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Crítica

Entre os escombros da criação

23.4.2014  |  por Julia Guimarães

Foto de capa: Otávio Dantas

Se nas últimas décadas os debates acerca do teatro pós-dramático ocuparam lugar central na reflexão sobre a cena contemporânea, atualmente, uma prática que vem sendo cada vez mais explorada e discutida nesse mesmo contexto diz respeito aos complexos imbricamentos entre o real e o ficcional presentes em espetáculos atuais. A despeito dos perigos de modismo, o fato é que essa estratégia cênica tem se mostrado potente em suas várias formas de aparição, criando novas perguntas aos artistas e espectadores que compartilham o acontecimento cênico nos últimos anos.

Inserido nessa vertente, o espetáculo 2 ficções, da premiada Cia. Hiato (SP) – que há pouco encerrou temporada de estreia no Sesc Pompeia – investiga o mote do embaralhamento entre realidades e ficções para tentar ir além da opção que usualmente permeia as encenações atuais, a de usar o real como mote para a criação.

Ao contrário, inclusive, do trabalho anterior do grupo, Ficção, que buscava entender como situações biográficas podem ser levadas para o teatro – e em que medida elas se tornam ficções quando transpostas ao contexto cênico – desta vez o grupo explora uma situação ficcional que é tensionada até o limite com dados da realidade, de modo a desestabilizar a percepção do público sobre cada plano. Ou como explica o encenador Leonardo Moreira: “O primeiro trabalho era uma realidade mascarada de ficção. Agora temos uma ficção mascarada de realidade” (Folha de S.Paulo, 18/3). Simultaneamente, 2 ficções também se vale de uma linhagem fértil à dramaturgia ocidental moderna – a do metateatro – para criar uma peça dentro de outra peça, que, por sua vez, remeteria ao próprio processo de criação do espetáculo pela Cia. Hiato.

O aspecto convivial e metateatral da montagem é ressaltado pela opção do grupo de estruturar a encenação com duas plateias, que assistem simultaneamente à montagem. A chamada Plateia A chega meia hora antes, recebe fones de ouvido e transita por uma instalação cênica que reproduz a casa de infância do diretor e autor do espetáculo, Leonardo Moreira, parcialmente demolida. Através de um audiotour, os espectadores escutam uma narrativa supostamente biográfica, que poderia encaixar-se também na vertente batizada como “autoficção” – mescla de ficção com autobiografia.

Na sequência, esse mesmo público é levado ao palco e acompanha a chegada dos espectadores da Plateia B, que adentram o teatro 30 minutos depois e assistem ao espetáculo sob uma perspectiva mais frontal. Já os espectadores da Plateia A são convidados a acompanhar a encenação sob o ponto de vista de alguém que estaria na coxia de um teatro, testemunhando o entrar e sair de cena dos atores. Além disso, recebem um esboço do texto do espetáculo, com grifos, riscos e anotações, que incluem até mesmo partes rejeitadas do texto durante o processo de criação. Tornam-se, assim, espécie de espectadores-cúmplices, por partilharem as escolhas e referências que geraram o espetáculo, também desveladas pelo audiotour.

Ainda que 2 ficções apresente um enredo com início, meio e fim, a história contada parece menos importante do que a exposição em si das diversas camadas de memória, ficção e referências cruzadas que aparecem nas entrelinhas do espetáculo.

Temos em cena a narrativa de uma garota que vai morrer e resolve escrever uma peça de teatro sobre personagem com destino semelhante. Ela quer montar sua peça com Fernanda, a irmã mais velha, e Tiago, o filho da empregada (que é também um dos contrarregras do espetáculo). O uso do mesmo nome aos personagens e atores que os representam é apenas uma das diversas estratégias de linguagem usadas para, como aponta o diretor, “mascarar” a ficção com dados da realidade.

A essa, somam-se outras, como o vestir e despir dos atores ao olhar do público, o tratamento do cenário ora em sua materialidade (cotonetes) ora em suas ficcionalidades (lago, piscina), o questionamento sobre como realizar uma ação que beira o irrepresentável. O que transparece nessa escolha é a proposta de uma ficção que nunca se apaga diante de uma pretensa realidade, e vice-versa.

Paralelamente a essa camada de história familiar, há diversas interrupções por parte dos atores no intuito de narrar o processo de construção de 2 ficções, supostamente atravessado por uma doença terminal do diretor e autor do espetáculo, Leonardo Moreira.

Fernanda Stefanski e Paula Picarelli em ‘2 ficções’

Claramente, há um eixo que perpassa a montagem relacionado ao tema da morte e ao do teatro como lugar que ressignifica e potencializa a existência. No entanto, tal temática parece ficar um tanto obscurecida pela opção dramatúrgica de justapor camadas metateatrais. Nem o efeito de realidade de um “estado terminal” que transcenderia a própria ficção se potencializa na escolha de jogar com a biografia (ou autoficção) do diretor, nem a história contada no enredo familiar colabora para trazer outros ângulos a um tema tão universal.

Num dado momento do espetáculo, uma das personagens diz que a opção por terminara peça com uma morte surge para “nos lembrar do contrário”. Possivelmente, a pulsão de vida que estabeleceria contraponto à morte se origine, para a Cia. Hiato, justamente na pulsão de criação, de modo que, inversamente, sejam os meandros do próprio fazer artístico – e não tanto a reflexão metafísica sobre a finitude humana – que de fato guiam as questões trabalhadas na montagem.

Não por acaso, a referência à peça A gaivota, de Tchekhov, que também tem como tema a reflexão sobre a criação, aparece em diversas passagens de 2 ficções, seja através da menção direta ao texto, seja pela semelhança entre ambientes e personagens. Através desses cruzamentos, o interessante é perceber a elaborada equação existente entre biografias, autoficções, referências artísticas, memórias e invenções que existem nas entrelinhas – ou escombros – da construção de uma obra teatral.

E é justamente ao desvelar esse jogo de referências e das diversas alteridades de si que surgem entre atores, criadores e personagens que a Cia. Hiato aponta para outras maneiras de se trabalhar com o metateatro. Nesse contexto, resta saber em que medida a inversão de ótica no tratamento do real – e a consequente exploração dos chamados “efeitos de realidade” na ficção – pode ser lapidada de modo a problematizar não só as questões do próprio teatro, mas também aquelas presentes no mundo que o cerca.

Ficha técnica:
2 ficções
Criação da Cia. Hiato
Direção e dramaturgia: Leonardo Moreira
Com: Aline Filócomo, Fernanda Stefanski, Mariah Amélia Farah, Thiago Amaral e Paula Picarelli
Assistência de direção e produção: Aura Cunha
Cenário e Luz: Marisa Bentivegna
Musica original: Marcelo Pellegrini
Figurino: João Pimenta

.:. O site da Cia. Hiato, aqui.

Julia Guimarães é pesquisadora, crítica teatral e jornalista. Doutoranda em Artes Cênicas pela USP, mestre em Artes Cênicas pela UFMG, graduada em jornalismo pela PUC-MG e com formação técnica em teatro pelo CEFART-MG, Palácio das Artes. É coeditora do site Horizonte da Cena (MG) e da revista Aspas (PPGAC/ECA/USP). Integra a DocumentaCena – Plataforma de Crítica e é membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro, AICT-IACT (www.aict-iatc.org), filiada à Unesco. Tem entrevistas e artigos publicados em revistas como Sala Preta (ECA-USP), Pós (EBA/UFMG) e Urdimento (UDESC/SC). Foi repórter e crítica teatral dos jornais O Tempo e Pampulha (MG).

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