Reportagem
Em Cracóvia e Varsóvia
Mergulhados no rastro de destruição deixado por duas guerras mundiais, muitos dos grandes artistas do século 20 não fizeram de suas criações apenas um testemunho do horror. Forjaram – perplexos diante de milhões e milhões de mortes – novas linguagens e formas de criação. Samuel Beckett tentou flagrar o absurdo de um mundo desumanizado. Jean-Paul Sartre ergueu sua obra ao mirar a falta de sentido da existência. Tadeusz Kantor (1915-1990) olhava para o vazio, para os objetos mais sem valor, para a morte.
“A ideia de zero é muito cara para Kantor. Mas ele não tinha em mente só a catástrofe, a destruição da guerra. O zero era também a possibilidade de uma completa reconstrução”, observa o historiador polonês Jaroslaw Suchan, um dos curadores da exposição Máquina Tadeusz Kantor, que o Sesc Consolação abre no dia 19.
Em uma área de quase 2.000 m², foram reunidos 130 objetos, além de filmes e fotografias, que ajudam a celebrar o centenário desse diretor que mudou as feições do teatro mundial. Cenógrafo, encenador, artista plástico, criador de happenings e performances, Kantor implodiu as fronteiras entre as artes. Trouxe complexas questões filosóficas para o palco. Libertou o teatro do texto. Imerso em ideias de vanguarda, criou uma arte de grande apuro visual – que prescindia dos conceitos de ilusão e representação com os quais as artes cênicas haviam trabalhado até aquele momento.
“Para Kantor, o palco não era o lugar de se contar uma história. O teatro não dependia da literatura. Era um país autônomo, um planeta diferente”, diz Ludmila Ryba, atriz que trabalhou com o artista durante 11 anos e dirige uma série de intervenções, com a paulistana Cia. Antropofágica, que serão apresentadas no contexto da mostra.
Em Cracóvia, no quarto modesto em que morava, ainda é possível ver os rastros dessa experimentação: uma caixa de sabonete recoberta de papel preto. Um pente. Um caderno
Com o aval da Unesco, que declarou 2015 como ‘o ano Tadeusz Kantor’, uma série de comemorações da efeméride está em curso ao redor do mundo. Kantor será reverenciado em Edimburgo, Kyoto, Los Angeles, Nova York, Toulouse.
A exposição de São Paulo reúne peças da coleção da Cricoteka – instituição criada pelo próprio Kantor para documentar sua obra –, do Muzeum Sztuki, de acervos de Cracóvia, Varsóvia e Poznan, além de coleções privadas. Com máquinas, marionetes e vestígios das mais importantes montagens do artista – como o mítico espetáculo A classe morta (1975), no qual misturou atores e bonecos – essa será a maior mostra sobre o artista já realizada fora de seu país.
Uma dimensão que se justifica pela proximidade do ano da Cultura da Polônia no Brasil. Em 2016, o Instituto Adam Mickiewicz, ligado ao Ministério da Cultura polonês, pretende promover uma aproximação entre artistas e o público dos dois países. Além da Máquina Tadeusz Kantor, realizada com o Sesc, o instituto já tem parcerias em São Paulo com o centro Tomie Ohtake e a Casa do Povo, além do Festival Vivadança, em Salvador.
“Ainda assim, é muito provável que as pessoas se perguntem: Mas por que fazer uma exposição tão grande sobre Kantor no Brasil?”, crê Jaroslaw Suchan. O criador polonês influenciou diretamente o teatro brasileiro moderno. A estética fúnebre de Antunes Filho, por exemplo, não esconde a filiação. “Fiquei absolutamente estarrecido quando vi A classe morta”, recorda-se o diretor de Macunaíma. “Muito semelhante ao que senti ao ver Kazuo Ohno ou Bob Wilson pela primeira vez.” Para dar conta das reverberações na cena atual, grupos do contexto contemporâneo, como a Cia. Hiato e o Grupo XIX de Teatro, preparam criações motivadas pelo legado de Kantor e vão mostrá-las no palco montado dentro do espaço expositivo.
