Crítica
Dirigida por Eliana Monteiro, a mais recente encenação do Teatro da Vertigem, O filho, tem como fonte de inspiração Carta ao pai, texto do escritor tcheco Franz Kafka endereçado ao seu pai e jamais enviado, só publicado postumamente. Trata-se do documento vivo da relação conflituosa entre eles, relato de sentimentos jamais expressos em diálogo.
Para a sorte da humanidade, Kafka foi capaz de elaborar sofrimento psíquico em arte tendo conseguido sublimar uma pesada carga de “re-sentimentos” contra o modelo familiar autoritário no qual foi criado – e também contra a estrutura social que propiciou a sua constituição – e transmutá-la em obras-primas da literatura universal como A metamorfose, O processo e também essa Carta ao pai, não por acaso tantas vezes levada ao palco.
A encenação do Teatro da Vertigem atualiza o corrosivo acúmulo de frustração e raiva, fruto de uma vida miserável no campo dos afetos, numa abordagem que expande a relação original quando o filho também se torna pai. A partir daí, o sentimento de desafeição passa a ser fermentado num caldo cultural onde a ordem é o esgarçamento dos vínculos familiares e de solidariedade social e nessa nova situação gera mais do que relações individuais hostis, resultando em comportamento perverso e ruptura social.
O exame crítico do núcleo familiar como célula com papel relevante na formação das subjetividades que, por sua vez, vão interagir na constituição da sociedade é procedimento teatral conhecido. Porém se revitaliza nessa transposição cênica dirigida por Eliana Monteiro, que assina também a concepção geral do espetáculo cuja potência reside na recriação de um cosmos poético a um só tempo deslocado do cotidiano e a ele referido. Com inventividade de recursos cria sua concepção cênica de modo a provocar o estranhamento do familiar investindo na possibilidade de que se abra na recepção um campo de interrogação sobre os comportamentos sociais contemporâneos.
É para os nossos tempos de vínculos que se desfazem provocando desorientação, dos trabalhistas aos familiares, passando pelos de vizinhança
Na dramaturgia que se inspira em Kafka, mas tem a assinatura de Alexandre Dal Farra – dramaturgo e também escritor com comprovado talento para abordar aspectos sombrios do comportamento humano com linguagem aguda, conforme já demonstrara no romance Manual da destruição (Editora Hedra, 2013) –, o pai segue sendo o trabalhador rude, de pensamentos e linguajar toscos, que adota sem crítica um padrão de conduta fundado basicamente na coerção e tenta moldar o filho à sua imagem e semelhança. Pais autoritários e controladores, assim como as sociedades que os constituem, moldam filhos eternamente infantilizados e cidadãos possuidores de subjetividade rala e baixa autonomia. Esse é o desenho da relação pai e filho, figuras que surgem bem definidas no centro da cena, espaço da residência paterna (e seus modelos de relacionamento) da qual o filho tenta se afastar com movimentos erráticos em trânsito orbital pelo cenário-instalação até que seja tragado/paralisado pelo abismo relacional aberto quando ele próprio se torna pai. É para os nossos tempos de vínculos que se desfazem provocando desorientação, dos trabalhistas aos familiares, passando pelos de vizinhança – não por acaso também abordados na encenação – que o Teatro da Vertigem atualiza a atmosfera opressiva que caracteriza a obra de Kafka, um tempo em que ‘vigilância e punição’ prescindem da centralidade da autoridade paterna.
Tal atmosfera, entre o bizarro e o familiar, é instaurada já a partir do cenário-instalação, assinado por Marisa Bentivegna, composto de dezenas de objetos domésticos: fogões, geladeiras, fornos de micro-ondas, estrados de camas, mesas, cadeiras, armários e sofás usados e empilhados que compõem uma arquitetura aparentemente caótica – cuja ocupação revelará ser cuidadosamente elaborada –, dentro do qual o público se acomoda e os atores transitam.
Cenografia que de modo mais imediato remete ao inconsciente e, numa outra camada de leitura, à sociedade contemporânea do descarte sem uso pleno, formalização cujo risco seria justamente o de produzir o efeito que critica – o excesso que torna tudo indistinto. Risco evitado pelo desenho de luz de Guilherme Bonfanti ao incidir sobre aquela massa volumosa criando zonas de sombras ou de penumbras instáveis, quase que movimentando objetos, acentuando ou amenizando arestas, alterando texturas, cores, volumes e valorizando a tridimensionalidade.
Outro procedimento criativo a atuar sobre o microcosmo instaurado pelo cenário, lugar de trânsito e habitação dos personagens que não oferece conforto na cena sem concessões do grupo, é a sonorização que preenche os vazios entre objetos e intensifica a densidade da atmosfera opressiva. A trilha original de Erico Theobaldo parece emprestar (discreta) voz ao ambiente com sua sonoridade feita de rastros (de vozes), sussurros que se misturam, sem se impor, às vozes dos atores. O posicionamento das caixas de som, que um coro parece alterar ao longo da encenação, é feito de tal modo que os sons incidentais tomam o espaço sem que pareçam vir de um ponto específico, enquanto o oposto se dá com a emissão vocal dos atores, cuja fonte sonora permanece pontual e colada aos corpos, mesmo que usem microfones. Procedimento técnico cuja elaboração tem a assinatura de Kako Guirardo e operação de Miguel Caldas, dupla que repete parceria já realizada na montagem anterior do Teatro da Vertigem, Bom Retiro, 958 metros, espetáculo itinerante cuja configuração espacial – ocupava um shopping, ruas e um teatro abandonado – exigiu soluções sonoras inovadoras.
