Crítica
24.12.2014 | por Maria Eugênia de Menezes
Foto de capa: Mika Makino
Natural que, ao longo do ano, as opiniões sobre o que houve de marcante passem a convergir em direção a um número reduzido de obras. Chegado o tempo de olhar para trás e refletir, alguns títulos chamam inevitavelmente a atenção e outros, mesmo que tenham causado impacto no momento, terminam relegados a certo esquecimento. Costuma ser assim. Mas 2014 tem algo de atípico. Ao menos na cena teatral. São raras – se não inexistentes – as unanimidades. Os debates da crítica especializada menos apaixonados.
A ressalva, contudo, não quer dizer que nada do que passou pelos palcos mereça ser lembrado e reverenciado. Em uma fase produtiva, o Rio trouxe uma série de bons títulos – grande parte deles concebida em 2013. É o caso de Conselho de classe, trabalho que marca a retomada da Cia. dos Atores após rumores de que o veterano grupo iria encerrar suas atividades. Sem grandes novidades formais, a criação uniu um bem urdido e maduro texto de Jô Bilac à atuação notável de intérpretes como Marcelo Olinto.
A reunião de um grupo de professores, interrompida pela chegada de um novo e desconhecido diretor, é o ponto de partida para um urgente debate sobre a educação pública no País. Missão que a peça cumpre com contundência e graça – sem mistificações, falsas lições de moral ou soluções fáceis. Também do Estado vizinho vieram A arte da comédia, perspicaz e hilariante direção de Sergio Módena com Ricardo Blat no papel principal, e Incêndios, obra do libanês Wajdi Mouawad, que se relaciona intimamente com a herança trágica grega, e recebeu direção de Aderbal Freire-Filho, com Marieta Severo como protagonista.
Também merece ser lembrada e festejada a primeira edição da MITsp. Com curadoria de Antonio Araujo, o corajoso diretor do Teatro da Vertigem, o surgimento da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo veio suprir uma lacuna importante da cidade – a ausência de um festival de artes cênicas compatível com o seu porte e sua importância. E provocou um alvoroço que, há muito, não se via em torno da cena teatral. Filas intermináveis só demonstraram a sede do público por uma programação ousada e inventiva. Sinal do mérito da curadoria – e não mera falha de planejamento como alguns comentários quiseram fazer crer. Felizmente, a iniciativa teve continuidade e sua segunda edição já foi anunciada para março de 2015.
Fora do escopo da MIT também cabe destacar a presença de alguns títulos internacionais notáveis. Dessa lista, certamente precisariam constar The rape of lucrece, uma brilhante releitura do soneto de Shakespeare, e The old woman – talvez a melhor das criações de Robert Wilson que aportaram no país nos últimos anos.
Episódios não imediatamente conectados à produção artística também tiveram impacto sobre o que veio à cena. O acirramento da especulação imobiliária desalojou importantes centros teatrais. O irretocável trabalho do CIT-Ecum – capaz de, em pouco tempo, trazer um respiro ao estrangulado cenário paulistano – foi interrompido. Nessa esteira, o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos também perdeu sua casa. E outros coletivos brigam hoje para não ter o mesmo triste destino.
O teatro de grupo – força maior da produção local – não surgiu com o mesmo ímpeto de anos anteriores. Mas, certamente, merece ter alguns títulos celebrados. Os Satyros recobrou o ânimo de seus melhores anos com o elogiado Pessoas perfeitas. O Núcleo Experimental, dirigido por Zé Henrique de Paula, permaneceu em seu caminho virtuoso, entregando ao público espetáculos importantes como Preto no branco e Ou você poderia me beijar – ambas obras de ressonância no contexto político atual. Mas com um valor estético que transcende em muito as “boas intenções”. Intérprete dessas duas montagens, Marco Antonio Pâmio também teve um ano notável como diretor, devendo ser felicitado por Assim é (se lhe parece).
Novos ventos trouxeram alento. Jovens criadoras também tiveram um 2014 bastante frutífero. Carolina Mendonça e Amanda Lyra uniram forças em Tragédia: uma tragédia – excepcional trabalho de elenco a partir do texto de Will Eno. Egressa do Grupo XIX, Janaina Leite tem construído uma consistente trajetória ao lado de outros parceiros. Seu Conversas com meu pai coroa o percurso que traçou no teatro documental usando como matéria-prima um pedaço dolorido da própria biografia. O resultado nada tem de autoindulgente, sendo tão cruel quanto sensível.
Com direção e adaptação da dupla Joana Levi e Martha Kiss Perone, Rózà é outra das joias do ano que termina. Encenada no espaço cheio de simbolismo da Casa do Povo, a montagem valeu-se das cartas escritas por Rosa Luxemburgo. Uniu teatro, música, vídeo e performance. Caminhando muito próxima dos cacoetes do teatro contemporâneo, conseguiu andar bem no fio da navalha e escapar de todas as armadilhas para criar uma obra em que forma é conteúdo.
Destaques
Conselho de classe
Aos 25 anos, a Cia. dos Atores permanece como uma das grandes do país. O texto de Jô Bilac e a direção precisa de Bel Garcia e Susana Ribeiro resultaram em uma contundente reflexão sobre a educação brasileira
The rape of lucrece
A melhor das montagens de William Shakespeare a passar pelo Brasil em 2014, quando se celebrou o aniversário de 450 anos do dramaturgo. O poema, que prenuncia as grandes tragédias do autor, mereceu grande interpretação de Camille O’Sullivan
Rózà
Cartas deixadas por Rosa Luxemburgo são o ponto de partida dessa obra. Sem ser uma simples biografia, a criação de Martha Kiss Perrone e Joana Levi combina todas as artes ao trazer para a contemporaneidade o pensamento da revolucionária
Ou você poderia me beijar
Dirigida por Zé Henrique de Paula, a montagem do Núcleo Experimental transcende as habituais abordagens para a questão da homossexualidade, ao trazer o tema pela perspectiva de um casal na terceira idade.
A arte da comédia
A peça do italiano Eduardo de Filipo é contundente em seu debate sobre o lugar e a função da arte. Irônicos e afiados, os diálogos brilham ainda mais nas atuações de Ricardo Blat e Thelmo Fernandes
.:. Texto publicado originalmente em O Estado de S.Paulo, Caderno 2, p. C4, em 22 de dezembro de 2014.
Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.