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Artigo

A reinvenção da crítica

25.9.2015  |  por Fábio Prikladnicki

Foto de capa: Larissa Nowak

Na “farsa irresponsável” Viúva, porém honesta (1957), uma peça divertida e subestimada de Nelson Rodrigues, o grande dramaturgo alfineta o ofício do crítico teatral por meio do personagem Dorothy Dalton, um fugitivo do Serviço de Assistência ao Menor que é convidado a escrever sobre espetáculos por sugestão do assistente do diretor do jornal A Marreta. “Mas olha a pinta, doutor! Está na cara! Não é escrito e escarrado o crítico teatral da nova geração?”, provoca o assistente, que orienta: “Qualquer peça que tenha uma insinuação sobre sexo, sobre amor de mulher com homem, você mete o pau, escracha! Outra coisa: se uma personagem ficar grávida, você também espinafra, vai espinafrando! Não admitimos gravidez em cena!”.

Com seu “nome de cinema mudo”, na definição do diretor do jornal que figura na peça, Dorothy é um exemplo bem acabado da conflituosa relação entre críticos e artistas. Mas o desenvolvimento da arte da análise dos espetáculos prova que o debate alcança níveis de complexidade que vão além da paródia. E está longe de acabar. No ano passado, foi lançado o livro A função da crítica (editora Giostri), uma reunião de textos curtos de Barbara Heliodora (morta em abril último), Jefferson Del Rios e Sábato Magaldi, três mestres no assunto. Nesse retorno à pergunta fundamental – para que serve a crítica? –, perpassa os textos a ideia de que cabe ao crítico de ofício, esse “espectador informado” (nas palavras de Barbara), orientar o público sobre as qualidades e os defeitos de uma obra, contextualizando-a historicamente. Barbara lembra que todo espectador tem um pouco de crítico quando comenta com um interlocutor, ao final de um espetáculo, o que lhe agradou e o que não lhe agradou. Ao crítico de ofício, no entanto, cabe arrazoar suas afirmações.

Escreve ela: “Uma das principais razões para a existência da crítica é exatamente a necessidade que tem o artista de ter sua obra analisada e apreciada por alguém que, para merecer o título de crítico, teve de estudar e ficar informado na área de arte em que ele trabalha. Por um lado a crítica serve ao artista, na medida em que, no caso do teatro, um espectador informado, ou seja, o crítico, possa informá-lo sobre como e até que ponto sua obra ‘passou’, isto é, atingiu a plateia; e por outro então, na crítica jornalística, ele pode informar o público a respeito da obra”.

Quem estiver preocupado com o fim da crítica é porque não está olhando à frente

Reverenciando mestres da comunicação no Brasil como Cláudio Abramo e João Apolinário, assim como o ensaísta romeno radicado em Paris Georges Banu, Del Rios se posiciona do lado de uma “crítica afirmativa”. Em suas palavras: “A nossa intenção, com possíveis enganos, é descobrir artistas e chamar a atenção para sua originalidade, promovê-los. É a hora mais feliz deste ofício/trabalho, assim como existe o momento áspero de mencionar o que é malfeito por displicência de feitura ou oportunismo do mero passatempo, a provocação inconsistente, confusão estética, inadequação ao papel ou falta de talento par realizá-lo”.

Sábato reforça a ideia do crítico como avaliador de uma obra e orientador do público: “A primeira função da crítica é detectar a proposta do espetáculo, esclarecendo-a, se preciso, pelo veículo de comunicação – jornal, revista, rádio, tevê. Em seguida, cabe-lhe julgar a qualidade da oferta e de sua transmissão ao público. É importante ajuizar o equilíbrio do conjunto, algumas vezes prejudicado pelo mau desempenho de um intérprete ou pela inadequação do cenário, das vestimentas ou da luz. Enfim, o crítico precisa estar atento a todos os pormenores da encenação, salientando suas possíveis sutilezas”.

Uma mostra substancial de como traduzir essa teoria na prática está no livro Amor ao teatro (Edições Sesc), antologia lançada neste ano com nada menos do que 1.224 páginas de críticas de Sábato, publicadas originalmente entre 1966 e 1988 – revisando, portanto, uma parte fundamental do teatro brasileiro na segunda metade do século 20. Na prosa límpida e na exposição objetiva que celebrizaram o crítico, estão registradas crônicas de espetáculos como O rei da vela (1967), de José Celso Martinez Corrêa (“inteligente, estimulante, audacioso, agressivo”, escreve o crítico), Macunaíma (1978), de Antunes Filho (“um dos marcos do teatro brasileiro de todos os tempos”) e – uma curiosidade para os gaúchos – Mockinpott (1976), de José Luiz Gómez, em montagem do Teatro de Arena de Porto Alegre (“um rendimento surpreendente a um texto que, de outra forma, poderia jazer em pura mediocridade”). Em meio a tudo isso, estão resenhas de outros diretores que erigiram o teatro brasileiro moderno, como Augusto Boal, Gianni Ratto, Antônio Abujamra, Fauzi Arap e Flávio Rangel.

Em contraponto à crítica prescritiva que remonta ao próprio conceito de crítica, a jovem Daniele Avila Small propõe uma guinada radical do ofício no livro O crítico ignorante (7Letras). Daniele é idealizadora do site Questão de Crítica, que tem renovado o panorama da análise de espetáculos no país por meio de textos que combinam a clareza do jornalismo e a profundidade do meio acadêmico. No livro, a autora propõe uma crítica que escape à função de orientação de consumo usualmente empregada pelos meios de comunicação, ou seja, que abra mão da tarefa de apontar “acertos” e “erros” em benefício de uma exposição que busque, antes, expandir as questões apresentadas no palco. Ressignificando a ideia de “mestre ignorante” de Jacques Ranciére, propugna o modelo do “crítico ignorante”, que não se coloca em nível de superioridade com relação aos demais espectadores, nem com relação aos artistas. Por isso, não faz concessões que impliquem uma simplificação de conceitos para facilitar a leitura do “público em geral”. Sua forma por excelência é o ensaio, e por isso seus textos são consideravelmente mais longos do que o das críticas publicadas hoje nos jornais. Essa nova crítica vale-se, evidentemente, da possibilidade do espaço expandido que é a internet. Por influência de Daniele e de outros idealistas que administram sites e blogs de teatro, a crítica supera mais uma crise – sem que a tradicional crítica normativa, com seus julgamentos de valor, tenha desparecido. Quem estiver preocupado com o fim da crítica é porque não está olhando à frente.

.:. Publicado originalmente no site do jornal Zero Hora, em 24/9/2015.

Serviço:

A função da crítica
De Barbara Heliodora, Jefferson Del Rios e Sábato Magaldi
Giostri, 96 páginas, R$ 30

Amor ao teatro
De Sábato Magaldi
Edições Sesc, 1.224 páginas, R$ 154

O crítico ignorante
De Daniele Avila Small
7Letras, 132 páginas, R$ 36

Jornalista e doutor em Literatura Comparada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É setorista de artes cênicas do jornal Zero Hora, em Porto Alegre (RS). Foi coordenador do curso de extensão em Crítica Cultural da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em São Leopoldo (RS). Já participou dos júris do Prêmio Açorianos de Teatro, do Troféu Tibicuera de Teatro Infantil (ambos da prefeitura de Porto Alegre) e do Prêmio Braskem em Cena no festival Porto Alegre Em Cena. Em 2011, foi crítico convidado no Festival Recife de Teatro Nacional.

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