Resenha
Em A função da crítica (Giostri, 2014), três dos maiores nomes da crítica teatral brasileira, Bárbara Heliodora, Jefferson Del Rios e Sábato Magaldi, falam sobre o que vem a ser e para que serve a crítica teatral.
Bárbara Heliodora lembra que o crítico colabora com os espectadores ao destrinchar, esclarecer determinado espetáculo, afastando obstáculos que, pela falta de informação por parte do público, poderiam afastá-lo da apresentação.
Segundo Jefferson Del Rios, “o crítico não vai ditar o que o artista deve fazer, mas expor sua opinião, concordar ou discordar com as referências e invenções colocadas no palco”.
Já para Sábato Magaldi, “a primeira função da crítica é detectar a proposta do espetáculo […]. Enfim, o crítico precisa estar atento a todos os pormenores da encenação, salientando suas possíveis sutilezas”.
Há um ponto em comum na opinião dos três críticos, todos optaram em falar de uma crítica teatral que se detém especialmente na representação. Como alerta Jean-Pierre Ryngaert, é uma prática comum referir-se à representação como um “elemento faltante que viria esclarecer o texto […]. Por reação contra a análise literária tradicional, acentua-se legitimamente a dimensão visual que um espetáculo teatral oferece”. O mesmo Ryngaert adverte que a representação precisa manter as abordagens múltiplas do texto para que a sua análise venha ser interessante para crítica e público. Ryngaert conclui com a afirmação de que a análise do texto e a da representação são procedimentos complementares, embora diferentes.
A propósito do texto e da representação teatral, Del Rios e Magaldi parecem concordar com Bárbara Heliodora quando ela opina que “o teatro, ou seja, texto mais espetáculo, só existe quando ele é apresentado diante de uma plateia, porque a obra de arte é o que acontece diante do seu público, graças à interação emocional que existe entre palco e plateia”. Heliodora afirma que “assim como a música, o teatro é uma arte interpretativa que exige a presença material desse artista intérprete, seja no concerto, seja no espetáculo teatral”.
Se o teatro se mantém afastado do grande público (que não se concentra só nas grandes cidades), não é porque o grande público não o entenda, mas porque ele não tem acesso ao teatro.
No tocante à música, temos acesso a ela em geral por meio de gravações e, assim, podemos conhecer Bach, Beethoven, Pierre Boulez, Stockhausen, e mesmo as composições performáticas de John Cage, entre outros. Claro que, assistir a um concerto permite que o espectador tenha uma outra experiência e uma outra percepção da obra, mas a música pode dispensar a presença física dos músicos diante dos ouvintes, como acreditava o grande pianista Glenn Gould, que preferia tocar em estúdios de gravação.
A ópera já vem também sendo transmitida, ao vivo, em telas de cinema mundo afora. Por que isso não acontece com outras formas teatrais? Ah, o teatro…. O teatro continua tentando manter a sua especificidade, que, de certa forma, o afasta do público.
Se o teatro se mantém afastado do grande público (que não se concentra só nas grandes cidades), não é porque o grande público não o entenda, mas porque ele não tem acesso ao teatro. No Brasil, os grandes encenadores se limitam, na grande maioria das vezes, a visitar algumas poucas capitais (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre).
Para quem, fora desse eixo cultural, interessaria ler uma crítica sobre uma encenação que nunca será vista em suas cidades? A crítica teatral vista sob esse ângulo fica restrita ao interesse de poucos (da academia e dos poucos que poderão, se quiserem, assistir ao espetáculo).
Fora do eixo qual seria a função da crítica teatral e do crítico? Apresentar grupos novos, espetáculos muitas vezes irrelevantes, que vão provavelmente afastar ainda mais os espectadores do teatro? Fora do eixo, acredito, o crítico deveria se debruçar sobre o texto teatral, sobre o dramaturgo e suas concepções cênicas, preparar o público para quando, quem sabe um dia, uma boa encenação passe por suas cidades ou possa ser vista por outros meios midiáticos (como se tem feito com a ópera). Ou, quem sabe, caberia ao crítico aproximar o leitor do texto dramático e fazer com que sua leitura seja tão prazerosa quanto a leitura de outros gêneros literários.
Devo concordar, porém, com Nuno Ramos para quem, ao falar de literatura, mas que serviria também para se pensar o teatro, “a crítica perdeu contato com a dinâmica da criação, e entre o autor e o público, nasceu um número enorme de instâncias intermediárias, sacerdotais, mais próximas do poder do que da arte (curadorias, editoriais, festivais, simpósios internacionais), que não têm tempo nem qualquer desejo para interrogar a obra de ninguém.”
Se ela ainda existe, qual é mesmo a função da crítica?
.:. Publicado originalmente no jornal O Estado de S.Paulo, Caderno 2, p. C5, em 3/1/2015.
Serviço:
Editora Giostri (96 páginas, R$ 30)
Mais informações, aqui.
Ensaísta, tradutora e professora do curso de Artes Cênicas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Publicou, entre outros, Cenas do teatro moderno e contemporâneo (Iluminuras), Para ler ‘Finnegans Wake’ de James Joyce (Iluminuras). Colabora em jornais como O Estado de S. Paulo, O Globo e Notícias do Dia.