Menu

Artigo

Reis da vela e de Ramos engoliriam rei Leão

3.6.2014  |  por Fernando Marques

Foto de capa: Cedoc/Funarte

Os artistas de teatro foram os primeiros a responder ao regime autoritário, instalado na noite de 31 de março de 1964. Para sermos exatos, os de teatro associados aos de música popular. No dia 11 de dezembro daquele ano, o show Opinião, composto por canções, anedotas e cenas curtas, estreava no Rio de Janeiro, com a cantora Nara Leão e os compositores Zé Keti e João do Vale convertidos em atores do musical.

O roteiro esteve a cargo de três dramaturgos: Oduvaldo Vianna Filho, Armando Costa e Paulo Pontes. O diretor Augusto Boal, do Teatro de Arena, vinha de São Paulo para encenar o espetáculo. A aliança de tantos nomes dava a Opinião o aspecto de uma frente de resistência ao regime,com humor e música. O sucesso foi enorme, a crítica reagiu entusiasmada – embora aquele tenha sido um sucesso restrito à classe média, ou seja, ao frequentador habitual das salas.

A observação faz sentido:ainda que certa espécie de teatro, eminentemente urbana, tenha sempre acontecido no campo da classe média, a geração de Boal e Vianinha sonhou em ajudar a ligar classe média e povo – e percebeu no espetáculo teatral um meio para realizar essa proeza política. A ambição e a generosidade daquela geração de artistas, vistas de hoje, impressionam, apesar dos equívocos que também ocorreram.

Teatro e música estariam diretamente relacionados ao menos nos 15 anos seguintes, em numerosos espetáculos. Noutras palavras, o teatro brasileiro frequentemente se organizou na forma do musical para resistir ao regime. Acompanhamos esse trajeto até 1968, quando a ditadura se acirra; os musicais críticos escasseiam a partir de então, reaparecendo na década de 1970.

Os três autores de Opinião haviam integrado o Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes. O CPC existiu de março de 1961 àquela noite de março de 1964, quando a sede da UNE, na Praia do Flamengo, no Rio, foi atacada a tiros e incendiada por golpistas. Suas atividades eram basicamente de agitação e propaganda; visavam alcançar os trabalhadores. A contrarrevolução veio cortar as possibilidades de aliança entre classes, com o cerco, por exemplo, aos sindicatos. A nova circunstância isolava os artistas de esquerda, simpatizantes das reformas que o deposto presidente João Goulart pretendera implantar.

Opinião reelaborava aqueles ideais artísticos e políticos, agora confinados a uma sala recém-inaugurada em Copacabana. Na plateia, muitos universitários, que depois comporiam o público da MPB – rótulo que nascia com o show, sob a inspiração de Nara. A cantora havia reunido os acordes da bossa nova ao samba e aos ritmos nordestinos em seus dois primeiros discos, ambos de 1964. Para ela, devemos “aceitar tudo, menos o que pode ser mudado”.

O show daria partida a uma série de musicais: Arena conta Zumbi, Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, Arena conta Tiradentes, para citar apenas três, viriam na sequência. Tais espetáculos em verdade já se praticavam desde 1960, quando estrearam Revolução na América do Sul, de Boal, e A mais-valia vai acabar, seu Edgar, de Vianinha – montagem que forneceria o mote para a criação do CPC. O projeto dos musicais políticos foi amplamente realizado: basta atentar para os textos e para a memória dos espetáculos, produzidos sobretudo de 1964 a 1979.

Em maio de 1965, aparecia Arena conta Zumbi, texto de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri, a que se somaram melodias de Edu Lobo. Ator e dramaturgo, Guarnieri havia sido pioneiro na voga do teatro socialmente empenhado com Eles não usam black-tie, peça de 1958. Pode-se dizer que os musicais constituem a vertente não realista, fantasista, do teatro político, tendência paralela à corrente realista representada por Black-tie. Personagens dotados de alguma complexidade psicológica, linguagem coloquial e tempo linear são traços desse estilo. Já os musicais costumam trocar personagens por simples tipos, eventualmente recorrem ao verso para as falas e podem ter estrutura episódica ou fragmentária.

É o que acontece em Zumbi. Texto e espetáculo, do qual existem trechos registrados em cassete, se valem de ampla liberdade dramática e narrativa para recontar a história do guerreiro, mostrando-o como herói da resistência negra ao despotismo português. A peça propunha analogia entre Palmares, no século XVII, e o país dos anos 1960. Exortava o espectador a uma resistência semelhante, dessa vez contra a tirania militar. Idealismo próximo da ingenuidade, sem dúvida, mas expresso em trabalho de grande força: o crítico Décio de Almeida Prado, embora fazendo restrições ao “maniqueísmo” de Zumbi, reconheceu tratar-se de “um espetáculo agressivo e inteligente”.

