Reportagem
7.12.2014 | por Teatrojornal
Foto de capa: Cedoc/Funarte
O colóquio “Para não esquecer 1964 e a ditadura militar brasileira”, que acontece na terça-feira (9/12) na capital portuguesa, sob organização do Instituto de Ciências Sociais e da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, resulta ambiente de ideias propício à recepção ao livro Com os séculos nos olhos: teatro musical e político no Brasil dos anos 1960 e 1970, que acaba de sair pela Editora Perspectiva. O autor, o jornalista, escritor e compositor Fernando Marques, colaborador do Teatrojornal, participará de uma das mesas do encontro catalisador ainda de pesquisadores de universidades do Brasil e do exterior.
A obra de Marques é embrionária da tese que defendeu em 2006 na Universidade de Brasília (UnB), onde atualmente é professor do departamento de artes cênicas. O texto do doutorado em literatura brasileira foi revisto e acrescido de um caderno de fotos com 16 páginas. Dramaturgias e espetáculos comentados concentram-se na fase de 1964 a 1979, de Opinião e Arena conta Zumbi a Gota d’água, O rei de Ramos e Vargas. O primeiro capítulo faz um panorama histórico (a partir de 1958, com a emergência do teatro político). O segundo, trata das ideias estéticas que circularam no período. O terceiro, por fim, analisa oito peças escritas e encenadas naquelas décadas.
Do recorte daqueles 15 anos, justamente o período mais duro da ditadura militar no Brasil, o ensaísta Gilberto Figueiredo Martins (Unesp) sustenta em sua apresentação do livro: “O autor constrói pontes promissoras entre certa tendência não realista do Teatro de Arena e uma linhagem que remonta às revistas, com suas cenas epicamente recortadas e libertas das amarras realistas. Também de forma criativa e instigante, mostra como os musicais políticos do Opinião, em outra vertente, vão beber em fontes da cultura popular, apropriando-se de elementos da tradição, como cordel, bumba meu boi, carnaval ou mamulengo. Ao mesmo tempo, a vanguarda do teatro político internacional, com Piscator e Brecht, era recorrentemente mobilizada”.
O título é inspirado em Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, por meio de uma fala do personagem Espártaco em Brasil – versão brasileira: “o homem será Deus, do seu verdadeiro tamanho, com a cabeça nos céus, com os séculos nos olhos. E os deuses estarão nas ruas”.
Leia a seguir a orelha, pelo próprio Marques, e um trecho de Com os séculos nos olhos: teatro musical e político no Brasil dos anos 1960 e 1970 relativo ao segundo capítulo, intitulado As ideias estéticas, que versa sobre Bertolt Brecht e comentaristas brasileiros.
Orelha
A prática do teatro musical no Brasil remonta à segunda metade do século XIX, sobretudo a seus três últimos decênios. Gênero de vigência instável, que tem conhecido momentos produtivos, seguidos por períodos menos ricos, o musical teve uma de suas fases mais férteis, no país, durante as décadas de 1960 e 1970.
Nesses anos, o teatro brasileiro frequentemente se organizou na forma do espetáculo cantado para responder, de modo crítico, ao regime autoritário. As soluções estéticas mobilizadas nessas peças reeditaram as práticas nacionais da farsa e da revista, assimilaram influências estrangeiras (os alemães Erwin Piscator e Bertolt Brecht, o musical norte-americano) e, sobretudo, afirmaram caminhos artísticos originais, capazes de envolver o público. Essas montagens de índole popular quase sempre se viram restritas, no entanto, a plateias de classe média, o que em parte se pode explicar pelo ambiente em que se realizaram.
Os textos do musical brasileiro registram o instante histórico, fixam tendências que transcendem aquele instante e deixam lições estéticas às quais se pode voltar hoje. As estratégias épicas, isto é, narrativas (por exemplo, o modo de a música se inserir no enredo), e os diálogos em verso estão entre essas lições. O primeiro capítulo deste livro traça um panorama do teatro musical a partir de 1960, abordando alguns dos principais espetáculos do gênero escritos e encenados em duas décadas. O segundo capítulo discute as ideias estéticas que circularam naqueles anos, com ênfase nas teses de Bertolt Brecht, acompanhadas pelo que escreveram comentaristas brasileiros de sua obra. Tratou-se dos conceitos devidos a Georg Lukács, filósofo e crítico lido pelas esquerdas; Augusto Boal e Ferreira Gullar também tiveram as suas ideias abordadas em seções específicas. O terceiro capítulo, por fim, destina-se a analisar em detalhe oito textos teatrais, julgados exemplares do gênero naquela fase.