Do espaço cênico e seu uso até a condução nas interpretações a direção faz convergir os recursos teatrais de modo a retirar de cena o drama individual, provocando o espectador a ultrapassar esse modo de construir sentido. Porém o faz sem desfigurar os personagens. É possível identificar claramente as questões que envolvem a relação de afeto entre pai e filho assim como o papel formador desse núcleo sobre o individuo e a interferência sobre as futuras trocas interpessoais. Mas a construção de sentido não se esgota nessa relação.
As figuras jamais se descolam totalmente do fundo – o olhar do público não consegue recortá-las da cenografia, ou seja, do espaço que as molda –, aspecto reforçado pela direção em alguns momentos quando se dá quase uma simbiose entre cenografia, figurinos e corpos. Do mesmo modo, na abordagem dramatúrgica, mesmo quando julgam agir como “homens de verdade”, para usar uma das expressões textuais examinadas e estranhadas na adaptação de Dal Farra, os personagens alcançam um baixíssimo grau de individuação – no sentido da subjetividade plena capaz de pensar criticamente o ser/estar no mundo e não do individualismo que isola sem ganho de autonomia de pensamento.
A estreita relação entre as figuras e o ambiente que lhes dá contorno é reforçada nas interpretações que sem perda de tensão emocional alcançam um grau de contenção necessário para quem busca ser mais disparador de sentido do que proprietário dele. Mawuse Tulani (mulheres do filho) e Paula Klein (mulher e mãe) atuaram em Bom Retiro, 958 metros e Sergio Pardal (o filho), em O kastelo e em BR-3, a montagem que se dava nas margens do Rio Tietê, em pequenos barcos e numa embarcação que acomodava os espectadores num percurso de 4,5 quilômetros (pelo Rio Tietê), enquanto Antônio Petrin (pai) e Rafael Lozano foram convidados para atuar nesta adaptação de Kafka. Tais diferenças entre experiências não são apagadas em cena, ao contrário, contribuem para dar relevo aos atritos entre personagens.
Por fim, ainda na linha do estranhamento que busca novos modos de olhar o familiar, a concepção está investida de procedimentos perturbadores da percepção como o descolamento entre gesto e palavra que fricciona significações, recurso usado por Pardal e Paula Klein (como a primeira mulher do filho, ainda colada ao modelo paterno) e do qual a direção não abusa, alcançando um ganho de potência ao concentrá-lo nos diálogos desse casal. Outro recurso criado nessa linha é o uso alterado dos objetos, como ocorre com uma garrafa de cerveja usada num gesto cuja repetição molda um código próprio ao território provisório da encenação.
Se fora do âmbito da fé religiosa não há sentido para a existência são as relações entre os homens que vão tornar mais ou menos suportável o intervalo entre vida e morte. Sobre tais relações na contemporaneidade se debruça o Teatro da Vertigem que está longe de ter como proposta a mera fruição de um clássico da literatura para ilustração da plateia.
.:. O olhar crítico de Maria Eugênia de Menezes sobre O filho.
.:. A reportagem de Valmir Santos sobre o lugar da fala no trabalho da diretora Eliana Monteiro.
Serviço:
Onde: Sesc Pompeia – galpão (Rua Clélia, 93, São Paulo, tel. 11 3871-7700)
Quando: Quinta a sábado, às 19h30; domingos e feriados, às 18h30.
Quanto: R$ 12 a R$ 40
Ficha técnica:
Texto: Alexandre Dal Farra
Direção: Eliana Monteiro
Dramaturgismo: Antônio Duran
Com: Antônio Petrin, Mawusi Tulani, Paula Klein, Rafael Lozano e Sergio Pardal
Desenho de luz: Guilherme Bonfanti
Cenografia: Marisa Bentivegna
Figurino: Marina Reis
Trilha sonora: Erico Theobaldo
Assessoria de imprensa: Canal Aberto – Márcia Marques
Jornalista, crítica e doutora em artes cênicas pela USP. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena. Tem artigos publicados nas revistas Cult, Sala Preta e no livro O ato do espectador (Hucitec, 2017). Durante 15 anos, de 1995 a 2010, atuou como repórter e crítica no jornal O Estado de S.Paulo. Entre 2003 e 2008, foi comentarista de teatro na Rádio Eldorado. Realizou a cobertura de mostras nacionais e internacionais, como a Quadrienal de Praga: Espaço e Design Cênico (2007) e o Festival Internacional A. P. Tchéchov (Moscou, 2005). Foi jurada dos prêmios Governador do Estado de São Paulo, Shell, Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Prêmio Itaú Cultural 30 anos.