Crítica
As quebras de expectativas no encontro dos bailarinos Pichet Klunchun e Jérôme Bel são inversamente proporcionais ao livro infinito dos vocabulários asiático e europeu que eles abrem pacientemente em cena a partir de suas biografias primeiras, o corpo. A via negativa serve a outras singularidades expressivas. Não há o tratamento espetacular em luz, som, espaço e figurinos, mas transparece a presunção de coreografia desse rico material organizado na cabeça do espectador. A impregnação do pensamento pela palavra – fala-se bastante com a mesma qualidade de atenção que um observa a “dança” do outro – intercala escutas e silêncios reveladores da gênese cultural do que vem a ser movimento, ação ou gesto nas composições discursivas e expositivas.
É extraordinária a pertinência desses interlocutores ao introduzir excertos de historicidade, sociologia e antropologia com a naturalidade de um diálogo coloquial que poderia ocorrer na mesa de um café ou na coxia de um teatro. Felizmente, eles se atrevem a encarar o palco nu com o despojamento e a complexidade das práticas e pensares que mobilizaram suas trajetórias.
Contam como os poderes de um general ou de um rei foram determinantes para fixar as tradições tailandesa e francesa, respectivamente. As técnicas do balé clássico ou do “khon”, dança autóctone daquele povo do sudeste asiático, mostram-se sofisticadas, herméticas, perfeccionistas e rigorosas em suas proporções sagrada ou profana. Em geral o bailarino ocidental é caracterizado por vetores ascendentes. O oriental, pelas lateralidades e enraizamentos. Para ambos, os rigores são imperativos.
A densidade das informações e dos lampejos não atravanca a triangulação Klunchun-Bel-espectador. O dueto é bem-humorado, livre de ansiedade para se fazer entender e deveras curioso no rumo ao desconhecido.
Quando partem para a demonstração do que explanam, dá-se o encaixe das polissemias verbais e corporais. Com elas, o privilégio do público do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília ao testemunhar espelhamentos e dissonâncias retroalimentadoras em Pichet Klunchun and myself (2005), título em que Jérôme Bel, prestigiado no circuito internacional – leiam-se os domínios eurocêntricos e anglo-saxões – reconhece com afeto a contemporaneidade das origens ancestrais do colega. Este, transitando o “lado de cá” há anos, permite-se prospectar as frestas dessa troca, inclusive em caráter confessional, ao recordar a morte da mãe que sofria de paralisia.
Variantes subjetivas como emoção, energia e consciência convidam a acessar a dança por outras portas de entrada, vide a sequência em que Klunchun recria arquétipos da mulher, do homem, do demônio e do macaco. Em contraponto, Bel estanca fisicamente ao som da canção Let’s dance, de David Bowie, exemplificando a desconstrução em seu repertório contemporâneo.
A aula-espetáculo performativa produz rupturas alentadoras. Desse inventário artístico e científico detemos uma filosofia de esvaziamento para reflorescer. E longe de relativizar verdades ou borrar identidades.
Nos primeiros minutos dessa obra sobre a não representação, Jérôme Bel calça tênis, veste calça jeans e camisa listrada. O notebook com o logo da Apple sacramenta o imaginário ocidental e o lugar de quem questiona. Pichet Klunchun está mais desarmado, digamos assim: pés descalços, veste camiseta e calça propícias ao treinamento ou ensaio, postura coerente com a clareza oriental. A certa altura, eles trocam de lugar sem necessariamente mudar de cadeira (passam parte do tempo sentados).
É nesse vão permanente que circulam as tensões ficcionais e documentais dos relatos estimulados por perguntas e respostas. Cotejamento sensível para um manifesto da arte dos primórdios da humanidade perpetuada a buscar novos ritmos e reconhecimentos.
.:. O jornalista viajou a convite da organização do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília. Texto escrito no âmbito da DocumentaCena – Plataforma de Crítica, iniciativa que envolve os espaços digitais Horizonte da Cena, Satisfeita, Yolanda?, Questão de Crítica e Teatrojornal.
.:. O site do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília, que acontece de 19 a 31 de agosto, aqui.
.:. O site de Jérome Bel, aqui.
Ficha técnica:
Encomendado por: Tang Fu Kuen para o Bangkok Fringe Festival
Conceito: Jérôme Bel
Com: Jérôme Bel e Pichet Klunchun
Produção: Bangkok Fringe Festival (Bangkok), SACD Le Vif du Sujet (Paris), Festival Montpellier Danse 2005 (Montpellier), RB Jérôme Bel (Paris)
Com o apoio de: Institut Français (Paris), Aliança Francesa de Bangkok, Serviço Cultural da Embaixada da França em Banguecoque e “O Projeto Circo Voador”, em Cingapura
Agradecimento: Frie Leysen e Mark De Putter
Apoios: Direction Régionale des affaires culturelles d’Ile-de-France (Ministério francês da Cultura e Comunicação) e Institut Français (Ministério dos Negócios Estrangeiros francês) para suas turnês internacionais
Gerente de produção: Sandro Grando
Apoio no Brasil: Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília
Parceria: Sesc São Paulo
Produção Brasil: Cena Cult Produção (Julia Gomes)
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.