Depois de distribuir as peças a serem examinadas em quatro famílias estéticas (o texto-colagem; o texto épico de matriz brechtiana; a peça diretamente inspirada em fontes populares e a peça apoiada no modelo da comédia musical), o autor procura esmiuçar os procedimentos formais que tais obras adotaram e relacioná-los a seus aspectos ideológicos. Levou-se em conta, evidentemente, o papel estrutural da música, além do uso do verso, que surge em alguns desses trabalhos. Oduvaldo Vianna Filho, Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri, Ferreira Gullar, Dias Gomes, Chico Buarque e Paulo Pontes estão entre os autores das peças analisadas, encenadas por grupos como Arena e Opinião.
Ao estudar os musicais feitos no país de 1964 a 1979, de Opinião e Arena conta Zumbi a Gota d’água e O rei de Ramos, percebemos certa maturação estética e ideológica, decorrente da própria mudança dos tempos, que os artistas souberam absorver, mas advinda também do exercício continuado desses espetáculos — apesar das interdições impostas pelo regime. Configura-se nessas décadas um repertório que soube captar tendências históricas perenes, flagrando-as com base na comicidade (eventualmente misturada ao drama) e na música, ligadas a enredos tantas vezes habilmente delineados.
Compreender o musical equivale a conhecer melhor a atmosfera vivida no Brasil da ditadura, que essas peças denunciam e subvertem, ao mesmo tempo que nos aproximamos de uma das correntes importantes na dramaturgia nacional de todas as épocas. Os musicais políticos propuseram soluções que devem ser meditadas, com vistas a uma percepção mais ampla e precisa do teatro no país e à redação de novas obras do gênero, agora.
Trecho
“Segundo [Sábato] Magaldi, ‘o que realmente Brecht aprimora é a técnica da composição por cenas isoladas’ (referida explicitamente no Pequeno órganon, entre outros textos). Essa inovação nada tem de inocente ou cosmética, diga-se; elementos formais e ideológicos, em Brecht, caminham juntos. Nessa linha, vale o propósito de aguçar a nossa capacidade de observação e crítica, sob a premissa de que o homem é mutável e de que nem mesmo os sentimentos escapam à circunstância histórica. No âmbito do evento teatral, artistas e espectadores têm a tarefa de buscar definir em que sentido e de que modo os seres humanos, socialmente ligados, devem modificar-se; a unidade social mínima, diz Brecht no Pequeno órganon, não consiste em um, mas em dois homens. A luz posta sobre o indivíduo, característica do texto dramático, troca-se pela ênfase nas relações sociais, tônica do texto épico.
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A questão da validade de cada um dos modelos [o dramático e o épico] revela-se controversa: é possível que determinados conteúdos não se ajustem à forma puramente dramática. E podemos pensar que problema simétrico também ocorre, perguntando se dilemas de índole sentimental ou existencial cabem na moldura épica.
Manifestações políticas, uma greve, por exemplo, tema coletivo e amplo, conseguem ser quando muito aludidas em diálogo, e não largamente apresentadas, caso se adote a forma dramática de exposição – o que teria ocorrido em Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri, conforme sustenta polemicamente Iná Camargo Costa em A hora do teatro épico no Brasil. Nesse livro, a estudiosa comenta a produção do período de 1958 a 1968 e, em determinados instantes, propõe debate com os críticos Décio de Almeida Prado e Sábato Magaldi quanto à recepção às ideias de Brecht no país. Segundo a autora, teria havido resistência ao escritor e a suas concepções, inclusive por motivos ideológicos (Costa, 1996).
