Reportagem
Feminino e masculino há muito deixaram de ser definições precisas de gênero. Neste ano, o Facebook atualizou as suas opções. Quem usa a rede social em inglês já pode escolher entre 50 formas distintas de se identificar: cisgênero, intersexual, transgênero. Nas escolas, as crianças também têm forçado uma discussão sobre essa questão. Em muitos casos, roupas e comportamentos não encontram mais correspondência na tradicional visão que temos de meninos e meninas.
Na mostra oficial do atual 23.º Festival de Teatro de Curitiba, que vai até domingo, o espetáculo BR Trans trouxe a pesquisa do cearense Silvero Pereira sobre transexuais e travestis para o centro da cena. Com nítido cunho autobiográfico, o espetáculo é um trabalho de exposição, no qual o artista rasga muitas das próprias feridas. Mas é também uma obra de abertura para outras experiências. Foi criado com base na sofrida convivência com as realidades de Fortaleza e de Porto Alegre e faz convergir depoimentos recolhidos nesses dois pontos longínquos do País. “Essa BR Trans é uma espécie de estrada imaginária, que liga o Nordeste ao Rio Grande Sul”, aponta o ator.
Significativa, a escolha do título para o maior evento nacional das artes cênicas não deve ser vista como dado isolado. Serve também como indicativo da crescente presença do assunto no teatro. Em cartaz em São Paulo, o ambicioso projeto E se fez a humanidade ciborgue, do grupo Os Satyros, tangencia a problemática. Aborda as novas formas de sexualidade, os muitos percalços da afetividade no contexto contemporâneo e vai até a possibilidade de transformação completa dos corpos, por meio do uso de próteses e das cirurgias plásticas. Uma época em que todas as fantasias são realizáveis.
Sucesso em todo o País, o espetáculo Luís Antônio-Gabriela redimensionou o tratamento dado a essa temática. Na obra, o diretor Nelson Baskerville colocava em foco a história de seu irmão que havia se tornado travesti, perdido contato com a família e migrado para a Espanha. A aproximação com esse universo, contudo, não se restringiu ao drama familiar. Mais uma vez valendo-se do tratamento documental, Baskerville conduziu Lou e Leo. Em cena, o transexual Leo Moreira Sá, nascido Lourdes Helena, repassava sua trajetória pessoal: a violência, o preconceito, o envolvimento com drogas, a prisão.
É comum que, nas artes cênicas, a questão da diversidade sexual venha atravessada por forte cunho autobiográfico. Mas já existem obras de ficção que se dediquem a explorar dramaturgicamente esse fulcro social. Em Avental todo sujo de ovo, texto que mereceu montagens recentes em São Paulo e no Ceará, o autor Marcos Barbosa faz uma inversão da parábola do filho pródigo. Na versão paulistana, que estreou em 2013, Bete Dorgam, Roberto Arduim e Dagoberto Feliz relatavam os percalços de um casal que, durante 19 anos, amarga o desaparecimento do menino Moacir. A ausência passa a pautar suas vidas. E pai e mãe não saberão como reagir quando ele voltar para casa como Indienne DuBois – uma evidente referência a Blanche DuBois, a protagonista de Um bonde chamado desejo.
Em BR Trans, o tom documental convive com menções a personagens e obras da literatura. Autores como Heiner Müller e William Shakespeare entram na ciranda. Trechos de obras de Caio Fernando Abreu pontuam a peça. E não faltam interferências de Caetano Veloso e Chico Buarque. “Para mim, o teatro é um instrumento de transformação social. Mas isso não elimina a arte”, observa ainda Pereira. “Não é um ato de militância. É um trabalho de ator.”
Acompanhado apenas por um músico, o intérprete constrói sozinho o seu “cabaré”. Controla toda a iluminação, acendendo e apagando abajures e lanternas. Movimenta o tênue cenário conforme suas necessidades. Faz a plateia experimentar, ao seu lado, estados diferentes: do trágico ao cômico. Para a diretora gaúcha Jezebel De Carli, que assina a encenação, “o público não vivencia um processo meramente catártico. Existe ali uma construção estética, de linguagem”.
Dedicado a pesquisar o tema há 12 anos, Silvero Pereira crê que, nesse tempo, o tratamento dado aos transexuais ainda está muito longe do que seria aceitável. Mas percebe que houve uma mudança significativa: seja na rua, seja no palco.
.:. A jornalista viajou a convite da organização do festival.
.:. Publicado originalmente em O Estado de S.Paulo, Caderno 2, p. C8, em 1º/4/2014.
Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.