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Reportagem

Dezequilibrados, 18 anos de inovação e coerência

17.3.2014  |  por Daniel Schenker

Foto de capa: Divulgação

O título da peça de Domingos Oliveira, Amores, resume com precisão a jornada dos integrantes do grupo Os Dezequilibrados, dirigido por Ivan Sugahara, que completa 18 anos de atividades em 2014. “O fato de estarmos juntos há tanto tempo é a prova de que existe muito afeto entre nós. Os atores do grupo são as pessoas mais próximas de mim. E essa conexão diz bastante sobre Domingos, que costuma trabalhar com os amigos”, afirma Sugahara. Para comemorar a data, o grupo estreou, no dia 15 de março, uma nova montagem de Amores, com atores da companhia (Ângela Câmara, José Karini e Saulo Rodrigues) e de fora (Ana Abott, Lívia Paiva e Lucas Gouvêa) e, nos meses seguintes, mais dois projetos: Fala comigo como a chuva e me deixa ouvir, encenação da peça curta de Tennessee Williams, com Ângela e Saulo, a partir de junho; e Jardins portáteis, performance de Cristina Flores, marcado para julho e agosto.

Amores e Jardins… serão mostrados na Sede das Cias., casa localizada na famosa escadaria Selarón, na Lapa carioca, antes residência da Cia. dos Atores e agora também de outros dois coletivos – Os Dezequilibrados e Pangeia, este último conduzido por Diego de Angeli. Fala comigo… ocupará a Casa da Glória e terá estrutura itinerante. A companhia já anuncia um projeto para 2015, com o título provisório de História de amor. O tema, quase inevitavelmente, é o amor, abordado pelos Dezequilibrados em diversos espetáculos, como Memória afetiva de um amor esquecido, criação coletiva com texto de Rosyane Trotta, Quero ser Romeu e Julieta, de Cristina Flores e Ivan Sugahara, Últimos remorsos antes do esquecimento, de Jean-Luc Lagarce, e A serpente, de Nelson Rodrigues. Os integrantes dos Dezequilibrados contam com patrocínio da Petrobras – destinado à sede, aos dois espetáculos (Últimos remorsos… e A serpente) reunidos, em repertório, ano passado, e às novas encenações (Jardins portáteis e História de amor). Amores e Fala comigo… usufruem de verba do Fundo de Apoio ao Teatro (Fate).

O nome Os Dezequilibrados surgiu há 18 anos no cenário carioca. Mas a formação original do grupo se deu em 1998. O primeiro espetáculo nasceu no ano seguinte, Um quarto de crime e castigo, um recorte da obra monumental de Dostoiévski apresentada num quarto de apartamento na Urca. Despontava naquele momento uma importante característica do grupo: o aproveitamento de espaços não-convencionais, como boate (em Bonitinha, mas ordinária, de Nelson Rodrigues), foyer de cinema (em Vida, o filme, de Daniela Pereira de Carvalho e Ivan Sugahara) e dependências de prédio cultural (em Memória afetiva…). Olhando em retrospectiva, os trabalhos evidenciam ainda uma alternância entre dramaturgia fechada e produzida pela companhia, que contava com uma autora, a citada Pereira de Carvalho. No decorrer do tempo, Ivan Sugahara se aproximou de outros grupos. Assinou, com Enrique Diaz, então diretor da Cia. dos Atores, a montagem de Notícias cariocas. E influenciou no surgimento da Pangeia. Não por acaso, os coletivos se uniram no projeto da Sede das Cias. “Bel Garcia me procurou e disse que talvez a Cia. dos Atores tivesse que entregar a sede. Propôs que nos juntássemos a eles. E eu sugeri que incluíssemos a Pangeia”, explica Sugahara, informando que a gestão do espaço está a cargo de Os Dezequilibrados e da produtora Nevaxca, de Tarik Puggina.