Almeida Prado e Magaldi responderam em artigos, publicados em jornais, aos reparos feitos por Iná Camargo Costa (a réplica de Sábato foi reproduzida no livro Depois do espetáculo, de 2003). Para nós, a questão não reside em ter havido ou não resistência a Brecht (os primeiros contatos com as suas propostas talvez tenham dado margem a naturais divergências ou a eventuais incompreensões), mas em saber se as formas artísticas (literárias e cênicas, no caso) moldam ou limitam de antemão, e irrevogavelmente, os conteúdos a serem transmitidos. Ou, antes, se os conteúdos de fato forjam esta ou aquela forma e se, portanto, a implicam necessariamente (a ideia de que a matéria reclama técnicas específicas para se exprimir encontra-se na Teoria do drama moderno, de Peter Szondi). A questão só pode obter resposta minimamente satisfatória, dados os objetivos deste trabalho, quando analisarmos os textos teatrais, o que faremos no próximo capítulo. Vamos nos limitar, por ora, ao registro da polêmica.
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Adiantamos, contudo (com licença para a digressão), que as formas dificilmente terão validade geral; o que será verdadeiro tanto para a peça dramática, pouco apta a reportar assuntos de índole coletiva, quanto para a peça épica (ou a atitude intelectual a ela associada), inapetente para os temas do amor e, sobretudo, da morte (falamos, na verdade, de formas puras, só existentes em teoria).
A esse respeito, lembramos a referência feita por Brecht ao Hamlet, num dos parágrafos finais do Pequeno órganon: o que se oferece ali, está claro, é apenas uma proposta, entre outras possíveis, de abordagem do texto clássico, e mesmo essa proposta acha-se muito sumariamente explicitada. Seja como for, note-se que a questão da morte e suas ressonâncias, a nosso ver nucleares no Hamlet, não foram sequer afloradas por Brecht; ou, se o foram, a ênfase recai nos largos problemas políticos: ele sugere (produtivamente, sem dúvida) que montagens contemporâneas explorem o conflito entre a nova mentalidade reflexiva, encarnada no príncipe, e a velha ordem feudal a que ele retorna, nos passos finais da história (Brecht, 2005: 160-161).
Se o drama épico equivale à forma pela qual as demandas supraindividuais ou públicas se expõem, e se toda morte é inarredavelmente pessoal, o tema da finitude não será expresso em teatro a não ser que os refletores visem o indivíduo e sua irremissível solidão frente à morte (o amor, por mais variados que sejam os seus modelos culturais, também se dá no âmbito da pessoa).
Toda forma literária tem seus limites, embora eventualmente possa ultrapassá-los; o amplo teatro épico proposto por Brecht não será exceção. No entanto, fechando estas notas, devemos perceber que, na teoria, o modelo épico apresenta dificuldades, sim, quando se trata de iluminar os temas ligados ao indivíduo; mas devemos perceber também que, na prática, certas peças de Brecht, como Vida de Galileu, efetivamente descobrem os meios adequados a expor a personagem não apenas em sua circunstância social e histórica, mas também em sua conformação única, estritamente individual, revelando “o ser vivo, o próprio e inconfundível, aquele que não é absolutamente semelhante ao seu semelhante”, como escreve Brecht em passagem do Pequeno órganon (2005: 144); citação que, é claro, assinala que mesmo em teoria algo se formula nesse sentido.
Sobre o assunto, veja-se o que diz [Gerd] Bornheim: “Se se pensar no esmero dedicado por Brecht à figura de indivíduos em seus grandes textos, notadamente a partir de Mãe coragem, pode-se ter uma ideia do itinerário percorrido por nosso poeta. Entretanto, a sombra da categoria do objeto continuará a se fazer presente, e a explicação causal permanecerá sendo também a mais definitiva’ (Bornheim, 1992: 150).
Para o exame integral do humano, as lentes do dramaturgo (ou diretor, ou intérprete) devem abrir-se em planos gerais ou fechar o foco, sempre que necessário, sobre o rosto das personagens. É justamente o que parece ocorrer nas técnicas usadas por Shakespeare em seu ilimitado Hamlet.”
.:. Trecho de Com os séculos nos olhos: teatro musical e político no Brasil dos anos 1960 e 1970, p. 112-115 (Editora Perspectiva, 368 páginas, R$ 60)
.:. A programação completa do colóquio “Para não esquecer 1964 e a ditadura militar brasileira”, ao longo do dia 9/12 na Universidade de Lisboa, articulado pela professora Vania Chaves, brasileira radicada na capital portuguesa, aqui.