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Reportagem

Grupos colombianos perscrutam a violência

12.4.2014  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: Divulgação/Mapa Teatro

Nas ruas de Bogotá, ouve-se falar em uma primavera teatral. Durante o Festival Iberomaericano de Teatro, que acontece até o dia 20 e é o maior do continente, o termo é constantemente convocado por curadores e artistas para explicar a atual pujança da safra local. Uma produção que não cessa de agregar novos dramaturgos e diretores. Quase todos interessados em se deter sobre o complexo quadro social e político do País.

Dois dos mais importantes representantes do teatro colombiano contemporâneo (e os mais requisitados no exterior), os grupos La Maldita Vanidad e Mapa Teatro apresentam, durante esta edição da mostra, seus novos trabalhos. Com filiações estéticas distintas, o primeiro opta por um hiper-realismo. Já o outro, prefere uma linguagem delirante, carregada de imagens e simbolismo. Ambos, porém, oferecem retratos bastante acurados do que se passa nessa sociedade que tenta se recuperar de décadas de guerra civil.

Criado em 2009, o La Maldita Vanidad encena duas montagens. Em Matando el tiempo e Morrir de amor, o jovem autor Jorge Hugo Marín examina o interior de núcleos familiares. Fala, invariavelmente, a partir de ambientes privados. Coloca em conflito pais e filhos, pessoas comuns. “Me interessa olhar para o núcleo da sociedade, que é a família”, argumenta Hugo Marín, que é também diretor. “E aí dentro colocar esses personagens em situações extremas. Contextos em que se pode esquadrinhar o mais complexo do ser humano.”

Matando el tiempo trata do nascimento de um homem preparado para ser um líder. Em uma rica residência, durante o que seria um almoço de domingo, surgem ecos de Ricardo III, o drama clássico de Shakespeare, e uma reflexão inevitável sobre as formas de controle e abuso de poder. Em Morrir de amor, o espectador acompanha um velório como se fizesse parte da cena. Está dentro da sala de uma casa de periferia, muito próximo a uma mãe, que chora ao lado do caixão do filho. E virá a acompanhar cada um dos personagens – sete pontos de vista distintos – em suas crenças sobre quem era verdadeiramente esse que já está morto.

‘Morrir de amor’, obra da La Maldita Vanidad Cia.

Nas peças de La Maldita Vanidad, o vínculo com a violência do país não é explícito. Não se está a falar de assassinatos perpetrados por guerrilheiros ou traficantes. Mas todo esse contexto transborda para o palco. “É inevitável que meu trabalho reflita o que eu vivo, a minha relação com a cidade, a minha curiosidade em entender quem somos”, observa Marín.

O lugar de absoluta predominância das personagens femininas é um dos exemplos de como esse contexto político do país contamina as peças. “Cresci em Medellín, durante os anos 1980, em uma época em que os homens eram figuras ausentes. Estavam fora, tinham morrido. Fomos formados em uma sociedade matriarcal”, aponta o diretor.

Desde 2010, a cia. Mapa Teatro se dedica à construção de uma trilogia sobre a Anatomia da Violência na Colômbia. Em cartaz durante todo o festival, Los incontados é a última parte do projeto. Na peça, durante uma festa infantil, um pai recorre a um boneco para contar às crianças de seu passado guerrilheiro. O cenário de celebração não é aleatório. “Estamos explorando a íntima relação que existe entre morte e festa em nosso país”, disse Heidi Abdelhalten, que divide a direção do tríptico com seu irmão, Rolf. Nos dois títulos anteriores, o mote era igualmente vívido. Em Los santos inocentes (2010), retratava-se uma tradicional festividade popular, data em que homens se vestem de mulher e se mascaram para sair às ruas assustando quem passa. Uma espécie de rito catártico e violento. Para fazer Discurso de un hombre decente (2011), o grupo tomou a imagem de Pablo Escobar e as grandiosas festas que o antigo chefe do Cartel de Medellín costumava promover.

A mescla entre o prazer e a dor é uma constante na trilogia. A presença do real em meio a mais fantástica ficção é outro traço que se faz sentir todo o tempo. Ex-integrante da banda Marco Fidel Suarez, que acompanhava Escobar em seus comícios pelo interior, Danilo Jimenez integrava o elenco de Discurso… e está de volta agora em Los incontados. Em meio a canções, ele evoca momentos de sua experiência: relembra quando o narcotraficante lhe pediu para que tocasse a mesma faixa a noite inteira. Quando ele exigiu que ficasse nu, como os outros convidados da festa. Quando uma bomba explodiu, matando três músicos e deixando Jimenez com sequelas que ainda persistem.

.:. Publicado originalmente em O Estado de S.Paulo, Caderno 2, p. C10, em 12/4/2014.

.:. A jornalista viajou a convite da organização do festival e da agência de promoção Invest in Bogotá:

>> Trailer do documentário El tiempo de la Maldita Vanidad (2014), sobre o processo criativo do espetáculo Matando el tiempo.
https://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=fQh6reexzqo

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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