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Crítica

Transfusão rodriguiana

23.8.2014  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Rafael Nascimento

A Cia. Novos Candangos faz uma opção defensável ao levar à cena uma das peças mais difíceis de Nelson Rodrigues, Perdoa-me por me traíres (1957), cruzando-a esteticamente com o filme cult The Rocky Horror picture show (1975). O ritmo frenético do primeiro ato tem tudo a ver com a alta voltagem que o diretor australiano Jim Sharman imprime em sua mistura de musical, comédia e trash movie repleta de tipos estranhos e divertidos.

A peça abre com duas estudantes adolescentes baixando no bordel de uma cafetina lituana para que uma delas transe com um velho deputado que só atinge o orgasmo lendo trechos de física, ufa!, e tudo ciceroneado por uma drag queen, como a presença de Pola Negri poderia ser definida hoje.

Essa “tragédia de costumes”, segundo o autor, possui lacunas estruturais na gênese ou destinação de alguns personagens decisivos, impondo desafios aos encenadores.

O quiprocó compactado de Nelson – em poucos minutos desenha-se a paixão lésbica entre Nair e Glorinha, a gravidez daquela, o aborto assassino, a falsa moral do político – evolui com mais parcimônia nos atos seguintes devido ao efeito montanha-russa do texto.

Quando entra em cena a figura perversa de Raul, o tio obcecado pela sobrinha tanto como o foi pela mãe dela, o diretor e ator Diego de Leon tem que se haver com os contornos mais dramáticos.

Eis o diapasão que esta montagem de Perdoa-me atrai para si. À proposição hiperbólica da primeira parte, amainando os tons expressionistas, as atuações enveredam por outro registro até o desfecho, incorrendo naturalmente em possibilidades comparativas, já que boa parte dos personagens atravessa esses dois ou mais mundos.

Nelson introduz recursos conhecidos de sua dramaturgia, como o flashback e a intromissão espectral, no caso, da mãe de Glorinha por quem Tio Raul era perdidamente apaixonado e a envenenou sob alegação de adultério (a peça não contextualiza a sentença que recaiu sobre essa espécie de Madalena não arrependida, ao que parece).

Na primeira sessão dentro do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília, o espetáculo se ressentiu do contraste que aparentava ainda mais complexo por causa do desnível do elenco ao bancar os desafios formais.

Atores e atrizes encarregados de Madame Luba, Pola Negri, Nair e o deputado Dr. Jubileu de Almeida alcançam transcendência nessa atmosfera de terror valorizando a expressão corporal. Por outro lado, o espaço cênico intimista do Teatro Goldoni expôs a necessidade de depuração nas demais atuações quanto à estereotipia vocal – Glorinha talvez não precisasse ser tão menininha quando não tem mais a amiga a seu lado, pois os ritos de passagem duram um átimo na ótica rodriguiana.

O grupo assume literalmente as referências cinematográficas na caracterização dos figurinos e nos números musicais de transição ou de virada de clima. É potente o ambiente visual desenhado em algumas cenas. Passa ainda por vinhetas de reclames radiofônicos à maneira do veículo de massa nos anos 1950.

Claramente, o trabalho que estreou no festival esbanja recursos e ideias para consolidar essa transfusão. Afinal, consta que os Novos Candangos vêm de uma criação entusiasta de outro Nelson, A falecida, segundo passo na breve trajetória da companhia surgida em 2010.

.:. O jornalista viajou a convite da organização do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília. Texto escrito no âmbito da DocumentaCena – Plataforma de Crítica, iniciativa que envolve os espaços digitais Horizonte da Cena, Satisfeita, Yolanda?, Questão de Crítica e Teatrojornal.

.:. O site do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília, que acontece de 19 a 31 de agosto, aqui.

Cena inicial de 'Perdoa-me...', com Novos CandangosSem créditos

Cena inicial de ‘Perdoa-me…’, com Novos Candangos

Ficha técnica:
Texto: Nelson Rodrigues
Direção: Diego de Leon
Com: André Reis, André Rodrigues, Diego de Leon, João Campos, Luana Proença, Luísa Duprat, Tati Ramos, Rafael Toscano e Xiquito Maciel
Direção musical e trilha sonora original: Mateus Ferrari
Iluminação: Marcelo Augusto Santana
Cenário e figurino: Cyntia Carla
Produção: Guinada Produções
Realização: Cia. Novos Candangos

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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