Curiosamente, a relação de Kantor com o Brasil começou via artes visuais. Em 1967, suas telas foram premiadas na Bienal de São Paulo. Então, sua presença mal foi notada. Mas a série de 17 quadros estará de volta agora. “Kantor já é muito conhecido pelos artistas de teatro brasileiros. Vamos mostrar ao público como sua criação ultrapassa essa dimensão, o que existe para além do teatro. Ele estava dialogando com os mais significativos movimentos de vanguarda”, argumenta Suchan. Mesmo trabalhando em uma Polônia destruída pela guerra, e posteriormente sufocada pelo comunismo soviético, Kantor conseguiu conectar-se sempre às grandes rupturas da modernidade. “Era como um vendedor ambulante. Na Polônia, que vivia sob o regime comunista, ele contrabandeava os ideais de uma arte livre, vanguardista”, lembra Krystian Lupa, diretor que é uma das maiores referências do teatro polonês e europeu.
Ao dar o título de “máquina” à exibição paulista, a intenção dos organizadores é trazer à luz o complexo funcionamento do processo criativo do artista. Não faz sentido encarar separadamente suas pinturas. Ou seus espetáculos. Havia conexões entre tudo aquilo que criava. Como se fossem partes indissociáveis de uma grande construção – uma obra de arte total, ainda que subvertesse o sentido que Wagner emprestou ao termo. “Não faria sentido explorar esse percurso como em um museu tradicional”, crê o brasileiro Ricardo Muniz, que também assina a curadoria. “Pensamos em uma máquina, que tem muito mais a intenção de produzir experiência, do que conhecimento.”
Kantor foi o primeiro artista a realizar um happening em seu país, como documenta o arquivo da Foksal Gallery, em Varsóvia. Lá, estavam guardados os registros fotográficos do Happening panorâmico do mar, obra de 1967 que influenciou artistas como Marina Abramovic. As imagens vêm para São Paulo. Também será possível comprovar seu pioneirismo na arte das embalagens – na mesma época em que Christo ‘embalava’ pontes e prédios, ele se dedicou a processo semelhante, mas voltado a objetos mínimos e sem valor. Em Cracóvia, no quarto modesto em que morava, ainda é possível ver os rastros dessa experimentação: uma caixa de sabonete recoberta de papel preto. Um pente. Um caderno.
Foi um artista megalomaníaco. Mas sem nenhum apego ao próprio ego. Queria libertar as coisas de seu sentido utilitário. Descobrir a verdade se apegando ao superficial. Criar a vida olhando para a morte. Tocar o universal tomando as reminiscências mais íntimas.
.:. Publicado originalmente no jornal O Estado de S.Paulo, Caderno 2, p. 1, em 11/8/2015.
.:. A jornalista viajou a convite do Instituto Adam Mickiewicz.
Programação de Máquina Tadeusz Kantor
>> Performances e espetáculos (setembro a novembro): Em setembro, o português Daniel Moutinho apresenta a performance Outra lição de anatomia. O diretor iraniano Hamed Taheri traz a instalação Home is in our past. A partir de outubro, os grupos brasileiros Hiato, Grupo XIX e Povo em Pé, entre outros, também se apresentam na exposição.
>> Visitas guiadas e aula (agosto): Nos dias 19 e 20/8, a atriz Ludmila Ryba e o estudioso Michal Kobialka farão visitas guiadas. Nos dias 21, 22 e 23/8, Kobialka realiza aulas abertas.
>> Catálogo (outubro): Publicação reunirá textos de Kobialka, Sílvia Fernandes, Christine Greiner, etc.
.:. Leia artigo da ensaísta Dirce Waltrick do Amarante sobre Kantor.
Serviço:
Onde: Sesc Consolação (Rua Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, São Paulo, tel. 11 3234-3000)
Quando: Segunda a sexta-feira, das 11h30 às 21h30; sábado e feriado, das 10h às 18h30. De 19/8 a 14/11
Quanto: grátis.
Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.