Elenco de 'Amores', dirigido por SugaharaSem créditos

Elenco de ‘Amores’, dirigido por Sugahara

Afinados com a atualidade, os novos projetos do grupo de Sugahara apontam, porém, para diferentes caminhos – há uma montagem de texto fechado (Amores), um happening (Jardins portáteis) e uma criação coletiva (História de amor). Amores foi encenado por Domingos Oliveira, que transportou o material para o cinema. O autor coloca o público diante de uma ciranda afetiva. Vieira é um escritor de televisão prestes a perder o emprego, enquanto tenta controlar a liberdade da filha, Cíntia. Telma é casada com Pedro. Eles decidem ter filhos e, como não estão conseguindo, o relacionamento entra em crise. Luiza é uma atriz fracassada que ganha a vida contando piadas em bares. Ela se apaixona pelo pintor Rafael, mas descobre que ele é soropositivo. “Na peça aparece o fantasma da Aids. É um elemento mais da época em que a ação se passa, 1995, do que de hoje. Contudo, permanece como uma questão do nosso tempo”, destaca Ivan. Os atores chamam atenção para o elo que possuem com o universo do texto. “Nós atravessamos coisas sérias, em âmbito pessoal e profissional. Percebemos que o amor se transforma. Tanto que continuamos unidos”, frisa Ângela Câmara.

Jardins portáteis, empreitada de Cristina Flores, surgiu inesperadamente. “Comecei a estudar jardinagem como uma fuga do teatro. Mas acabou virando projeto de teatro”, comenta Flores, que organizou os primeiros encontros no jardim que fica no terraço da Sede das Cias. “Nas duas ‘apresentações’, pedi que as pessoas levassem legumes e frutas. Preparamos um cuscuz e uma salada de frutas. Convido profissionais ligados à música porque busco evocar a atmosfera de sarau. E digo os textos em primeira pessoa, mesmo dividindo a cena com outros atores”, relata Cristina, referindo-se a João Marcelo Iglesias, da Pangeia, e Eduardo Pires. História de amor focará na evolução do sentimento amoroso ao longo do tempo. “Criaremos uma dramaturgia própria, mas os atores falarão em gromelô. Tudo será entendido por meio das sonoridades, intenções e trabalhos corporais”, revela Sugahara. Karini, Câmara, ambos da companhia, e Claudia Mele estão confirmados no elenco.

Apesar da fase efervescente, sobreviver de teatro não é fácil no Rio de Janeiro. “Por mais que as chances de captação tenham aumentado, o incentivo existe para projeto, mas não para continuidade. Acho que o Rio se tornou um cemitério de espetáculos que não conseguem seguir adiante”, constata Saulo Rodrigues. O sonho de se manter através da companhia não se concretizou. “Nosso sustento depende de outras atividades”, realça Karini. Entretanto, esta impossibilidade tem seu lado positivo. “Começamos quando tínhamos pouco mais de 20 anos. Nós nos consolidamos dentro do grupo. Hoje vivemos um casamento aberto. As pessoas têm liberdade para atuarem fora da companhia e isto traz renovação para as relações”, observa Letícia Isnard, atriz de Os Dezequilibrados.

Serviço:

Amores
Sede das Cias. Rua Manuel Carneiro, 12, Rio de Janeiro, (21) 2137-1271. Sáb. a seg. às 20h. R$ 1,99.

Jardins portáteis
Sede das Cias. Rua Manuel Carneiro, 12, Rio de Janeiro, (21) 2137-1271.

Fala comigo como a chuva e me deixa ouvir
Casa da Glória. Ladeira da Glória, 98, Rio de Janeiro, (21) 98121-8500.

.:. Publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, Caderno 2, p. C6, em 14/3/2014.

Bacharel em Comunicação Social pela Faculdade da Cidade. É doutor em artes cênicas pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UniRio. Trabalha como colaborador dos jornais O Globo e O Estado de S.Paulo e das revistas Preview e Revista de Cinema. Escreve para os sites Questão de Crítica (questaodecritica.com.br), Críticos (criticos.com.br) e para o blog danielschenker.wordpress.com. Membro do júri dos prêmios da Associação de Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR), Cesgranrio e Questão de Crítica.

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