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Resenha

O ofício e o Oficina de Lenise Pinheiro

18.12.2014  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Lenise Pinheiro

Inevitável a analogia da obra de Lenise Pinheiro com a de Fredi Kleemann (1927-1974). Ela está para o Teatro Oficina Uzyna Uzona, do reflorescimento do grupo no início da década de 1990 até os dias de hoje, assim como o ator e fotógrafo – nascido na Alemanha e chegado ao Brasil aos seis anos – está para a companhia Teatro Brasileiro de Comédia (1948-1964). Cada um a seu modo, contracenaram profissional e intimamente com as gerações de artistas que frequentaram, respectivamente, as ruas Major Diogo e Jaceguai, no Bexiga paulistano, em diferentes momentos históricos que as fotos de cena e dos bastidores testemunharam com as singularidades de seu tempo.

Autodidatas, tiveram na Escola de Arte Dramática laboratório ideal para ancorar suas vocações atrás das câmeras e, inclusive, atuando. Amigo de Cacilda Becker, ele se sentia à vontade no palco, participou de dezenas de montagens. Ela pontuou amadoramente aqui e ali, mas sublimou a condição de espectadora privilegiada, sua razão de viver e aperfeiçoar-se continuadamente.

As imagens de Teatro Oficina: fotografias (Imprensa Oficial do Estado, 2014) e de Fredi Kleemann: foto em cena (Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, 1991) permitem cotejar procedimentos transformadores do ato fotográfico em conjunção com a arte do teatro. A luz flamejante que irrompe num registro posado durante ensaio, conforme o portfólio hegemonicamente preto-e-branco de Kleemann, a ponto de lembrar o still cinematográfico dos clássicos de Hollywood (de fato, trabalhou também para a Companhia Vera Cruz), pode reverberar força equivalente no modo como Pinheiro compõe humanidade com uma luz de vela rente ao rosto.

De fato, o livro sobre o Oficina captura a fisionomia dos poros e as paisagens corporais. Transpira o pensamento e a prática transgressores do cofundador do grupo, em 1958, o ator, diretor e poeta José Celso Martinez Corrêa. Pulsa espacialidade correlacionada com a concepção arquitetônica de Lina Bo Bardi e seus seguidores tão perspicazes quanto.

Vão, pista, arquibancada vertical, estrutura tubular, corredor cênico que transpassa fundo e frente do edifício, transparência do janelão rente ao jardim, teto retrátil – enfim, as variantes mil em termos de planos e enquadramentos, margem de manobra que costuma ser reduzido na frontalidade do palco italiano. Assim como o público pode deambular à vontade durante as apresentações, Pinheiro garimpa ângulos com a vantagem de quem conhece as entranhas.

São mais de 500 fotos dispostas ao longo de 472 páginas abraçadas por capa dura. O capítulo TragicomédiaOrgya, um dos neologismos peculiares de Zé Celso, serve como prólogo afetivo aos braços, corações e mentes que enredaram a profissional casa adentro. É evidente o amor pelo diretor septuagenário, mestre de ímpeto juvenil, e pelo ator Marcelo Drummond, de quem o livro reconstitui a lida com o teatro justamente casada à fase mais recente da companhia, desde a volta de Zé Celso do exílio.

Aliás, a voz e a personalidade de Zé Celso ecoam sobremaneira por meio da reprodução dos textos originais dos programas das peças. O discurso de mediação talvez seja incontornável, pela inerência, mas incide tom institucional do qual a narrativa imagética se libera até nos contornos fotobiográficos. Frui melhor a brevidade dos relatos de Leona Cavalli, Pascoal da Conceição e Carla Caffé, por exemplo.

Estão documentadas 23 obras. Excetuando As boas (1991), adaptação de As criadas, do francês Jean Genet, que fez temporada no Centro Cultural São Paulo com o trio Raul Cortez, Zé Celso e Drummond, as demais foram gestadas ou estreadas no Teatro Oficina, a partir de Ham-Let (1993), culminando o ciclo atual em torno da vida, obra e época de Cacilda Becker (1921-1969).

É tamanha a identificação de Pinheiro com os artistas que terminou encabeçando a produção de Mistérios gozozos (1994), adaptação de poema de Oswald de Andrade. Donde é possível aferir que sua percepção política do ofício, encarando-o como militância, deriva desse convívio. O espírito de mutirão e de entrega incondicional a cada integrante do coletivo espelha o caráter artesanal e a assimilação do desenho de luz, função paralela adotada nos últimos anos. Não é raro Pinheiro postar-se ao lado de refletores para fotografar no ambiente multifacetado do Oficina.

Luciana Domschke e Luiz Carlos Oliveira em Os sertões: A terra (2002)Lenise Pinheiro

Luciana e Oliveira em ‘Os sertões’ (2002)

O ápice do livro, do grupo e de Zé Celso (nas últimas duas décadas e pouco) surge na sequência dedicada aos cinco espetáculos do projeto Os sertões (2002-2006). A sofisticação formal desse conjunto que transpôs o romance de Euclides da Cunha –, ou seja, se debruçando sobre um dos períodos mais sangrentos da história do Brasil e suas precariedades perpetuadas – emerge de um núcleo continuado de atuadores, músicos e técnicos inspirados até na hora de acolher adolescentes vinculados a projetos sociais do entorno e componentes do coro.

Algumas imagens de Os sertões expressam a autonomia de uma pintura épica. Imprimem a teatralidade que se viu em passagens monumentais, amplificadoras de perspectivas mesmo quando fechadas – o olhar da atuadora, instrumentista e cantora Letícia Coura evolui expectante do Ham-let para Os sertões: O homem 1 (2003), dez anos depois. Idem para a presença amorosa e assertiva de Drummond/Euclides e o crescimento a olhos vistos como atuador e diretor em criações como O assalto (2004), de José Vicente, além do papel decisivo, extra cena, como administrador da nau Oficina.

Assim, os 23 anos cobertos pelo livro de Lenise Pinheiros são representativos de um dos organismos vitais do teatro brasileiro contemporâneo: o poder de irradiação artística, cultural e política do Oficina Uzyna Uzona para a cidade, o estado e o país – para não dizer das turnês internacionais que replicaram sua arquitetura. Em meio às escalas da maior e da menor grandeza, algumas fotos respiram a subjetividade e a solitude de um objeto, de um planta, uma flor, uma íris. Nestas páginas, figurinos e adereços são valorizados com a mesma precisão do gesto. A carne e a aura. Camareiras, técnicos e operadores de câmera não orbitam, estão no centro da ação. Combinações perfeitas das faces passional e universal de Lenise Pinheiro em sua aldeia.

Serviço:
Teatro Oficina: fotografias, de Lenise Pinheiros (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 472 páginas, R$ 160,00).

.:. O blog de teatro Cacilda, por Lenise Pinheiro e Nelson de Sá, aqui.

Zé Celso, Ricardo Bittencourt (centro) e Edi Brown em 'Os sertões' (2002)Lenise Pinheiro

Zé Celso, Bittencourt e Brown em ‘Os sertões’ (2002)

Marcelo Drummond em 'Ham-let' (1993), retomada do grupoLenise Pinheiro

Marcelo Drummond em ‘Ham-let’ (1993), a retomada

Uma das imagens subjetivas do livroLenise Pinheiro

Uma das imagens subjetivas do livro

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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