espancado pelo rival, o obtuso Tambor-mor. O ato extremo praticado pelo miliciano resulta de uma série de pressões que afinal o enlouquecem.

No espetáculo do grupo Razões Inversas, as matrizes épicas do texto atualizam-se de modo radical. Em cena, estão três atores, que se deslocam sobre solo de material sintético, figurando grama, o que remeteria aos espaços abertos nos quais se desenrolam algumas das situações. Os intérpretes se valem, na abertura e em certos momentos do percurso, de microfones – como na bem-humorada passagem dos artistas de feira, que ridicularizam os desmandos na academia, onde se aprende “a chicotear”.

Muito preparados vocal e corporalmente, Paulo Marcello, Washington Luiz e Clóvis Gonçalves, sob a direção de Marcio Aurelio, revezam-se nos vários personagens. Eles mantêm traços que nos permitem identificar, já pela postura, cada uma das figuras – alguém que anda com dificuldade, por exemplo, conserva essa característica independentemente do ator que o interprete.

Marcio Aurelio adaptou e encenou em 2013

Ao mesmo tempo, levam à vertigem a convenção épica, pela qual podem entrar e sair dos personagens, alternando narrativa e ações propriamente ditas – sem criar, com isso, maiores dificuldades para o espectador. Liberdade e rigor são absolutos, síncronos. Com tais qualidades – não custa lembrar – será possível representar qualquer história, qualquer grande história como a de Woyzeck, tornando nítidas as circunstâncias que condicionam as atitudes e moldam a subjetividade das criaturas.

Era aproximadamente esse o ideal de Boal e Guarnieri no Teatro de Arena (1953-1971), grupo pioneiro quanto a essa fértil, inteligentíssima bagunça, que incorpora e ultrapassa as lições brechtianas. Atenção, por favor: uma teoria brasileira do épico, de matriz local e vocação universal, pode ser formulada a partir de espetáculos como Anatomia Woyzeck.

>> Lei também O teatro das indagações de Büchner

.:. Publicado originalmente no jornal Correio Braziliense, caderno Pensar, p. 4, em 22/6/2013.

.:. Anatomia Woyzeck – Espetáculo da Companhia Razões Inversas. Com Clóvis Gonçalves, Washington Luiz e Paulo Marcello. Direção de Marcio Aurelio. O trabalho fecha a trilogia de que também fazem parte Agreste (2004) e Anatomia Frozen (2009). Em cartaz até 30 de junho [de 2013]na Sala Jardel Filho do Centro Cultural São Paulo ((Rua Vergueiro, 1000, São Paulo/SP).

.:. Fernando Marques é autor de Zé – peça em um ato (Perspectiva), adaptação do Woyzeck em verso e canções. [A peça foi republicada em dezembro de 2013 pela É Realizações.]

Professor do departamento de artes cênicas da Universidade de Brasília (UnB), na área de teoria teatral, escritor e compositor. Autor, entre outros, de ‘Zé: peça em um ato’ (adaptação do ‘Woyzeck’, de Georg Büchner); ‘Últimos: comédia musical’ (livro-CD); ‘Com os séculos nos olhos: teatro musical e político no Brasil dos anos 1960 e 1970’ e ‘A província dos diamantes: ensaios sobre teatro’. Também escreveu a comédia ‘A quatro’ (2008) e a comédia musical ‘Vivendo de brisa’ (2019), encenadas em Brasília.

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