A agilidade com que os atores entram e saem dos personagens, abandonando-os para contar a história e depois voltando a eles, em movimento constante, leva a crer que os modelos do teatro épico, ou seja, narrativo, devidos naquela fase principalmente a Bertolt Brecht, tenham sido ultrapassados pelo Arena. O grupo chegou então a fórmulas originais, e elas parecem ter se incorporado a práticas cênicas posteriores. Essas conquistas estão a demandar a atenção dos teóricos, hoje muito preocupados com o relativismo dito pós-dramático.

Em abril de 1966, surge Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, texto de Vianinha e Ferreira Gullar encenado por Gianni Ratto, com o Grupo Opinião. Ressalta aqui a busca de formas populares para compor o espetáculo. Temos, no Bicho, uma comédia de ambientação nordestina que fala de eleições desonestas, usando o verso de sete sílabas do cordel e máscaras derivadas do teatro de mamulengo. A peça, deliciosa, foi publicada naquele mesmo ano e jamais reeditada.

Em abril de 1967, as pesquisas de Zumbi desdobram-se em Arena conta Tiradentes, sempre sob a liderança de Boal. Na ocasião de Tiradentes, nasce o Sistema do Coringa, formulado pelo diretor. A figura do Coringa seria a do “paulista de 1967”, ou seja, personagem-narrador situado fora do universo ficcional, alusivo neste caso à Inconfidência Mineira. O movimento de 1789 sonhou com a independência do país, mas foi abortado; a peça de Boal e Guarnieri associava a imprevidência dos inconfidentes às ilusões alimentadas pela esquerda no pré-64.

Vale notar os comentários, falados ou cantados, entremeados às cenas e, em decorrência deles, a celeridade com que se passa de um clima dramático a outro. O tema de Tiradentes, em si, não se presta à comédia, mas em seu entorno há personagens que merecem ser ridicularizados. Os políticos são o endereço da ironia: eles deixam de entregar o ouro à insaciável Coroa portuguesa porque o esquecem no próprio bolso.

Cena de 'O rei da vela' (1967), Oswald por Zé CelsoSem créditos

Cena de ‘O rei da vela’ (1967), Oswald por Zé Celso

Em setembro de 1967, estreava O rei da vela, texto de Oswald de Andrade que esperou três décadas até chegar à cena com o Teatro Oficina, sob a direção de Zé Celso Martinez Corrêa. Ameaças de bomba levaram pânico ao elenco; foram alarmes falsos. A peça de Oswald não é propriamente um musical, mas admite ser transformada em espetáculo desse tipo, e foi o que se fez.

Pode-se destacar o segundo ato, com o tom de teatro de revista redobrado para a sátira da aristocracia do café em decadência, disposta a qualquer negócio para salvar seus privilégios.
O ano de 1968 foi dos mais difíceis. Em janeiro, exibia-se Roda-viva, de Chico Buarque, sob a direção de Zé Celso, que transformou o texto farsesco num ritual nervoso. Polêmico, repleto de provocações, o espetáculo atraiu a sanha da polícia política. Em julho, trogloditas do Comando de Caça aos Comunistas invadiram o Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, para espancar a equipe. Um dos técnicos fraturou a bacia. Nelson Rodrigues, solidário, escreveu em crônica: “Estamos sendo esmagados pelo anti-Brasil”.

O carnaval teve suas convenções mobilizadas na criação de Dr. Getúlio, sua vida e sua glória, peça de Dias Gomes e Ferreira Gullar que estreou em agosto, em Porto Alegre, dirigida por José Renato. Os truques do enredo carnavalesco foram usados no texto, que conta duas histórias em espelho: a saga de Getúlio Vargas em seus dias finais e o preparo, por certa escola de samba, do enredo que toma sua biografia como tema. Estrutura hábil, que peca por idealizar a trajetória do ditador. Revista e renomeada como Vargas, a peça voltaria à cena 15 anos depois.

Procurei contar um pouco da história dos musicais políticos, que se estende pelo menos até 1979, quando Flávio Rangel encena O rei de Ramos, comédia de Dias Gomes com músicas de Chico Buarque e Francis Hime. Limitações de ordem cultural e material impedem que esse repertório seja conhecido melhor, e uma delas é a relativa escassez de registros. Falando por mim, sou pela substituição de importações no campo esteticamente milionário do teatro cantado. Ao pueril rei Leão, prefiro o rei da vela e o rei de Ramos.

.:. Publicado originalmente no Correio Braziliense, suplemento Pensar, sob o título de A cena da resistência, em 31/5/2014.

Professor do departamento de artes cênicas da Universidade de Brasília (UnB), na área de teoria teatral, escritor e compositor. Autor, entre outros, de ‘Zé: peça em um ato’ (adaptação do ‘Woyzeck’, de Georg Büchner); ‘Últimos: comédia musical’ (livro-CD); ‘Com os séculos nos olhos: teatro musical e político no Brasil dos anos 1960 e 1970’ e ‘A província dos diamantes: ensaios sobre teatro’. Também escreveu a comédia ‘A quatro’ (2008) e a comédia musical ‘Vivendo de brisa’ (2019), encenadas em Brasília.

Relacionados