Crítica
24.11.2014 | por Fábio Prikladnicki
Foto de capa: Luciane Pires Ferreira
Conhecida no cenário gaúcho por espetáculos com textos modernos que se valem de um humor sarcástico e também por suas montagens de Molière, a Cia. Teatro ao Quadrado dá um passo adiante com a peça Os homens do triângulo rosa, que estreou no Theatro São Pedro e depois cumpriu temporada no Teatro Renascença, em Porto Alegre. Desta vez, trata-se de um espetáculo seriíssimo, abordando a perseguição aos homossexuais na Alemanha nazista.
O tema é pertinente por dois motivos. Um deles é o pouco conhecimento que se tem, ainda hoje, sobre este episódio histórico. O segundo é que os homossexuais são, atualmente, alvo de violência sistemática nas ruas do Brasil, como salientou a diretora Margarida Peixoto antes da sessão a que assisti no Teatro Renascença. Assim, esse teatro político no melhor sentido – belo e transformador – faz bem a Porto Alegre.
Max (Marcelo Ádams) mora com o bailarino Rudy (Gustavo Susin), mas ambos têm de fugir de Berlim quando o cerco nazista aperta. Em meio a suas desventuras, Max vai parar no campo de Dachau, onde encontra um novo amor, Horst (Frederico Vasques). Antes de chegar ao campo, Max convence os soldados de que é judeu – a um custo doloroso – e ganha um uniforme com a estrela de Davi amarela. Assim, consegue ser mais bem tratado do que Horst e os outros homossexuais do campo, que levam o triângulo rosa.
Cabe destacar as atuações de Marcelo Ádams e Gustavo Susin. O primeiro acerta o tom especialmente nos momentos de maior intensidade, em um desempenho mais nuançado do que demonstrou recentemente em A vertigem dos animais antes do abate, também exibida neste ano. E cresce na segunda parte. Susin revela-se um ator particularmente versátil, capaz de incorporar, a cada novo espetáculo, papéis bastante distintos entre si. Seu Rudy é delicado e adorável. Frederico Vasques fica um pouco atrás como Horst, protagonista ao lado de Max e personagem exigente em força de expressão. Em tudo, aparece o trabalho seguro da direção de Margarida.
É impossível não se emocionar com o trecho em que Max e Horst fazem amor sem se tocar em um curtíssimo intervalo no trabalho forçado no campo. Valendo-se apenas da fala, eles redescobrem o potencial transgressor do amor erótico. Interpretada de forma extremamente sensível e respeitosa por Ádams e Vasques, a cena é uma das mais memoráveis já apresentadas nos palcos porto-alegrenses nos últimos tempos.
Uma nota deve ser feita sobre o texto da peça. O programa do espetáculo entregue aos espectadores informa que a dramaturgia foi “adaptada” de três fontes: Bent (1979), peça de Martin Sherman (levada ao cinema, com o mesmo título, em 1997), e os livros Triângulo rosa – Um homossexual no campo de concentração nazista, de Rudolf Brazda e Jean-Luc Schwab; e Eu, Pierre Seel, deportado homossexual, de Pierre Seel.
Trata-se, no entanto, de uma montagem de Bent, do início ao fim, com pequenos acréscimos. Há uma intervenção maior no papel de Greta, a travesti amiga de Max, que canta Streets of Berlin no início da peça original e do filme. Em Os homens do triângulo rosa, Greta (representada com graça e vigor por Gisela Habeyche) pontua todo o espetáculo com canções de Kurt Weill em letras recriadas por Marcelo Ádams e acompanhamento da ótima pianista Elda Pires, que também executa passagens instrumentais. O recurso de estender a presença de Greta até o fim torna-se complicado porque, em pouco tempo, ela perde sua função dramatúrgica. Sua figura misteriosa e extravagante combina mais com a festa da vida em Berlim antes da perseguição nazista, na primeira parte, e menos com a tragédia crescente do meio para o final.
A Cia. Teatro ao Quadrado se reinventa com um tipo de trabalho cada vez mais necessário na cena gaúcha: construído, acima de tudo, a partir de uma ideia clara. Fica demonstrado que o grupo tinha um projeto sólido em mente, que soube traduzir em uma cena estimulante e – artigo raro no mercado – socialmente relevante.
.:. Texto publicado originalmente no site do jornal Zero Hora, em 21/11/2014.
.:. Leia reportagem de Michele Rolim sobre Os homens do triângulo rosa, aqui.
.:. O blog de Marcelo Ádams e Cia. Teatro ao Quadrado, aqui.
Ficha técnica:
Dramaturgia: adaptação das obras Bent, de Martin Sherman; Triângulo rosa: Um homossexual no campo de concentração nazista, de Jean-Luc Schwab e Rudolf Brazda; e Eu, Pierre Seel, deportado homossexual, de Pierre Seel
Direção: Margarida Peixoto
Atuação: Marcelo Ádams, Frederico Vasques, Gustavo Susin, Gisela Habeyche, Alex Limberger, Pedro Delgado e Edgar Rosa
Instrumentista: Elda Pires
Preparação corporal: Angela Spiazzi
Figurinos: Antônio Rabadan
Cenografia: Yara Balboni
Pintura de cenário e adereços: Adalberto Almeida
Trilha Sonora: Marcelo Ádams (letras) sobre música de Kurt Weill
Desenho de luz: Maurício Moura
Maquiagem: Margarida Peixoto
Preparação vocal da atriz: Lígia Motta
Preparação vocal dos atores: Marlene Goidanich
Programação Visual: Maria Eugênia Jucá
Fotografias: Luciane Pires Ferreira
Realização: Prêmio Myriam Muniz de Teatro 2013 – Funarte – Ministério da Cultura
Produção: Cia. Teatro ao Quadrado
Assessoria de Imprensa: Adriana Lampert
Jornalista e doutor em Literatura Comparada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É setorista de artes cênicas do jornal Zero Hora, em Porto Alegre (RS). Foi coordenador do curso de extensão em Crítica Cultural da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em São Leopoldo (RS). Já participou dos júris do Prêmio Açorianos de Teatro, do Troféu Tibicuera de Teatro Infantil (ambos da prefeitura de Porto Alegre) e do Prêmio Braskem em Cena no festival Porto Alegre Em Cena. Em 2011, foi crítico convidado no Festival Recife de Teatro Nacional.